sábado, 3 de maio de 2014

No mesmo plano da festa, por Cacá Diegues

Cacá Diegues


Selfies são privatização da experiência pública, valorização do privado sobre a pressão dos padrões coletivos

Li no GLOBO que o filosófo americano Dan Dennett, responsável por respeitáveis teorias sobre a evolução, está anunciando que a queda da rede mundial é questão de tempo e que, quando isso acontecer, a humanidade entrará em pânico e voltará à Idade da Pedra. Segundo ele, antes da internet havia mais clubes sociais, congregações, organizações de grupos, igrejas de toda espécie, o que aproximava núcleos de seres humanos para se protegerem uns aos outros.
Para início de conversa, devo confessar que não sou um grande consumidor de tecnologia em geral. Não que eu a subestime, ela é que me superestima — embora costume usar os aparelhos a nosso alcance, não tiro proveito de metade dos serviços e benfeitorias que me são oferecidos por meus computador, smartphone, iPad.
Esse desacerto com a tecnologia não significa desaprovação. Pelo contrário, me fascino e me emociono com o mundo que há de vir por aí através dela. Cada vez que meus netos (entre 8 e 12 anos de idade) me demonstram sua habilidade instintiva com a tecnologia, superando-me em larga escala no uso produtivo de artefatos eletrônicos e digitais, sinto-me a assistir um trailer do que será o futuro. A internet, que é para mim uma curiosidade próxima do milagre, é para eles o que foi a nossa cartilha. Ela é o abecedário de sua geração.
Outro dia, meu neto mais moço perguntou à mãe se era necessário casar para ter filhos. Embaraçada, minha nora respondeu que não sabia. Ele retrucou: “Então guga aí.” Até a minha geração, o mistério cuja resposta ele julga (ou sabe) encontrar-se no Google só podia ser decifrado bem depois, quando chegasse a adolescência ou até a maturidade.
Ao contrário do que afirmam os pessimistas, a geração de meus netos deverá ser mais sábia do que as que os antecederam. Não sei se o Google um dia vai nos ajudar a resolver nossas angústias de vida, nossas relações precárias conosco mesmos e com os outros. Mas não há dúvida de que ele pode vir a nos explicar muita coisa sobre nós, desvendar melhor o que nos disse gente como Freud ou Jung, Marx ou Sartre. E tudo à distância de um dedo.
Já ouvi muita gente condenar os selfies, aquelas autofotos tiradas com celular, como se fossem uma degradação humana, um empobrecimento da experiência pessoal. Ou seja, ninguém tem nada a ver com o gatinho da moça, que ela fotografa e posta no Facebook. Assim como é ridículo fotografar-se com a Torre Eiffel ao fundo, quando o fundamental seria curtir o monumento.
Não concordo com essa ira contra os selfies. Eles são uma privatização da experiência pública, uma valorização do privado sobre a pressão dos padrões coletivos. Um dia, alguém terá a iluminada ideia de fazer selfies de sua própria morte, desvendando o último mistério.
E depois, acho bonito que não se precise mais pedir autográfos, que se possa eternizar a presença do ídolo em nossas vidas com um clicar de celular multifuncional. Henri Bergson, o grande filósofo da primeira metade do século 20, ao ver o primeiro filme em sua vida, não se interessou pela arte cinematográfica. Ele disse simplesmente que agora as pessoas no futuro iam saber como se moviam as pessoas no passado.
Como tudo no mundo, o celular também pode incomodar, numa sala de cinema, no restaurante em que casais mal se falam, nas reuniões corporativas, na conversa entre amigos. Conheço alguém que diz que o celular é um instrumento que aproxima os que estão longe e afasta os que estão próximos.
O que mais me incomoda na rede em geral é o crescente desprestígio do corpo. Desde os anos 1960, a humanidade vem fazendo uma revolução de descolonização do corpo, a vítima de uma repressão moral que nos fez tanto mal no passado. Agora, com a internet, o corpo está sendo exilado, é capaz de daqui a pouco não termos mais necessidade dele. Uma pena.
Mas a internet poderá intervir em breve na própria democracia, expandindo-a e fortalecendo-a. A crise de representatividade em que vivemos hoje (por lógica de interesses, burocracia, esperteza, corrupção) poderá vir a ser superada pelos diversos usos da rede, promovendo uma espécie de democracia digital com a participação de todos. Através dela, nós mesmos nos representaremos nas instâncias de poder.
Isso poderá ser o fim ou pelo menos a decadência do que o filósofo Michael Sandel, professor em Harvard, chama de “camarotização” da sociedade, esse modo de vida representado por camarotes e currais VIPs em eventos, estádios, espetáculos. O poder público também está “camarotizado” e a internet pode ser um bom e eficiente instrumento para devolver-nos todos ao mesmo plano da festa.
Ao contrário do que pensa o professor Dannett, a internet e seu futuro (quem sabe qual será?) poderá nos ajudar a nos compreendermos melhor, a sermos mais justos e solidários em nossas individualidades.


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Social, não étnico - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 03/05
Cotas raciais perdem força nos Estados Unidos, mas ganham no Brasil, onde o problema no fundo é a má qualidade do ensino básico
Decisão recente da Suprema Corte americana validou o referendo no qual os eleitores de Michigan baniram, em 2006, o critério racial na admissão às universidades públicas daquele Estado.
Ganha ímpeto, assim, um processo de reversão histórica no próprio país onde as políticas de compensação racial surgiram, há meio século. Outros sete Estados também vedaram o critério racial, e a lista deve aumentar com a deliberação da Suprema Corte.

