quinta-feira, 1 de maio de 2014

O círculo vicioso da desigualdade, por Otaviano Helene, in CC

Análise

O círculo vicioso da desigualdade

Ainda estamos entre os países em que os pobres têm a menor participação na produção econômica nacional e os ricos, a maior
por Otaviano Helene — publicado 20/03/2014 10:08
Marcelo Camargo/Agência Brasil
Desigualdade
Moradores da Favela do Moinho, localizada sobre o Viaduto Orlando Murgel no centro da capital paulista, derrubam parte de um muro de contenção que circunda a comunidade
O Brasil nunca se caracterizou por ter uma boa distribuição de renda. Fragilizado nesse quesito e como consequência do projeto econômico da ditadura civil-militar, o país chegou a ser o recordista mundial em concentração de renda. A frase de efeito da ditadura, “é preciso primeiro aumentar o 'bolo', para depois reparti-lo”, visava, na verdade, legitimar o aumento da concentração de renda e não ilustrar uma relação de causa e efeito – o bolo só cresce se estiver concentrado. Até mesmo, porque sendo o bolo pequeno, o melhor a fazer é dividi-lo de forma muito criteriosa para evitar desperdícios.
Depois do fim da ditadura e com alguns sobe e desce, a nossa distribuição de renda só voltou a apresentar alguma melhora a partir do final da década de 1990 e, em especial, ao longo da década de 2000. Essa redução da concentração de renda foi possivelmente propiciada pela instituição de vários benefícios sociais a partir da Constituição de 1988, pelos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, pelo aumento real do salário mínimo, pela retomada do crescimento da renda per capita, pelo crescimento do emprego, principalmente do emprego formal, e por vários outros fatores. Entretanto, apesar dessa pequena melhora, ainda estamos entre os países em que os pobres têm a menor participação na produção econômica nacional e os ricos, a maior.
No Brasil, em média, cada um dos membros dos 10% mais ricos gasta em uma semana o mesmo que cada um dos 10% mais pobres, também em média, ganha e gasta durante todo um ano, ou seja, uma relação de renda média entre mais ricos e mais pobres da ordem de 50. Apenas para comparação: países como Paquistão, Egito, França, Índia, Ruanda, Vietnam ou Finlândia, os 10% mais ricos ganham entre cinco e dez vezes mais do que os 10% mais pobres. (Essa lista não foi escolhida a dedo, composta pelos países menos desiguais, mas, sim, escolhida para mostrar que desigualdade não é necessariamente uma característica inescapável ou imposta pela cultura, religião, região geográfica, nível de industrialização do país etc.: desigualdade é alguma coisa que cada país constrói ou não, fruto de sua realidade interna.) Mesmo nos EUA, pátria-mãe do liberalismo, a mesma relação é da ordem de “apenas” 15 vezes.
A distribuição de renda é um indicador fortemente correlacionado com muitos outros indicadores sociais, como expectativa de vida, mortalidade infantil, criminalidade, gravidez na adolescência, desempenho escolar etc. Quando as demais condições são equivalentes (como a renda per capita, as características culturais, os condicionantes geopolíticos etc.), países com melhores distribuições de renda apresentam melhores indicadores sociais do que aqueles mais desiguais. Um TED Talk que ficou bastante popular e que vale a apena ser visto (How economic inequality harms societies – Como a distribuição de renda prejudica as sociedades – http://www.ted.com/talks/richard_wilkinson.html), não deixa dúvidas que é a melhor distribuição de renda o fator responsável por melhores ambientes sociais nos diversos países.
Desigualdade de renda leva a desigualdade na educação. Uma das consequências sociais da concentração de renda é na educação recebida por uma pessoa. No Brasil, a qualidade e a quantidade de educação formal recebida por uma criança ou um jovem é quase totalmente dependente de sua condição social e econômica. Assim, entre os 20% mais pobres (grupo formado por pessoas cujas rendas domiciliares per capita estão abaixo de R$ 300 por mês, aproximadamente, a valores de 2013) a conclusão do ensino fundamental é rara exceção: a regra é deixar o sistema educacional antes dos 8 ou 9 anos obrigatórios. No outro extremo, dos 20% mais ricos, a conclusão do ensino superior é a regra. Conclusões: a nossa péssima distribuição de renda está produzindo uma população com enorme desigualdade educacional e fazendo com que um também enorme contingente deixe a escola com um nível de formação que, já hoje, seria insuficiente para garantir o pleno exercício da cidadania ou a obtenção de uma atividade econômica pelo menos razoável.
Medir a diferença educacional em cifrões pode ajudar a perceber quão grande e grave é a desigualdade educacional no Brasil. O investimento educacional entre aqueles que sequer concluem o ensino fundamental, considerando os valores atuais do Fundeb, pode não atingir R$ 20 mil ao longo de toda a vida. Enquanto isso, nos grupos mais favorecidos, apenas os investimentos escolares, que se iniciam já na primeira infância e duram até pelo menos o final de um curso superior, pode chegar perto de meio milhão de reais ou mesmo ultrapassar esse valor. Se forem adicionados os investimentos voltados à complementação educacional fora das escolas, como cursos de línguas, atendimento psicológico, viagens culturais, atividades esportivas, aulas particulares, materiais educacionais etc., coisas comuns entre os contingentes mais favorecidos e inexistentes nos grupos mais pobres, os valores acumulados na educação dos mais ricos ao longo da vida seriam ainda maiores.

