domingo, 2 de março de 2014

O caminho da ponderação - EDITORIAL O ESTADÃO


O ESTADO DE S. PAULO - 02/03
Durante as comemorações dos 20 anos do Plano Real no Senado Federal, seu criador, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, não se deixou ficar sentado sobre os louros do sucesso da política monetária que comandou e revolucionou a economia nacional. Também se recusou a adotar uma retórica da crítica pela crítica aos adversários do Partido dos Trabalhadores (PT) que lhe sucederam na Presidência. Em vez disso, o tucano - eleito duas vezes em primeiro turno, tamanha foi a repercussão na vida do cidadão comum de seu plano de estabilização - tratou do futuro do País.
Em Brasília, Fernando Henrique Cardoso atuou como principal cabo eleitoral de um presidenciável do partido, o senador Aécio Neves, principal obstáculo à reeleição da presidente Dilma Rousseff. Para ele, o Brasil clama por mudanças, por gente nova, e há uma "fadiga de material". Não se trata, propriamente, de uma novidade espetacular, pois, desde as manifestações nas ruas contra a péssima gestão do Estado brasileiro, esse desejo de mudança é público e notório.

Assim que as multidões deixaram as ruas no meio do ano passado, os institutos de pesquisa saíram a campo para pesquisar e constataram que nada menos do que 66% dos brasileiros entrevistados exigiam mudanças na gestão pública. Na semana passada, esse clamor se fez ouvir de novo: o instituto MDA, em levantamento patrocinado pela Confederação Nacional do Transporte (CNT), revelou que o anseio continua o mesmo. Apenas 12,1% dos entrevistados aceitam a manutenção do estilo da atual administração federal. Enquanto isso, 23,1% preferem manter algumas das ações do governo Dilma e 25%, a maioria de tais iniciativas. A maior parte dos consultados, 43,7%, porém, reivindica uma mudança total do que está sendo feito pela aliança liderada pelo PT. Ao constatar isso, Fernando Henrique Cardoso chamou a atenção para os 12 anos de gestão petista, embora não os tenha citado de forma explícita.

O que explicitou, isso sim, foi o reconhecimento de que o Brasil carece muito de líderes jovens e capacitados a procurar o sucesso fora das fórmulas e soluções do passado, no qual modestamente se incluiu. "Minha geração já passou. Nós já morremos. Não dá mais. Tem de passar (as responsabilidades) para outra geração", disse ele.

Como qualquer brasileiro responsável, o ex-presidente está preocupado com o acirramento do debate político neste ano de eleições para a Presidência da República e os governos estaduais. Mesmo reconhecendo que a guerra nos palanques faz parte do jogo da democracia, nem sempre limpo (pois "sem emoção ninguém consegue transmitir nada"), ele fez votos para que esta campanha, pelo menos, "não seja de insultos nem de dossiês falsos, toda essa coisa".

Ele próprio contribuiu para esse apaziguamento ao discordar do presidenciável tucano Aécio Neves, ao seu lado, que prenunciou "anos difíceis" para o sucessor de Dilma, qualquer que seja ele, porque o País estaria "mergulhado num ambiente de desesperança e descrença no futuro". FHC contemporizou: "Eu me preocupo, mas não posso ser injusto e dizer que o governo não controla a inflação. A inflação, comparada com a do início do Plano Real, que era de 20%, 30% ao mês, agora é de 6% ao ano. (...) Agora o Brasil está com um compasso diferente do compasso do mundo. Tem que ajustar. Vamos ser otimistas. Eu sou otimista. Não temos que ficar apenas jogando pedra. Temos que construir".

Tal ponderação condiz com o conselho de mais velho dado a Aécio. "Temos um bom candidato. (...) Ele tem que dizer ao País: é isso, tem um caminho, o caminho é esse", pontificou o ex-presidente. Com sua bagagem de cientista social respeitado no mundo inteiro, ele tocou no ponto nevrálgico da fragilidade da oposição à atual aliança governista: a falta de propostas concretas que animem o eleitor a evitar o "mais do mesmo", que é, no fundo, o mote da campanha pela reeleição de Dilma. O eleitor quer mudar, sim, mas também exige garantias de que a mudança venha para melhorar sua vida.

Ambição real - EDITORIAL FOLHA DE SP

 FOLHA DE SP - 02/03

Aniversário da medida que estabilizou moeda serve para lembrar políticos, do governo e da oposição, de que falta ao debate atual visão de futuro


O aniversário de 20 anos da medida provisória 434/1994, que instituiu a URV (Unidade Real de Valor) e preparou o caminho para o lançamento do real, decerto merece celebração.

