domingo, 23 de fevereiro de 2014

Uma noite em 81


Viúva do sargento morto no atentado do Riocentro relembra as ameaças que recebeu para não falar da ação que pretendia culpar a esquerda e enfraquecer a abertura

22 de fevereiro de 2014 | 14h 34

Luciana Nunes Leal - O Estado de S. Paulo
RIO - Na tarde do feriado de 1º de maio de 1981, Suely José do Rosário tinha acabado de chegar em casa, depois do enterro do marido, o sargento do Exército Guilherme Pereira do Rosário, quando um oficial que se apresentou como "dr. Luiz" bateu a sua porta. O recado era claro: ela estava proibida de falar sobre o trabalho de Rosário, agente do Destacamento de Operações de Informações (DOI), órgão de inteligência e repressão da ditadura militar. O sargento tinha morrido horas antes, na noite de 30 de abril, aos 35 anos, quando uma bomba explodiu em seu colo, no estacionamento do Riocentro, na zona oeste do Rio, onde havia um grande show de MPB em homenagem ao Dia do Trabalho.
Bomba explodiu antes do tempo, matando na hora o sargento Rosário - Agência O Globo
Agência O Globo
Bomba explodiu antes do tempo, matando na hora o sargento Rosário
Casados havia 16 anos, Suely e Rosário viviam com os dois filhos, de 15 e 10 anos, em um apartamento em Vista Alegre, periferia da zona norte carioca. De volta do cemitério, Suely estava com as crianças na sala, quando o desconhecido chegou. "A senhora vai ser chamada a depor, veja bem o que vai falar. A senhora tem de lembrar que tem dois filhos para criar", disse "dr. Luiz" à viúva de 36 anos.
"Fui ameaçada na minha casa no dia em que enterrei meu marido. Não deram tempo nem para eu chorar a morte (...) Isso ficou engasgado", desabafou Suely em depoimento prestado em dezembro, no Ministério Público Federal (MPF) do Rio de Janeiro, aos procuradores que fazem nova investigação do caso Riocentro, um dos episódios mais obscuros do período final da ditadura. O caso nunca foi totalmente esclarecido nem teve responsáveis condenados.
No impressionante relato de quase uma hora, a viúva de Rosário contou, pela primeira vez em 33 anos, desde as pressões e interferências do Exército em sua vida, após a morte do marido, até a surpresa e decepção ao descobrir que Rosário tinha como amante uma comadre do casal, mulher de um grande amigo do sargento, também agente do DOI .
Agora moradora de Copacabana, Suely trabalha como corretora de imóveis. Ela foi uma das 48 pessoas ouvidas nos últimos dois anos pelos procuradores, que, na semana passada, denunciaram cinco militares e um civil por envolvimento no atentado, tramado para incriminar grupos de esquerda e enfraquecer o processo de abertura, mas frustrado pela explosão acidental que matou Rosário e feriu o então capitão do Exército Wilson Machado, hoje coronel reformado.
A mulher de Rosário começou a desconfiar que a morte do sargento era o início de um período de horror, e não apenas pela perda que sofrera, já na madrugada de 1º de maio, quando foi acordada em casa por dois militares à paisana que a informaram da morte do marido. "Me levaram para o HCE (Hospital Central do Exército), dizendo que o Guilherme estava lá. Quando eu disse que queria vê-lo, tentaram me dopar. Tentaram me dar água, me dar uma injeção. Não bebi água, não deixei me aplicarem nada. Eu dizia ‘onde está meu marido?’ Até que me levaram para o IML (Instituto Médico Legal)", relatou.
O depoimento de Suely e de outras 30 pessoas tornou-se público na terça-feira e está napágina do MPF do Rio na internet.
Entre muitos segredos, Suely contou que, menos de uma semana depois da primeira visita do "dr. Luiz", um grupo de militares voltou ao apartamento em Vista Alegre e exigiu que ela entregasse os papéis de trabalho guardados por Rosário. "Como ele trouxe isso para casa?", reclamaram os agentes, segundo relato de Suely. Eles destruíram os documentos ali mesmo: "Botaram (os papéis) no meu tanque e tacaram fogo".
Os enviados do Exército levaram as chamadas folhas de alteração, um resumo de toda a vida funcional e atividades dos militares. Suely se arrepende de ter entregue o documento. "Eu, boba, não deveria ter dado. Ele (Rosário) me dizia: ‘No dia que me acontecer qualquer coisa, não deixa isso sair aqui de casa’. A (pasta com os registros) dele era alta assim e me devolveram reduzida, tiraram muitas folhas. Não sei por quê, não entendo de militarismo", afirmou. "Eu estava muito abalada, entreguei tudo (...) Viúva com dois filhos, 36 anos, não tinha cabeça para pensar nisso", respondeu Suely ao ser questionada se não percebeu que aqueles documentos poderiam ser úteis na investigação da explosão, se algum dia houvesse uma apuração séria do caso.
