domingo, 23 de fevereiro de 2014

Ilegal, mas pague-se


Para jurista, liminar dos supersalários afronta Constituição com a tese de que uma inconstitucionalidade nem sempre é sustentável

23 de fevereiro de 2014 | 2h 14

Dalmo de Abreu Dallari* - O Estado de S.Paulo
Com o objetivo de proteger o interesse público, em termos de moralidade administrativa e bom uso dos recursos à disposição dos governantes e administradores públicos, a Constituição brasileira de 1988 fixou uma regra clara e objetiva estabelecendo uma limitação para a remuneração dos servidores públicos. A fixação de norma constitucional em tal sentido resultou do reconhecimento da necessidade de impedir a continuação de uma prática imoral e contrária ao interesse público, que era o pagamento de remuneração exageradamente alta para os "amigos do rei" que fossem designados para algum posto no setor público. Por esse meio eram favorecidos os parentes e amigos dos detentores do poder e de seus aliados, além de integrantes de seu dispositivo político-eleitoral. E o povo era o grande lesado, pois os recursos obtidos pelo poder público, em grande parte provindos do pagamento de tributos, que deveriam ser usados para a realização de serviços e obras de interesse de todo o povo, eram desviados para sustentar a corrupção privilegiada.
Ministro diz que redução dos salários ao teto não observou o 'contraditório administrativo' - Fellipe Sampaio/SCO/STF
Fellipe Sampaio/SCO/STF
Ministro diz que redução dos salários ao teto não observou o 'contraditório administrativo'
Para impedir que isso continuasse acontecendo consagrou-se na Constituição, no artigo 37, inciso XI, uma norma estabelecendo que "a remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos (…), dos detentores de mandato eletivo e dos demais agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal, em espécie, dos ministros do Supremo Tribunal Federal". Aí está, com absoluta clareza, a limitação constitucional para a remuneração dos que, a qualquer título, contratam com o poder público a prestação de serviços. Em decorrência dessa norma expressa, a partir do momento em que passou a vigorar a Constituição de 1988 todos os agentes e órgãos públicos incumbidos de efetuar o pagamento aos prestadores de serviços ficaram legalmente impedidos de pagar acima do limite constitucional. É oportuno lembrar que tal limite é atualmente de R$ 29.400,00, valor muito acima da média salarial brasileira e que, obviamente, assegura a quem o recebe a possibilidade de manter um padrão de vida da mais alta qualidade.
Tudo isso deve ser levado em conta neste momento em que o pagamento de remuneração superior ao limite constitucional a servidores do Congresso Nacional foi sustado por decisão do Tribunal de Contas da União, havendo uma contestação judicial dessa decisão, como se ela ofendesse algum direito dos contestantes. Na realidade o pagamento acima daquele limite era absolutamente ilegal, sendo consagrado na teoria jurídica e na jurisprudência de todos os sistemas constitucionais democráticos que a constatação de uma prática ofensiva de preceito constitucional impõe sua imediata suspensão. É absurdo dizer que alguém tem o direito de continuar a ser beneficiado por alguma inconstitucionalidade.
Por tudo isso, causou surpresa uma decisão recente do ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, que, numa liminar em processo movido por servidores, determinou que volte a ser feito o pagamento da quantia ilegal, ou seja, que volte a ser praticada a inconstitucionalidade, enquanto os servidores atingidos, que eram beneficiários daquela prática ilegal, não exercerem seu direito de ampla defesa, tentando demonstrar que sua remuneração não ofende a limitação constitucional. Se for mantida essa decisão, antes de aplicar o preceito expresso da Constituição será preciso esperar que cada um dos beneficiados procure sustentar, pelas vias administrativas e judiciárias, seu direito à super-remuneração. E enquanto durarem essas discussões, o que pode levar alguns anos, a Constituição será posta de lado, ostensivamente afrontada pela tese, juridicamente absurda, de que uma inconstitucionalidade não pode ser sustada enquanto os interessados nela não usarem de todos os meios para tentar provar que têm direitos que a Constituição não atinge.
Para se ter ideia do absurdo dessa orientação, basta lembrar um precedente. Pela Súmula 473, decidiu o Supremo Tribunal Federal que "a administração pode anular seus próprios atos quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos". A discussão sobre esse poder da administração foi gerada por contratação de obras sem observância da exigência de licitação. Depois de iniciada a execução das obras ilegalmente contratadas houve recurso administrativo de candidatos à execução das mesmas obras que não tiveram a possibilidade de concorrer para obtenção dos contratos. Se nesse caso fosse adotada a orientação do ministro Marco Aurélio os contratados sem licitação poderiam continuar executando os trabalhos, enquanto pendente um recurso defendendo a legalidade de sua contratação. E, provavelmente, quando ocorresse a decisão final dos recursos as obras já teriam sido realizadas em grande parte. E assim a decisão sumulada seria absolutamente inútil.
Em conclusão, no moderno constitucionalismo a Constituição é norma jurídica superior e vinculante e as disposições constitucionais têm eficácia imediata. Para dar efetividade à fundamental disposição do artigo 102 da Constituição, segundo o qual "compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição", é necessário que a Suprema Corte determine a imediata aplicação do dispositivo expresso e claro da Constituição que fixa os limites da remuneração aos servidores públicos de qualquer categoria e a qualquer título, para resguardo da autoridade do Supremo Tribunal Federal e da normalidade constitucional democrática no Brasil.
*Dalmo de Abreu Dallari é jurista e professor emérito da Faculdade de Direito da USP. 

