Como o pai, a mãe e a medicina lidam com Jhéck, o garoto de Franca que já foi centro de uma polêmica sobre eutanásia
22 de fevereiro de 2014 | 14h 51
Mônica Manir - O Estado de S. Paulo
FRANCA - "É muito fácil o cara abrir o jornal, me chamar de louco, fechar o jornal e tocar a vida", diz Jeson. "Mas o problema continua pra mim, pra mãe e pro menino." Jeson Breener de Oliveira, que prefere ser chamado de Jeison, solta a frase gesticulando com folhas A4 na mão e simulando um leitor. Ainda agitado, devolve as folhas à gaveta da escrivaninha. Da mesma gaveta tira fotos coloridas, algumas com esparadrapo no verso. Estão todas amareladas, retorcidas, vítimas de umidade. Numa é possível vê-lo dançando agarrado com a ex-mulher; noutra, vestindo uma camisa justa em pose de Stalone; numa terceira Jeson está ao lado do filho, que olha meio assustado para a câmera. "Viu como ele era perfeito?", aponta com o indicador. "Eu era uma família feliz."
Tiago Brandão/Estadão
Em 2006, Rosimara levou "Didi" do hospital de volta para casa, que virou uma mini-UTI
Estamos sentados no estabelecimento que Jeson abriu em Franca, e a escrivaninha faz parte dos móveis de escritório usados que ele vende em paralelo. Na frente do negócio, chama atenção um boneco acomodado numa cadeira pequena. É uma criança de plástico, de tênis azul e boné virado para trás. "Meu filho é cego, surdo, mudo, não come chocolate, não chupa bala", continua Jeson, mirando num ponto além de mim. "O Jhéck é o pior caso do mundo."
Jhéck, nome dado por Jeson pensando em pavimentar o sucesso do filho com um tanto de exotismo, tem 13 anos. É o menino de Franca que, em 2005, colocou a cidade do interior paulista no noticiário quando o próprio pai pediu sua morte. Naquele ano a americana Terri Schiavo levantava a celeuma sobre a eutanásia. O marido pedia à Suprema Corte o desligamento da sonda que havia 15 anos alimentava a mulher em estado vegetativo. Os pais de Terri a desejavam viva. Ganhou o marido. Jeson acompanhou o caso e quis fazer parecido, mas de um jeito próprio. Primeiro tentou desligar o respirador do filho na UTI. Depois alardeou que ingressaria com uma ação na Justiça para pedir a eutanásia da criança à revelia da mãe. A polêmica pegou fogo.
O diagnóstico da época era o de uma doença degenerativa metabólica do sistema nervoso central, que progressivamente incapacitou Jhéck de se movimentar, ver e falar. O prognóstico: passar dias e noites numa cama alimentado por sonda gástrica, respirando por traqueostomia e recorrendo por algumas horas a um ventilador mecânico. Ele poderia viver assim por um dia, uma semana, um ano, dez anos, três décadas. Jeson pirou com a informação. "Era um desespero ver ele se debatendo na convulsão, eu de um lado, a mãe do outro, com aquelas agulhas do soro soltando do braço." Nenhum advogado queria pegar sua causa. "Depois que eu apareci no Ratinho, na Xuxa, na Record, apareceu aquele monte." Diz ter pago R$ 35 mil a um deles, mas voltou atrás com o processo quando recebeu uma carta da mãe de Jhéck. Rosimara pedia a ele que levasse em conta o sofrimento dela com o pedido de eutanásia. Na carta, também escreveu em nome do filho: "Papai, eu te amo".
Jeson sossegou, mas teria ficado marcado. No Rio de Janeiro, levou uma bolsada de uma mulher, que o xingou em seguida. Depois que saiu da Samello, onde trabalhava como encarregado de segurança, não conseguiu mais emprego firme. Então abriu o estabelecimento onde conversamos, cujo nome e ramo ele exigiu que eu não mencionasse, para não prejudicar o negócio. "Tem gente que não lembra mais da história ou nem sabe dela." Mas e a foto, podemos tirar? "A foto tudo bem."
Já o casamento, que estava arranhado, degringolou de vez. Rosimara usou R$ 20 mil que ganhou do programa do Gugu e entrou num financiamento para comprar uma casa no extremo leste da cidade, quase na zona rural. O governo do Estado forneceu equipamentos hospitalares, uma fisioterapeuta cedeu a cadeira de rodas e um comerciante organizou uma pizzada beneficente. Com ela, Rose conseguiu uma cama hospitalar, levantou um quarto a mais e um banheiro conjugado.
Em fevereiro de 2006, ela recebeu o filho de volta em casa, que virou uma mini-UTI. Antes teve de aprender com a equipe do hospital a manejar os aparelhos, fornecer a dieta e fazer os exercícios de fisioterapia. Mas Jhéck foi ganhando peso – hoje beira os 72 quilos –, e Rose, uma dor cavalar nas costas, porque precisa virá-lo de quando em sempre. Além disso, ela teve há seis anos outro filho, de um segundo relacionamento, que requisita atenção, "porque toda criança é assim". Também lida com laivos de depressão que a perseguem desde o último pós-parto. Enfim, quando apareceu a possibilidade de dividir os cuidados de Jhéck com o hospital da Unimed de Franca, foi uma bênção dos deuses, com um ranço de culpa no início. São 15 dias lá, 15 dias na residência.