O telefone da casa da família Rosário tinha o número alterado a todo momento, sem que Suely soubesse. "As pessoas não conseguiam falar comigo", lembrou. Nos três primeiros meses, ela não podia sair de casa e, durante anos, dois policiais ficaram dia e noite a sua porta. "Eu me sentia vigiada (...) Nos dois ou três primeiros meses, fiquei enclausurada, com um policial na minha porta, sem receber pensão, sem poder descer à loja para trabalhar."
"Tudo era ordem do dr. Luiz", disse Suely. O oficial interferiu até na vida pessoal da viúva. Dois meses depois da morte de Rosário, Suely viveu outro drama: descobriu por acaso, escondida no extintor do carro do sargento, um Passat, uma carta de amor. A remetente era uma amiga do casal, Elisabeth, mulher de outro agente do DOI, Magno Cantarino Motta, conhecido pelo codinome "Guarani", que também estava no Riocentro no dia da explosão. A missão de Motta era fotografar tudo que acontecesse naquela noite.
Surpreendida pela traição do marido, Suely procurou Magno. "Ele me abraçou, chorou, disse que desconfiava e que lamentava não pela Beth, mas pelo ‘irmão’, que era o Guilherme", contou Suely. No mesmo dia, a viúva recebeu um telefonema de Magno com um recado do oficial misterioso. "Dr. Luiz achava melhor que eu não tocasse no assunto da carta e que eu fosse visitá-la (Elisabeth) como se não tivesse acontecido nada", revelou Suely, que obedeceu às ordens e foi de táxi à casa de Elisabeth. "Nós éramos comadres duas vezes. Batizamos a filha deles e eles batizaram nosso filho menor", contou Suely. Aos poucos, a viúva se afastou da ex-amiga. Magno e Elisabeth se divorciaram. "Nunca mais vi essa gente", comentou.
No depoimento, a viúva insistiu que não sabia detalhes do trabalho do marido no DOI e, apesar das evidências de que Rosário e Machado foram destacados para fazer explodir as bombas no Riocentro, disse que compartilha da conclusão do primeiro Inquérito Policial Militar (IPM) que apurou o caso, em 1981. Claramente forjado, o IPM concluiu que Rosário e Machado foram vítimas de um atentado, de algum grupo de esquerda ou direita.
"Acho que foi uma queima de arquivo", afirmou Suely aos procuradores. "Ele não ia para o Riocentro, tanto que me telefonou dizendo que chegaria em casa às 9 horas da noite. Perguntou se eu tinha comprado a carne, a gente ia fazer um churrasco na casa da minha mãe no dia seguinte", lembrou Suely. Rosário morreu por volta das 21h30 daquele 30 de abril.
A mulher contou que o sargento, pouco tempo antes de morrer, tinha passado 15 dias em Brasília. "Eu achava que ele estava muito preocupado, manifestava vontade de sair do DOI (...) Eram 16 anos de casamento, a gente percebe. Na véspera do dia em que ele morreu, conversamos e ele disse que no ano seguinte estaria fora do DOI e nós íamos morar em Brasília."
Suely é avessa à imprensa, raras vezes deu entrevistas e vive de maneira discreta em um pequeno apartamento de um edifício antigo na Rua Figueiredo Magalhães, em Copacabana. Na noite da última quarta-feira, foi procurada pelo Estado, mas não estava em casa. Também não respondeu ao pedido de entrevista, deixado em um bilhete. Parecia estar fora havia alguns dias, já que o escaninho de correspondência tinha envelopes e contas acumulados.
Questionada pelos procuradores por que manteve tantas informações em sigilo durante mais de 30 anos, inclusive quando o caso foi reaberto, em 1999, já em plena democracia, Suely disse que sempre teve medo de falar a verdade, principalmente por causa dos filhos, apesar de já serem adultos, um advogado e outro físico. "Não falei nada, não me sentia à vontade para falar. A responsabilidade de criar filho sozinha é muito grande, eu não podia falar. Os últimos vitimados nessa situação fomos eu e meus filhos", desabafou mais uma vez.
Os procuradores acreditam que "dr. Luiz" seja o coronel reformado do Exército Otelo José da Costa Ortiga, que alegou doença grave para não depor no MPF. "Ele merece morrer. Ameaçar uma pessoa dentro da casa dela é muita covardia", reagiu Suely ao ouvir o comentário dos investigadores. Suely não se conforma por não ter conseguido a promoção do marido, após a morte. "O atestado de óbito diz que meu marido morreu em serviço", afirmou. Passados tantos anos, a viúva tem mágoa por nunca ter sido procurada por Machado, companheiro de Rosário na missão frustrada. "Eu queria muito conversar com ele, saber o que de fato aconteceu."