Os resistentes


Como o pai, a mãe e a medicina lidam com Jhéck, o garoto de Franca que já foi centro de uma polêmica sobre eutanásia

22 de fevereiro de 2014 | 14h 51

Mônica Manir - O Estado de S. Paulo
FRANCA - "É muito fácil o cara abrir o jornal, me chamar de louco, fechar o jornal e tocar a vida", diz Jeson. "Mas o problema continua pra mim, pra mãe e pro menino." Jeson Breener de Oliveira, que prefere ser chamado de Jeison, solta a frase gesticulando com folhas A4 na mão e simulando um leitor. Ainda agitado, devolve as folhas à gaveta da escrivaninha. Da mesma gaveta tira fotos coloridas, algumas com esparadrapo no verso. Estão todas amareladas, retorcidas, vítimas de umidade. Numa é possível vê-lo dançando agarrado com a ex-mulher; noutra, vestindo uma camisa justa em pose de Stalone; numa terceira Jeson está ao lado do filho, que olha meio assustado para a câmera. "Viu como ele era perfeito?", aponta com o indicador. "Eu era uma família feliz."
Em 2006, Rosimara levou "Didi" do hospital de volta para casa, que virou uma mini-UTI - Tiago Brandão/Estadão
Tiago Brandão/Estadão
Em 2006, Rosimara levou "Didi" do hospital de volta para casa, que virou uma mini-UTI
Estamos sentados no estabelecimento que Jeson abriu em Franca, e a escrivaninha faz parte dos móveis de escritório usados que ele vende em paralelo. Na frente do negócio, chama atenção um boneco acomodado numa cadeira pequena. É uma criança de plástico, de tênis azul e boné virado para trás. "Meu filho é cego, surdo, mudo, não come chocolate, não chupa bala", continua Jeson, mirando num ponto além de mim. "O Jhéck é o pior caso do mundo."
Jhéck, nome dado por Jeson pensando em pavimentar o sucesso do filho com um tanto de exotismo, tem 13 anos. É o menino de Franca que, em 2005, colocou a cidade do interior paulista no noticiário quando o próprio pai pediu sua morte. Naquele ano a americana Terri Schiavo levantava a celeuma sobre a eutanásia. O marido pedia à Suprema Corte o desligamento da sonda que havia 15 anos alimentava a mulher em estado vegetativo. Os pais de Terri a desejavam viva. Ganhou o marido. Jeson acompanhou o caso e quis fazer parecido, mas de um jeito próprio. Primeiro tentou desligar o respirador do filho na UTI. Depois alardeou que ingressaria com uma ação na Justiça para pedir a eutanásia da criança à revelia da mãe. A polêmica pegou fogo.
O diagnóstico da época era o de uma doença degenerativa metabólica do sistema nervoso central, que progressivamente incapacitou Jhéck de se movimentar, ver e falar. O prognóstico: passar dias e noites numa cama alimentado por sonda gástrica, respirando por traqueostomia e recorrendo por algumas horas a um ventilador mecânico. Ele poderia viver assim por um dia, uma semana, um ano, dez anos, três décadas. Jeson pirou com a informação. "Era um desespero ver ele se debatendo na convulsão, eu de um lado, a mãe do outro, com aquelas agulhas do soro soltando do braço." Nenhum advogado queria pegar sua causa. "Depois que eu apareci no Ratinho, na Xuxa, na Record, apareceu aquele monte." Diz ter pago R$ 35 mil a um deles, mas voltou atrás com o processo quando recebeu uma carta da mãe de Jhéck. Rosimara pedia a ele que levasse em conta o sofrimento dela com o pedido de eutanásia. Na carta, também escreveu em nome do filho: "Papai, eu te amo".
Jeson sossegou, mas teria ficado marcado. No Rio de Janeiro, levou uma bolsada de uma mulher, que o xingou em seguida. Depois que saiu da Samello, onde trabalhava como encarregado de segurança, não conseguiu mais emprego firme. Então abriu o estabelecimento onde conversamos, cujo nome e ramo ele exigiu que eu não mencionasse, para não prejudicar o negócio. "Tem gente que não lembra mais da história ou nem sabe dela." Mas e a foto, podemos tirar? "A foto tudo bem."
Já o casamento, que estava arranhado, degringolou de vez. Rosimara usou R$ 20 mil que ganhou do programa do Gugu e entrou num financiamento para comprar uma casa no extremo leste da cidade, quase na zona rural. O governo do Estado forneceu equipamentos hospitalares, uma fisioterapeuta cedeu a cadeira de rodas e um comerciante organizou uma pizzada beneficente. Com ela, Rose conseguiu uma cama hospitalar, levantou um quarto a mais e um banheiro conjugado.