Fechando o círculo vicioso. Assim como a escolarização de uma pessoa depende de sua renda, a renda de uma pessoa depende de sua escolarização. Há muitas informações estatísticas que mostram que (e quanto) a renda de uma pessoa cresce com seu nível de escolarização. Por exemplo, segundo dados do IBGE, trabalhadores com nível superior ganham, em média, três vezes mais do que trabalhadores sem nível superior e pelo menos seis ou sete vezes mais do que aqueles que sequer concluíram o ensino fundamental.
É fechado, então, o círculo vicioso: nosso sistema educacional é muito desigual por causa da combinação da nossa absurda concentração de renda com o fato que a educação é uma mercadoria à qual cada um tem acesso segundo suas possibilidades econômicas; quando as pessoas deixam as escolas e ingressam na força de trabalho do país, a desigualdade educacional se transformará em desigualdade de renda.
Se esse círculo vicioso não for rompido, permaneceremos entre os países mais desiguais do mundo, uma vez que os mecanismos de redistribuição de renda que nos tiraram da pior posição são incapazes de ir além de certos limites e todos os problemas sociais criados por essa desigualdade estarão presentes no futuro. É esse o caminho que seguiremos?

Otaviano Helene é professor no Instituto de Física da USP, ex-presidente da Associação dos Docentes da USP, ex-presidente do INEP/MEC

A difamação da política afeta o eleitor, por Mauricio Dias, in Carta Capital

Análise / Mauricio Dias


As pesquisas mostram que, fosse hoje o pleito, 62% dos eleitores não votariam em ninguém
por Mauricio Dias — publicado 26/04/2014 10:01
ABr
Excetuada uma vitória do pastor Everaldo Pereira, por qualquer razão natural ou sobrenatural, não há até agora e, talvez nem haja até o dia da eleição, novidade maior do que o refluxo de eleitores apontado nas pesquisas eleitorais recentes. A soma dos porcentuais de votos brancos e nulos, de rejeição e daqueles que não quiseram ou não souberam responder, está próxima dos 40%. É um porcentual inédito e expressa, aproximadamente, quase 50 milhões de um total de 140 milhões de eleitores brasileiros.
Há dados conjunturais diversos dando vida a esse problema. Alguns são antigos e outros, mais modernos, como é o caso da demonização dos políticos. Dos gregos de ontem aos brasileiros de hoje, os eleitores, na essência da escolha, pouco mudaram. A urna eletrônica não modifica razões pessoais do cidadão na hora de votar.
Essa demonização não vem de longe. Foi acentuada, radicalizada pela mídia conservadora, após a vitória do metalúrgico Lula, em 2002. O ataque aos políticos, resumidamente, tem sido sempre, até agora, uma tentativa de desestabilizar a base governista. É preciso dizer com franqueza, porém, que os políticos contribuem para tanto.
O descrédito facilitou a ingerência de uma questão chamada judicialização da política, que, por sinal, perturba o processo democrático ao longo do mundo. Por aqui, ela tem favorecido a eleição de procuradores e, mais recentemente, soprou para os lados do ministro Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal. Ele ficou feliz. Mas não se arriscou à prova real da popularidade obtida após o julgamento da Ação 470, mais conhecida como “mensalão”.
A pesquisa VoxPopuli divulgada por CartaCapital, na edição anterior a esta, buscou provocar o eleitor a falar do sentimento dele, a satisfação e a insatisfação, com o Brasil. Os satisfeitos somaram 54% e os insatisfeitos, 46%. A diferença não é grande.
Em 2013, após as manifestações populares entre junho e julho, o Ibope mediu o Índice de Confiança Social (ICS) da população nas principais instituições de poder.
A queda na confiança é ampla e atinge os bombeiros e parte das instituições tradicionalmente mais confiáveis (tabela).
Em pesquisa mais recente, os números do Ibope consolidam esse momento adverso a partir de sondagem sobre a intenção de votos para a Presidência.
Dos 37% que recusaram todos os candidatos, 72% não têm nem um pouco ou quase nenhum interesse na próxima eleição de 2014. Um dos pontos mais curiosos, indicativo do desencanto do eleitor,  pode ser tirado dos que responderam “ruim e péssimo” na avaliação de Dilma: 62% não votariam em ninguém se a eleição fosse hoje.
É uma sinalização objetiva que ajuda a explicar por que Aécio Neves e Eduardo Campos não herdam os eleitores que, até agora, tiraram o apoio à reeleição de Dilma.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Erro no acerto