Nos Estados Unidos, a maioria branca expressa seu inconformismo com a contra-discriminação imposta pelas cotas raciais. No Brasil, a profunda miscigenação --um fato demográfico-- impõe objeções de outra ordem a essa política compensatória.

Pois seria difícil contestar a conveniência de alguma política compensatória, que acelere a correção da enorme distância competitiva numa sociedade tão desigual como a brasileira.

Mas tal exceção à prevalência do mérito deve ser provisória, enquanto não melhora a qualidade do ensino público oferecido a crianças e adolescentes. E deveria obedecer a critérios sociais, beneficiando egressos das escolas públicas ou alunos com menor renda familiar.

O critério racial introduz um fator politicamente explosivo, além de duvidoso em si, propício a estigmas e mistificações emocionais.

Ao contrário dos Estados Unidos, onde sua aplicação prática parece viável, num país como o Brasil, onde metade da população não é "branca" nem "negra", tal critério cria problemas, em vez de resolvê-los. Como coibir fraudes, por exemplo, se não estabelecendo odiosos tribunais raciais?

Desde 2012, vigora a Lei das Cotas, que estipula critérios mistos, sociais e raciais, para preencher metade das vagas oferecidas pelas universidades federais. Tramita no Senado projeto do governo que reserva 20% das vagas nos concursos federais a afrodescendentes. Leis semelhantes já vigem em diversos Estados e municípios.

A aspiração de mitigar a desigualdade de acesso a melhores condições de vida é legítima, como reconheceu o Supremo tribunal Federal quando decidiu que as cotas não violam o princípio constitucional da igualdade perante a lei.

Mas exceções ao princípio do mérito tendem a prejudicar o desempenho das instituições que as praticam. Implicam alguma injustiça; no caso das cotas raciais, "brancos" pobres são especialmente lesados.

Cotas sociais compensam os estratos étnicos discriminados, na medida em que eles se concentram nas faixas de renda menor. Mas são ações paliativas, enquanto não se enfrenta o problema maior, que é a má qualidade do ensino público fundamental.

Quando um município não tem condições de oferecer boa escola, União fecha os olhos

Quando um banco entra em crise, o Banco Central intervém para evitar a falência; quando a segurança de uma cidade entra em crise, o governo federal aciona a Guarda Nacional; quando a saúde fica catastrófica, importam-se médicos; quando uma estrada é destruída por chuva, o governo federal auxilia o estado; mas quando um município não tem condições de oferecer boa escola a suas crianças, o governo federal fecha os olhos, porque isso não é responsabilidade da União. Limita-se a distribuir, por meio do Fundeb, R$ 10,3 bilhões por ano, equivalente a R$ 205 por criança ou R$ 2 a cada dia letivo.

A boa educação de uma criança, assumindo um bom salário para atrair os melhores alunos das universidades para o magistério, em boas e bem equipadas novas escolas, todas em horário integral, custaria R$ 9.500 por ano, por aluno. Das 5.564 cidades brasileiras, a receita orçamentária total não chega a R$ 9.500 por criança em idade escolar. Se considerarmos os gastos fixos e custeios da administração municipal, nenhuma de nossas cidades teria condições de oferecer educação de qualidade a suas crianças.

Para mudar tal panorama, o país tem dois caminhos: deixar que o futuro de nossas crianças dependa de alta renda de sua família ou responsabilizar a União pela educação dos filhos do Brasil.

As cidades que não têm condições de oferecer uma boa educação para seus filhos apelariam ao governo federal e este adotaria as escolas dessas cidades, respeitando todos os acordos federativos, todos os direitos dos municípios, mas também os direitos de todas as crianças do Brasil, independentemente da cidade onde moram.

Antes mesmo de uma Lei de Adoção Federal ser aprovada, quem sabe um ou outro prefeito não toma a iniciativa de ir ao governo federal e dizer: “Presidente, não tenho condições de oferecer a educação que minhas crianças merecem como qualquer criança brasileira. Por isso, peço que o governo federal adote as escolas da minha cidade”.

Para isso, o caminho é uma carreira nacional com elevados salários e elevadas responsabilidades, com estabilidade submetida a avaliações periódicas, em edificações bonitas e confortáveis com os mais modernos equipamentos, em horário integral.

Lamentavelmente nem todos os prefeitos teriam este gesto de responsabilidade para com suas crianças. Muitos vão preferir continuar sem condições de pagar bons salários, enfrentando greves periódicas que terminam com mínimos aumentos de salários e imensas perdas pedagógicas. Mas, se de repente, muitos despertassem e colocassem os interesses de suas crianças acima de tudo, o governo federal poderia definir critérios para selecionar aos poucos as cidades que seriam adotadas.

Na medida em que este caminho fosse dando certo, em 20 ou 30 anos veríamos todas as crianças brasileiras serem tratadas como brasileiras, em vez de municipais, como hoje. O país teria um sistema de qualidade e com qualidade igual na educação de suas crianças, quebrando o muro do atraso e o muro da desigualdade que nos caracterizam.