Em fevereiro de 2006, ela recebeu o filho de volta em casa, que virou uma mini-UTI. Antes teve de aprender com a equipe do hospital a manejar os aparelhos, fornecer a dieta e fazer os exercícios de fisioterapia. Mas Jhéck foi ganhando peso – hoje beira os 72 quilos –, e Rose, uma dor cavalar nas costas, porque precisa virá-lo de quando em sempre. Além disso, ela teve há seis anos outro filho, de um segundo relacionamento, que requisita atenção, "porque toda criança é assim". Também lida com laivos de depressão que a perseguem desde o último pós-parto. Enfim, quando apareceu a possibilidade de dividir os cuidados de Jhéck com o hospital da Unimed de Franca, foi uma bênção dos deuses, com um ranço de culpa no início. São 15 dias lá, 15 dias na residência.
Na UTI pediátrica, Jhéck não está só. Seus companheiros são principalmente crianças prematuras. Marcelo Bittar, pediatra intensivista que acompanha Rose e o filho desde a primeira internação, atualiza o quadro do garoto. Jhéck tem uma encefalopatia crônica evolutiva de causa genética não conclusiva. "A doença, porém, estabilizou", diz Bittar. "Jhéck não fica doente; ele tem essa doença, mas sem agravo." Daí que não se justifica a hipótese de eutanásia – nem no Brasil, onde sempre é proibida, nem na Bélgica, onde acaba de ser aprovado o primeiro projeto de lei que autoriza a eutanásia em menores de idade com doença terminal.
Obviamente o projeto belga impõe condições: a criança ou o adolescente precisa estar com morte iminente e ter passado por sofrimento físico constante e intolerável até chegar ao ponto de pedir, "com discernimento", pelo fim de sua vida. Os pais ou guardiões legais devem consentir por escrito com a prática, assim como o médico do paciente e um segundo especialista. E tanto a criança quanto seus responsáveis receberão cuidados psicológicos, caso queiram.
Mesmo com tanto cerco e estrutura, a oposição ganha corpo no país e fora dele. Na Alemanha, nação fronteiriça com a Bélgica, o jornal conservador Die Welt afirmou que "os belgas autorizaram a matança sob encomenda de crianças em estado terminal e se encaminham para o abismo ético". Ao que o senador socialista belga Philippe Mahoux, autor da lei de 2002 sobre eutanásia no país, respondeu: "Escandaloso é a doença incurável e dolorosa dos menores, não a vontade de pôr fim a esse sofrimento de modo razoável, assegurando um espaço de liberdade e solidariedade". No meio-termo, aparece o depoimento de pediatras como Jutte Van der Werf Ten Bosch, que trabalha na oncologia do Hospital Universitário de Bruxelas: "Posso suportar que eles (os menores) sofram, se é o que eles querem, mas não posso suportar não falar sobre outras opções e discuti-las; isso me faz sentir uma covarde".
Jeson não fazia ideia da lei belga. Mas pediu para eu sublinhar no caderno de notas: "Eu, Jeson de Oliveira, jamais vou voltar a falar em eutanásia em função do amor que tenho por meu filho e em função do caminho espiritual". E enfatiza: "Nem se me dessem R$ 1 milhão". Foi justamente porque não lhe pediram dinheiro algum na Congregação Cristã do Brasil que Jeson se evangelizou ali. Em outras igrejas que frequentou, o dízimo e um suposto demônio, que tinha de ser desincrustado de Jhéck, o incomodavam.
O que parece infernizá-lo, neste momento, é não visitar o filho em casa. Jeson teve problemas com o segundo marido de Rose, e a ex-mulher diz que precisa de paz para cuidar de Didi, como ela chama Jhéck. No hospital, o pai não gosta de ir "por causa da luva, por não poder pegar o filho no colo, por poder ficar apenas dez minutos com ele". Faz tempo que não aparece lá. Pelas suas contas, um ano. Pelas do pediatra Marcelo Bittar, desde 2005. "No meu plantão nunca o vi, e não são dez minutos de permanência na UTI, mas seis horas, das 13h às 19h, isso para os pais." Quanto aos cuidados, enfatiza Bittar, basta higienizar bem as mãos.
Quando fizer 14 anos, em setembro, Jhéck terá de deixar a UTI pediátrica. Estuda-se no hospital criar um tipo de estrutura para pacientes com esse perfil, que não condiz com a dinâmica da UTI de adultos. Em casa, Rose está atrás de um guincho que possa içar o filho da cama para a cadeira, e dali para o banho. Enquanto isso, apara as costeletas do adolescente, coloca as luvas para tirar a fralda geriátrica – são cerca de oito fraldas por dia –, aspira a secreção pela traqueostomia, vira o filho de lado e enfia entre o polegar e o indicador da mão direita dele um pedaço de travesseiro. Os dedos da mão esquerda, assim como os dos pés, estão atrofiados e mal esticam. Quando soube das células-tronco há alguns anos, ela se emocionou: "Eu me arrepiei todinha, falei ‘agora apareceu a cura para o meu filho’". Mas foi desiludida pelos médicos quanto a isso, pelo menos nas próximas décadas. A moça, que diz ter 30 ou 31 anos, "algo assim", ainda sonha em ver o filho de pé. O pai, do outro canto da cidade, segue na mesma direção: "Ele ainda vai passear comigo, andando do meu lado ou dançando no banco de trás do carro".