Repercussão de pesquisa sobre estupro evidencia que é preciso aprofundar o assunto, apesar do índice errado quanto à mulher ‘merecer’ ser violentada, diz socióloga

05 de abril de 2014 | 14h 46

Mônica Manir - O Estado de S. Paulo
Não diria surpresas, mas espantos. O primeiro foi saber, na semana passada, que 65,1% da sociedade brasileira concordava com a frase "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas". O segundo foi ser informada, na sexta-feira, de que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), autor da pesquisa dos 65,1%, revertera esse número para 26%. Era uma errata no resultado mais divulgado da Tolerância Social à Violência contra as Mulheres, à qual tantas mulheres reagiram com a hashtag "EuNãoMereçoSerEstuprada". O Ipea estava nu.
Desencosta! Manifestantes na entrada da Estação Sé do metrô fazem ‘rolezinho contra as encoxadas’ - Daniel Teixeira / Estadão
Daniel Teixeira / Estadão
Desencosta! Manifestantes na entrada da Estação Sé do metrô fazem ‘rolezinho contra as encoxadas’
"Foi um erro rústico no processamento e na publicação", diz a socióloga e pesquisadora Fátima Pacheco Jordão. Com décadas de experiência na análise de pesquisas, ela não desqualifica a aplicação dessa última. Muito menos o tema central. São meio milhão de estupros e violências contra a mulher anualmente, afirma, e isso apenas os casos notificados. Os não notificados poderiam abrir uma conta de 14 mil por dia.
Para Fátima, mãe de duas filhas e conselheira do Instituto Patrícia Galvão, a repercussão toda só incentiva mais enquetes. "O estupro é um fenômeno que está no eixo do machismo, não é ponto de curva."
Como analisar o erro na pesquisa do Ipea?
Fátima Pacheco Jordão - O erro foi grosseiro e rústico porque não é um erro na aplicação da pesquisa, mas no processamento e na publicação. Normalmente a gente pensa em erro por causa da amostra, por causa das desproporções, dos vieses e assim por diante. Mas não é um erro técnico, é de edição. Uma conferência simples o filtraria imediatamente. Acho que perceberam o equívoco porque houve uma enorme repercussão na sociedade, com a presidente se manifestando no Twitter, mulheres improvisando frases e usando seu corpo para expressar revolta e reação contra esse dado.
Quanto isso compromete a imagem do instituto?
Fátima Pacheco Jordão - Não compromete totalmente, mas compromete. O Ipea tem adversários políticos, os conservadores vão desqualificar a pesquisa porque ela denuncia coisas que as pessoas acham que não devem ser denunciadas, briga de marido e mulher tem que se restringir à casa e por aí vai.
Mas, uma vez detectado o erro, o tema não perde a relevância.
Fátima Pacheco Jordão - Claro que não. É exatamente o contrário: a repercussão evidencia que esse tipo de tema deve ser mais e mais pesquisado. Não se está metendo a colher, mas metendo o dedo numa ferida da sociedade brasileira. Tenho aqui uma pesquisa feita pelo Instituto Patrícia Galvão com o Data Popular encomendada por oito instituições, entre elas o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional de Defensores Públicos Gerais. Ela é de maio de 2013, um ano atrás, portanto. Entre as frases, há uma que se aproxima daquela que gerou a confusão na pesquisa do Ipea: "Mulher que apanha é porque provoca". 65% discordaram, 17% concordaram e outros 17% nem concordaram nem discordaram.
O que isso significa? Que a sociedade brasileira está indo na direção certa?
Fátima Pacheco Jordão - Significa que as pessoas não compram essa ideia. Isso está muito claro na pesquisa. "Bater na parceira não deve ser crime" era outra frase. 88% discordaram. Ou seja, a pesquisa tem algo na mesma direção do "homem que bate deve ir para a cadeia" do levantamento do Ipea. Ao mesmo tempo, 85% de homens e mulheres concordam que as mulheres que denunciam seus maridos e namorados agressores correm mais risco de serem assassinadas por eles. Isso expressa que a situação está muito pior do que aparenta.