Na UTI pediátrica, Jhéck não está só. Seus companheiros são principalmente crianças prematuras. Marcelo Bittar, pediatra intensivista que acompanha Rose e o filho desde a primeira internação, atualiza o quadro do garoto. Jhéck tem uma encefalopatia crônica evolutiva de causa genética não conclusiva. "A doença, porém, estabilizou", diz Bittar. "Jhéck não fica doente; ele tem essa doença, mas sem agravo." Daí que não se justifica a hipótese de eutanásia – nem no Brasil, onde sempre é proibida, nem na Bélgica, onde acaba de ser aprovado o primeiro projeto de lei que autoriza a eutanásia em menores de idade com doença terminal.
Obviamente o projeto belga impõe condições: a criança ou o adolescente precisa estar com morte iminente e ter passado por sofrimento físico constante e intolerável até chegar ao ponto de pedir, "com discernimento", pelo fim de sua vida. Os pais ou guardiões legais devem consentir por escrito com a prática, assim como o médico do paciente e um segundo especialista. E tanto a criança quanto seus responsáveis receberão cuidados psicológicos, caso queiram.
Mesmo com tanto cerco e estrutura, a oposição ganha corpo no país e fora dele. Na Alemanha, nação fronteiriça com a Bélgica, o jornal conservador Die Welt afirmou que "os belgas autorizaram a matança sob encomenda de crianças em estado terminal e se encaminham para o abismo ético". Ao que o senador socialista belga Philippe Mahoux, autor da lei de 2002 sobre eutanásia no país, respondeu: "Escandaloso é a doença incurável e dolorosa dos menores, não a vontade de pôr fim a esse sofrimento de modo razoável, assegurando um espaço de liberdade e solidariedade". No meio-termo, aparece o depoimento de pediatras como Jutte Van der Werf Ten Bosch, que trabalha na oncologia do Hospital Universitário de Bruxelas: "Posso suportar que eles (os menores) sofram, se é o que eles querem, mas não posso suportar não falar sobre outras opções e discuti-las; isso me faz sentir uma covarde".
Jeson não fazia ideia da lei belga. Mas pediu para eu sublinhar no caderno de notas: "Eu, Jeson de Oliveira, jamais vou voltar a falar em eutanásia em função do amor que tenho por meu filho e em função do caminho espiritual". E enfatiza: "Nem se me dessem R$ 1 milhão". Foi justamente porque não lhe pediram dinheiro algum na Congregação Cristã do Brasil que Jeson se evangelizou ali. Em outras igrejas que frequentou, o dízimo e um suposto demônio, que tinha de ser desincrustado de Jhéck, o incomodavam.
O que parece infernizá-lo, neste momento, é não visitar o filho em casa. Jeson teve problemas com o segundo marido de Rose, e a ex-mulher diz que precisa de paz para cuidar de Didi, como ela chama Jhéck. No hospital, o pai não gosta de ir "por causa da luva, por não poder pegar o filho no colo, por poder ficar apenas dez minutos com ele". Faz tempo que não aparece lá. Pelas suas contas, um ano. Pelas do pediatra Marcelo Bittar, desde 2005. "No meu plantão nunca o vi, e não são dez minutos de permanência na UTI, mas seis horas, das 13h às 19h, isso para os pais." Quanto aos cuidados, enfatiza Bittar, basta higienizar bem as mãos.
Quando fizer 14 anos, em setembro, Jhéck terá de deixar a UTI pediátrica. Estuda-se no hospital criar um tipo de estrutura para pacientes com esse perfil, que não condiz com a dinâmica da UTI de adultos. Em casa, Rose está atrás de um guincho que possa içar o filho da cama para a cadeira, e dali para o banho. Enquanto isso, apara as costeletas do adolescente, coloca as luvas para tirar a fralda geriátrica – são cerca de oito fraldas por dia –, aspira a secreção pela traqueostomia, vira o filho de lado e enfia entre o polegar e o indicador da mão direita dele um pedaço de travesseiro. Os dedos da mão esquerda, assim como os dos pés, estão atrofiados e mal esticam. Quando soube das células-tronco há alguns anos, ela se emocionou: "Eu me arrepiei todinha, falei ‘agora apareceu a cura para o meu filho’". Mas foi desiludida pelos médicos quanto a isso, pelo menos nas próximas décadas. A moça, que diz ter 30 ou 31 anos, "algo assim", ainda sonha em ver o filho de pé. O pai, do outro canto da cidade, segue na mesma direção: "Ele ainda vai passear comigo, andando do meu lado ou dançando no banco de trás do carro".
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