Perigoso vazio


Drama do professor que se suicidou com o filho mostra um vácuo social que novas normas não preenchem

23 de fevereiro de 2014 | 2h 14

José de Souza Martins* - O Estado de S.Paulo
A tragédia de Osasco, do pai que, com o filho de 6 anos de idade no colo, atirou-se do 13º andar de um prédio não constitui, infelizmente, caso isolado. Uma semana antes, em Jarinu, na vizinhança da mesma região metropolitana de São Paulo, um pai matou a tiro o filho de 7 anos de idade e se matou. Ainda na mesma região, em Alphaville, Santana de Parnaíba, em 2013, um pai matou a tiros três filhos, de 5 a 16 anos, e se matou em seguida. Outros casos ocorridos nos últimos anos indicam uma recorrência que ultrapassa o limite do caso eventual.
O vizinho ao lado cortou a tela de sua sacada para tentar impedir o suicídio - Marcos Bezerra/Futura Press
Marcos Bezerra/Futura Press
O vizinho ao lado cortou a tela de sua sacada para tentar impedir o suicídio
Mesmo em face de reduzido número de casos, é inevitável tentar compreendê-los a partir daquilo que neles se repete. No caso de Osasco, o pai decide morrer abraçado ao filho, levando-o junto. No caso de Jarinu, o pai matou o filho, que dormia, deitou ao seu lado e se matou. No caso de Alphaville, o pai deu aos filhos brigadeiro por ele preparado, provavelmente, com sonífero para poupar-lhes o sofrimento. Os três casos envolvem pessoas da classe média. No de Osasco, o suicida era professor de inglês, casado com professora de química na USP, com doutorado, dona de um respeitável currículo acadêmico. No de Jarinu, o suicida era empresário. No de Alphaville, era corretor de imóveis. Em dois dos três casos, os suicidas estavam em segundo casamento, tendo filhos do primeiro e do segundo. No caso de Osasco, o suicida sofria com a impossibilidade de encontrar e ver uma filha do primeiro leito. No caso de Alphaville, o suicida incluiu os filhos do primeiro casamento no homicídio.
Nos três casos, o modo como se deu a morte dos filhos não nega o afeto dos pais por eles. De certo modo, foram homicídios abraâmicos. Deus pede a Abraão que lhe ofereça o filho em sacrifício, o cordeiro do holocausto. Abraão amava Isaque, mas o pedido de Deus colocou-o entre a fé em Jeová e o amor por Isaque. A fé era maior que o amor, e entregar a Deus o próprio filho era o supremo ato de amor. Tratava-se de uma prova de fé e o sacrifício não foi consumado. A disposição de Abraão fora suficiente demonstração de fé. É claro que estou falando de uma referência mítica e arquetípica consubstanciada no dilema da relação entre Abraão e seu filho Isaque.