Não pela nostalgia de um momento de grandes mudanças, quando os artífices do Plano Real demonstraram singular visão de Estado --destaque-se, além do então presidente Itamar Franco e seu ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, os economistas André Lara Resende, Edmar Bacha, Gustavo Franco e Pérsio Arida.

A lembrança é válida pela constatação de que, mesmo em meio às dificuldades daqueles dias, o governo construiu consensos e obteve legitimidade para um salto de qualidade nas instituições. Há, portanto, lições para o Brasil de hoje.

Sem a estabilização da moeda não teriam sido possíveis os avanços posteriores, como o alargamento dos direitos sociais e a redução da desigualdade. O fim da inflação galopante, em si, foi o primeiro passo para isso, pois eram os mais pobres os mais prejudicados.

Houve erros graves, como os desequilíbrios que fizeram o Brasil recorrer ao FMI em 1998. Mas mudanças de monta na condução da economia deram ao país uma estabilidade havia tempo esquecida.

Depois, o presidente Lula construiu sobre esses alicerces, criando um grande mercado interno de massas. Manteve, especialmente no primeiro mandato, a aderência aos pilares macroeconômicos e acelerou a inclusão social.

O bom momento mundial catalisou as ações internas, e o Brasil registrou crescimento acelerado. Foram criados mais de 15 milhões de empregos entre 2003 e 2010.

Nos últimos anos, porém, cessaram as propostas ambiciosas. A administração Dilma Rousseff, em especial, abusou do modelo de consumo, sem enxergar a necessidade de novas estratégias à luz das transformações globais e da baixa produtividade interna.

Reformas em áreas como Previdência e tributação, fundamentais para o equilíbrio das contas públicas e recuperação da capacidade de investimento do Estado, permanecem paralisadas enquanto as autoridades de turno vendem a ilusão de que tudo vai muito bem.

O ex-presidente Fernando Henrique tem razão quando fala da natural fadiga que acomete grupos políticos instalados por muito tempo no poder --regra que vale para todos os partidos, em todos os níveis da Federação.

Fundamental, nesse sentido, oxigenar o debate --não necessariamente com novos mandatários, mas sem dúvida com novas ideias.

Forças governistas e seus opositores poderiam se inspirar nos exemplos do passado. Pouco importam, no fundo, discussões sobre o mérito do que já desbota no tempo; o país demanda uma visão de futuro. O ano é propício.

O coronel Avólio e seu serviço ao Exército - ELIO GASPARI


FOLHA DE SP - 02/03

Militar contou à Comissão da Verdade o que viu no dia em que mataram o deputado Rubens Paiva


Armando Avólio Filho era um jovem tenente no dia 20 de janeiro de 1971, quando Rubens Paiva chegou preso ao DOI do Rio de Janeiro. Durante 43 anos seu nome foi tangencialmente associado a esse crime. Em 1996, pediu um conselho de justificação para livrar-se da suspeita. Seu pedido foi negado pelo ministro Zenildo de Lucena. Em diversas ocasiões mostrou seu interesse em esclarecer os fatos, mas os chefes da ocasião sempre ordenaram-lhe que ficasse calado, para proteger a instituição. Felizmente, protegendo a instituição, Avólio decidiu contar à Comissão Nacional da Verdade o que viu. Só o que viu.

Desse depoimento, revelado pelo repórter Chico Otávio, resulta que ele viu um tenente (Fernando Hughes de Carvalho) numa sala, com um homem destruído. Mais tarde associou-o a Rubens Paiva. Até aí o caldo é ralo, pois no DOI se apanhava e lá morreu de pancada o ex-deputado. No máximo, a responsabilidade deslizaria para um tenentinho que, além do mais, está morto. A principal revelação de Avólio, hoje um coronel reformado, está no fato de que, naquele dia, contou o estado do preso ao major José Antonio Nogueira Belham, comandante do DOI. Belham sabe o que acontecia no destacamento, mas nunca se meteu com os bicheiros e contrabandistas que bicavam no DOI do Rio. Seguiu sua carreira e chegou a general de divisão. No governo de Lula, já na reserva, ocupava a vice-presidência da Fundação Habitacional do Exército. Encrencou-se com as viúvas dos militares mortos no terremoto do Haiti e foi demitido.

Belham informa que no dia 20 de janeiro de 1971 estava de férias. (Nesse caso, a responsabilidade deslizaria para o vice-comandante, que está morto.) Estava de férias, mas estava lá. Esse fato, mencionado por Avólio, foi formalmente corroborado por um coronel (capitão à época), que morreu em janeiro.