O que comprova a subnotificação.
Fátima Pacheco Jordão - Evidentemente. No Brasil, meio milhão de estupros e violência contra a mulher ocorrem anualmente. Meio milhão notificado, isto é, cerca de 1.400 por dia. Se isso corresponde apenas aos 10% que se sabe serem notificados, multiplica-se por 10 e chegamos a 14 mil estupros e violência diários. O fenômeno está no centro do machismo, não na beirada da patologia. Está no eixo da cultura patriarcal, não é ponta de curva. É o controle no limite físico da mulher - ou por agressão ou por estupro.
Na pesquisa do Ipea já revista, quando se fala em violência factual há uma reprovação dos entrevistados. Mas, quando usaram ditados populares como ‘em briga de marido e mulher não se mete a colher’, apareceu uma aprovação. Isso não lhe parece contraditório?
Fátima Pacheco Jordão - Não é contraditório. As escalas é que têm conteúdos diferentes. A pesquisa traz o lado conformista, que parte de ditos populares, mitos sociais, frases cujo conteúdo é ultrapassado e com as quais é fácil concordar até metaforicamente. Sim, "roupa suja se lava em casa", "em briga de homem e mulher ninguém mete a colher". Agora "homem tem de ser preso?" Tem. "Homem pode gritar e xingar as mulheres?". Não. Enquanto é ideológico, refletido pelos ditados, as pessoas tendem a ser mais tolerantes com a violência. Quando a opinião é baseada na prática, fica mais clara a resistência. Essa pesquisa e a do Instituto Patrícia Galvão não retratam uma sociedade eminentemente conservadora, mas uma sociedade em transformação.
É fundamental fazer uma pesquisa por sexo? Descobrir o que disseram as mulheres e o que disseram os homens? Isso não apareceu na pesquisa do Ipea.
Fátima Pacheco Jordão - Foi algo que achei falho na análise dos dados - e aí não tem a ver com a formulação. Em todas as pesquisas que conheço ligadas a tensão de gênero, seja mulher na política, seja violência, seja direito das mulheres, existe uma resposta muito maior das mulheres em relação à dos homens, mostrando a sensibilidade delas para a questão. Na pesquisa do Ipea, em algum momento eles afirmam que há a chance de as respostas femininas serem 1.7 mais altas, quase o dobro das masculinas. Um exemplo hipotético e aproximado: se entre mulheres a concordância for de 40%, entre homens será de 68%. Então, nos graus de licença para a violência, não se pode concluir que as mulheres são machistas sem que os dados sejam analisados por sexo separadamente. Se cortar a pesquisa por gênero com a diferença que eles mesmos apontam, há coisa aí. Ela está retratando uma fotografia na qual aparecem uma zebra e um cavalo. Teria necessariamente de ser analisada dos dois pontos de vista. Porque são dois pontos de vista conflitantes.
Esse conflito tem se acentuado?
Fátima Pacheco Jordão - Em relação aos direitos das mulheres, sim. Está se alargando. Mais ou menos como estão se alargando as distâncias entre as pessoas mais pobres e mais ricas com relação a políticas sociais. A expressão da violência é derivada do inconformismo dos detentores do poder, no caso os homens, com a capacidade das mulheres de expressar, enunciar e ver a violência como fenômeno social. Elas a enxergavam como problema individual: será que eu olhei de maneira enviesada para algum homem? Será que a minha saia estava mais curta? Esses controles estão perdendo a eficácia.
Qual é a potência de uma hashtag como EuNãoMereçoSerEstuprada na diminuição desse controle?