Educação e meio ambiente devem ser as prioridades’, diz Eduardo Giannetti


Em um novo modelo de crescimento, investimentos devem ser direcionados para o capital humano

22 de fevereiro de 2014 | 16h 35

Alexa Salomão e Ricardo Grinbaum, de O Estado de S.Paulo
Eduardo Giannetti* é um dos poucos economistas do Brasil que apoia abertamente um candidato à presidência. Desde 2010, atua como conselheiro de Marina Silva e está engajado no lançamento de sua campanha. Crítico do atual governo, Giannetti apoia a volta do tripé na condução da macroeconomia e defende a criação de um novo modelo de crescimento que priorize a educação e o meio ambiente. "O novo ciclo de desenvolvimento do Brasil será liderado pelo investimento em capital humano e em capital físico", disse ao Estado na entrevista que segue.
Quais seriam as missões urgentes do novo governo ao assumir em janeiro de 2015?
Na minha opinião, há duas diretrizes para a política econômica. A primeira é voltar ao que estava funcionando bem no governo de Fernando Henrique e no primeiro mandato de Lula - recuperar a credibilidade e a consistência do tripé macroeconômico, com superávit primário, câmbio flutuante e autonomia do Banco Central. O Brasil vai precisar disso, porque houve um descuido grave com a inflação e há um colapso de confiança em relação à macroeconomia. As três pernas do tripé ficaram muito capengas. Na política microeconômica, vamos precisar de uma agenda de reformas para termos regras mais adequadas ao investimento do setor privado na infraestrutura.
Quando o senhor fala de recuperar a autonomia do BC, fala da autonomia que conhecemos nos últimos anos ou autonomia formal?
Num primeiro momento, falo de autonomia operacional. Mas uma que crie o caminho para se chegar à autonomia formal. Não estamos institucionalmente maduros ainda para dar esse passo. Ele é desejável, mas precisa estar muito amadurecido - quais serão as regras de escolha do presidente, da diretoria, quais são as condições para uma eventual descontinuidade, como vai funcionar na prática para que não se fixe prematuramente um sistema que depois pode gerar grandes prejuízos... Enquanto não estiver maduro, é muito temerário partir para um sistema de autonomia formal.  
Como o senhor vê essa autonomia do Banco Central? Nos últimos tempos ela foi muito informal...
O Banco Central tem mandato para cumprir o centro da meta da inflação e vai usar seus instrumentos para isso, mas precisa ter a Fazenda como um aliado, não um inimigo desse objetivo. Não cabe a membros da equipe econômica ou do Executivo se pronunciarem ou darem palpite sobre o que deve ser a política monetária. Isso gera muito ruído. O BC deve ter uma equipe técnica, com pessoas de voo próprio, reputação irretocável, tecnicamente muito competentes, como foi no segundo mandato do Fernando Henrique com o Armínio Fraga, e depois como foi com o Henrique Meirelles nos dois mandatos de Lula. Meirelles durante a sua gestão pode ter errado na dosagem e feito mais do que era estritamente necessário, mas em nenhum momento ele errou no sinal - apertou quando tinha de apertar e reduziu quando tinha de reduzir. O voluntarismo do governo Dilma se mostrou insustentável. Ela tentou forçar uma queda de juros precipitada. Deu a entender que uma inflação perto do teto estaria de bom tamanho. Isso é um erro grave de condução de política em um sistema de metas, em que a ancoragem das expectativas é fundamental. No sistema de metas deve haver uma crença compartilhada e crível de que o centro é para valer. Mas houve uma acomodação no teto da meta. E pior - o que realmente me causa muita apreensão, porque não esperava voltar a ver isso na minha vida profissional - o governo recorre ao controle de preços administrados para obter resultados de inflação no curto prazo. Eu acho um caminho perigosíssimo, um retrocesso que cria um enorme artificialismo. A inflação dos preços livres está acima da meta, em torno de 7%, 7,7% no acumulado, enquanto a inflação dos preços administrados está muito represada. Em algum momento isso vai ser corrigido, tanto no caso dos derivados de petróleo, como no da energia elétrica e do transporte coletivo. Eu francamente não esperava voltar a assistir a esse filme no Brasil.
Qual é o retrato que o senhor faz da economia Brasileira hoje?