Quem tirou o cadáver de Rubens Paiva de lá? Quem coordenou o teatrinho? (Num caso anterior, fracassado, foi o Centro de Informações do Exército, subordinado diretamente ao gabinete do ministro Orlando Geisel e comandado por seu chefe de gabinete.) Depois da revelação da presença de Belham na cena do DOI, a comissão viu a ponta de dois fios que levam a meada para cima. Afinal, tanto trabalho para responsabilizar um tenente morto seria um novo teatrinho, institucional. Nele, cultiva-se uma narrativa segundo a qual a tortura e os assassinatos eram coisa de agentes desautorizados (de preferência, mortos). Patranha. Eram uma política de Estado, dos presidentes, ministros e generais comandantes das grandes unidades. Para ilustrar: o tenente Hughes ganhou a Medalha do Pacificador no ano da morte de Rubens Paiva. Cada torturador foi um torturador, mas o conjunto dos torturadores foi um plantel formado, disciplinado e premiado por seus superiores, transformando jovens oficiais em assassinos.

Chegaram ao conhecimento de membros da comissão dois fatos. No primeiro, quando começou a operação de retirada do cadáver, durante a madrugada, as luzes foram apagadas. No segundo, contado por um militar, dois oficiais do CIE barraram-no na porta do DOI. Um deles está vivo.

Atitudes como a de Avólio nesse caso servem às Forças Armadas, tirando-lhe das costas a cruz das mentiras desmoralizantes que carregam desde o século passado. Ele tirou de sua biografia uma acusação que carregou em silêncio ao longo de décadas. Negaram-lhe a oportunidade funcional, mas o coronel falou na jurisdição competente. Pode parecer que seja pedir muito, mas se os atuais comandantes militares fizessem um elogio público a todos os oficiais que estão colaborando com as investigações, todo mundo ganharia. Podem até fazer um elogio genérico, abrangendo aqueles que mentem, não faz mal. Basta sinalizar que condutas como a de Avólio servem ao Exército.


SELFIE

Aconteceu em Belo Horizonte há quinze dias.

A senhora caminhava nas proximidades da Assembleia Legislativa e aproximou-se um homem magro, de camiseta, com uma faca:

--Vai passando a bolsa. Estou com fome.

--Passo, mas primeiro deixe eu tirar os documentos.

--Pode tirar, esse negócio de burocracia é uma bosta... Pera aí... A senhora não é a ministra?

--Sou.

--Foi mal. Pode ficar. Gosto muito da senhora, desde o tempo do governador Itamar.

--Você quer dinheiro para comer?

--Não, vá em paz. Agora, o que eu queria era tirar uma fotografia com a senhora.

--Isso não. Meu cabelo está muito desarrumado.

O cidadão guardou o celular e a ministra Cármen Lúcia seguiu em frente.

ALZHEIMER

O Ministério Público Federal colheu dezenas de depoimentos de civis e militares que estavam na incubadora e na cena do atentado do Riocentro, em 1981.

Quase todos os militares lembraram de pouca coisa. Um dos que mostraram ter melhor memória foi o coronel Edson Lovato, que começou seu depoimento esclarecendo que sofre do mal de Alzheimer e toma 13 comprimidos por dia.

VENDO O FUTURO

Pelo andar da carruagem, alguns deputados que formaram o "blocão" e querem azucrinar o governo instalando mais uma CPI da Petrobras daqui a dez anos estarão se defendendo no Supremo Tribunal Federal. Sustentarão que é improcedente a acusação segundo a qual formaram uma quadrilha. Pelo visto, terão bons argumentos, vindos de sábios da jurisprudência.


UM GOLPE DO ATRASO NOS PONTOS DE ÔNIBUS

Está em curso um novo golpe de marquetagem de prefeitos e cartéis de companhias de transportes públicos. É a colocação de painéis eletrônicos em pontos de ônibus, informando as previsões de horários de passagem dos coletivos por ali. Trata-se de uma bugiganga redundante, visto que hoje no Brasil há 271 milhões de telefones celulares e, com eles, pode-se obter essa informação, antes mesmo de se chegar ao ponto.

Houve época, quando não existiam os necessários aplicativos, em que esses painéis eram úteis (quando funcionavam). Se alguém quiser colocá-los nos pontos, pode fazê-lo, desde que os prefeitos não joguem dinheiro da Viúva nisso, nem os cartéis dos ônibus apresentem seus custos (e sua manutenção) nas planilhas com que vão buscar aumentos de tarifas. O que o passageiro quer deles é regularidade no serviço e conforto na viagem, e isso não dão.

Quando esses painéis são apresentados como um exemplo de políticas públicas modernas de prefeitos ou dos serviços dos cartéis, estão apenas confirmando o velho versinho do poeta Cacaso:

Ficou moderno o Brasil,

ficou moderno o milagre

Água já não vira vinho,

vira direto vinagre.