Fátima Pacheco Jordão - É enorme. Não precisa juntar trinta pessoas na frente do Theatro Municipal. Você tira um selfie, escreve algumas coisas no corpo e, no caso dessa jornalista, ainda pode dizer: "Meu marido me ajudou". Outras fotos apareceram, isso ganha uma tremenda difusão. A internet está fazendo uma revolução para a qual a sociedade talvez não esteja preparada, e não é só no caso do gênero.
Por que não estaria preparada?
Fátima Pacheco Jordão - Há um processo de aprendizagem desde o processo formal escolar até a literatura, passando pela ficção de massa - a novela -, que ainda é muito retrógrada. Essa mulher que está na propaganda representa você? Não. A mulher é sempre apresentada como bobinha, imóvel, manipulável, o marido é quem está na ponta da mesa e define como será a assinatura da TV.
Ou é apresentada como objeto de sedução. Vide a propaganda ‘trem é bom para xavecar’.
Fátima Pacheco Jordão - É de um insulto...! E aí vem a frase do secretário de Estado de Transportes Metropolitanos (Jurandir Fernandes) sobre a repercussão desses casos de abuso no metrô: "Como não tinham nada para falar, entrou a história do assédio, assédio, estupro, estupro". O relato das mulheres que são assediadas no metrô é uma coisa tremenda. Isso tem anos e anos e anos. Até se inventou vagão feminino.
A jornalista que divulgou a hashtag disse que, cinco minutos depois de postar, recebeu ameaça de estupro; dez minutos depois, aparecia num site pornô pedindo para ser violentada. Como avaliar essas reações virtuais?
Fátima Pacheco Jordão - A nossa sociedade tem um verniz de igualdade entre homens e mulheres com regras muito férreas de agressão, pressão e desqualificação por parte deles em relação a elas. Tudo o que ultrapassa os limites impostos pelos opressores gera comentários na internet muito próximos aos de rodas de bar. O manejo disso é um processo de aprendizagem. Mas, efetivamente, os graus de liberdade que um indivíduo tem hoje de expressar o que pensa, para o bem e para o mal, consistentemente ou não, é enorme. A internet talvez seja a expressão mais crua do ambiente cultural.
É sabido que um acusado de estupro corre grande risco de ser violentado na cadeia. O que leva a sociedade a aceitar isso? Sede de vingança?
Fátima Pacheco Jordão - Nesses datenas da vida, programas que passam à tarde, a desqualificação do agressor está quase igual à desqualificação da mulher. O estuprador é visto como monstro, o que não resulta num aprendizado. Ao contrário: se confirma a polarização. Mas eu não vejo um grande debate sobre isso. Nunca vi. Acho coerente com o que pesquisei no início da década de 1990, durante a campanha para a Prefeitura de São Paulo em que se opunham Suplicy e Maluf. Numa entrevista na rádio, o Maluf disse o seguinte: estupra, mas não mata. Demorou muito para o PT reagir, uns 15 dias. O partido testou isso e descobriu que os homens se revoltavam mais do que as mulheres com a frase do Maluf, mas dentro da ótica machista: eles viam a sua mulher sendo estuprada. Então a ameaça que o estuprador representa para o homem é a ameaça ao machismo. Quanto mais fundo se mergulha nesse poço, mais oprimida se enxerga a mulher, real e virtualmente.
Falta analisar as consequências do estupro para uma mulher?
Fátima Pacheco Jordão - Falta. Você imagina as consequências para a vida? Não tem que pesquisar isso? Há repercussão em todas as áreas - na saúde, por exemplo. DSTs, gravidez precoce, abortos feitos em condições clandestinas... Porque, embora o aborto seja legal nessa condição de estupro, há campanhas para que não seja feito. Expõe crianças de 12, 13 anos, especialmente quando violentadas por pais, tios, padrastos. Agora veja: estamos numa época em que a Igreja resolveu peitar a pedofilia. Quer mais progresso que isso?