Um caso ocorrido em Piracicaba, em 2013, embora não envolva crianças, parece confirmar esse conteúdo sacrificial de homicídio e suicídio em família. Um pequeno comerciante, que com a esposa mantinha ao lado da casa um salão de cabeleireiro, tinha um único filho, de 21 anos, vendedor de automóveis. O rapaz, muito ativo, teve um problema na coluna, foi operado e ficou paralítico. A família, muito recatada e doméstica, entrou num processo depressivo. Não conseguiu aguentar a aparente falta de perspectivas para o filho. Num domingo, o pai matou a tiros a mulher e o filho, quando dormiam, foi para sua chácara, ali perto, e se matou.
Todos esses casos sugerem uma certa unidade orgânica da família, uma negação da individualização tão própria da sociedade moderna e urbana. Eram pessoas de vida regulada por valores da sociedade tradicional. Mesmo nos casos de Osasco e de Alphaville, de dois casamentos, em que significativamente as segundas esposas foram poupadas, esse valor referencial está presente. No caso de Osasco, o marido, lutador de judô, surrou a esposa violentamente pouco antes do suicídio e era contumaz na violência, tendo lhe quebrado um braço anteriormente. O que só reforça a concepção matrimonial arcaica, o segundo casamento secundário em relação ao primeiro, não obstante este já estivesse desfeito.
O caso de Osasco, de certo modo, repete outro, ocorrido há alguns anos em Santo André, quando um desempregado de classe média matou-se e ao filho, deprimido pela relação desigual com a esposa, uma profissional bem-sucedida. Não tem sido incomuns as referências, em relações matrimoniais desiguais, à impotência sexual do marido, com danos de identidade que acabam em tensão, doença e conflito. É claro que essas ocorrências não são a regra. São excepcionalíssimas, mas compreensíveis numa sociedade de fortes raízes patriarcais, como a nossa, expressões limites de uma possibilidade que está na própria estrutura histórica da família.
Esses casos não devem ser remetidos ao elenco de outros de violência doméstica. Há neles um altruísmo patológico, um medo à solidão compensado com o apego ao filho até na morte. O mesmo temor apareceu em caso oposto, recentemente, aqui em São Paulo, o do menino, filho único, doente, que matou os pais, da Polícia Militar, e também a avó e a tia, as pessoas que lhe eram mais próximas no cotidiano e seu grupo afetivo de referência. São variantes mais significativas da ocorrência frequente de infanticídios no Brasil. Trata-se um cenário muito diversificado de crise da família, mas também de crise social. A sociedade brasileira está mergulhada num cenário de crescente anomia, de corrosão das normas tradicionais de comportamento sem que novas e eficazes normas surjam para preencher o perigoso vazio.
Após uma discussão com a mulher na noite de segunda-feira,
o professor de inglês Edemir de Mattos, de 52 anos, se jogou com seu filho de 6 anos no colo do 13º andar de um edifício em Osasco (SP). Pai e filho foram encontrados mortos pela PM por volta das 22h30.
*José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Entre outros livros, autor de A Sociologia Como Aventura (Contexto, 2013).