Estamos vendo uma combinação pouco usual. O governo Dilma, que foi eleito em nome da aceleração do crescimento, caminha para ter o mais baixo crescimento da história republicana do Brasil, ao lado de Floriano Peixoto e de Fernando Collor de Mello. Temos uma inflação teimosamente no teto da meta. Além disso, vemos uma piora significativa nas contas externas, com déficit nas contas correntes que no ano passado foi de 3,6% do PIB e que exige um financiamento de cerca de US$ 85 bilhões - o que já supera, bastante até, o investimento direto estrangeiro. Ou seja, estamos voltando a uma situação de alta vulnerabilidade externa, numa economia mundial em transição. Essas três coisas não costumam andar juntas. Se você está com baixo crescimento, a inflação deveria estar comportada. Deveria estar no centro da meta. Se você tem um déficit de 3,6% do PIB, você deveria estar crescendo muito, porque o mundo está transferindo poupança externa para aumentar a nossa capacidade de investimento. Deveríamos estar com um crescimento expressivo, dado que estaríamos nos beneficiando desse oxigênio adicional para aumentar o nível de investimento no País. Então, realmente, é uma combinação preocupante. O único ponto alentador da conjuntura é o nível de emprego, que vem se mantendo elevado. Mas, nesse caso, três coisas estão acontecendo. Primeiro, diminuiu a entrada de pessoas no mercado de trabalho porque a fecundidade caiu muito no Brasil a partir dos anos 70. Segundo, houve um crescimento muito alto do setor de serviços, que é mão de obra intensiva. Com a inclusão social e a ascensão do grupo chamado nova classe média, o setor de serviços teve uma demanda muito expressiva nos últimos anos. Temos ainda o fenômeno do desalento. Muitos jovens estão na geração nem-nem - nem estudam, nem trabalham - não estão procurando emprego, portanto não são parte do desemprego. Você tem também muita gente no Bolsa Família que não está no mercado de trabalho porque tem essa renda e consegue manter um padrão de vida sem estar buscando emprego. Mas, de qualquer maneira, é um aspecto alentador ver que o emprego se mantém.
O que levou o País a essa combinação?
Eu vejo três fatores, que foram uma forte reversão de expectativas. Em 2010, o Brasil aparentava um vigor econômico e uma capacidade de crescimento elevada que depois se frustrou fortemente. O primeiro fator é a mudança do quadro internacional - há um componente importado, sim, nessa piora do desenvolvimento brasileiro. Temos nesse caso uma dupla transição - os Estados Unidos se recuperando, com a mudança da política monetária, e a China com um padrão de crescimento com menor nível e com outro modelo. Essa mudança no quadro internacional significa que o mundo não trabalha mais a nosso favor. Piorou para os mercados emergentes, tanto na questão financeira quanto na comercial. Depois temos um fator estrutural, doméstico, que não é desse governo, nem do anterior, nem do anterior do anterior - a pioria profunda das finanças públicas a partir de 1988. Nós tínhamos uma carga tributária de 24% do PIB na época em que a Constituição foi promulgada e hoje ela está em 36% do PIB. E não obstante a esse aumento muito expressivo da carga tributária, que deixa o Brasil fora da curva para um país de renda média, a capacidade de investimento do Estado brasileiro caiu. No final dos anos 80, o governo brasileiro, no seu conjunto, arrecadava 24% e investia em torno de 3% do PIB. Hoje ele arrecada 36%, tem um déficit nominal de 3,6%, o que significa que praticamente 40% do PIB transitam pelo setor público, e a média de investimento do Estado brasileiro nos últimos quatro anos ficou em torno de 2,5% do PIB, o PAC incluído. Isso é algo que vem se agravando insistentemente no Brasil nos últimos 30 anos. O terceiro componente é a piora na qualidade da política econômica. O Brasil teve um momento muito positivo, na minha avaliação, no segundo mandato do Fernando Henrique e no primeiro do Lula, depois que adotamos o câmbio flutuante, configuramos o arranjo do tripé e uma agenda microeconômica também prevaleceu nesses dois mandatos. Mas essa direção se perdeu. Já no segundo mantado do Lula a coisa começou a piorar - tanto na macro, quanto na micro - num primeiro momento com uma certa vergonha, porque as coisas iam bem e a equipe econômica não se sentia à vontade para fazer do seu jeito. Depois da crise de 2008-2009, eles perderam a vergonha e as coisas começaram a realmente piorar com a tal nova matriz econômica, que mostrou como resultado o que estamos discutindo aqui - baixo crescimento, pressão inflacionária e piora nas contas externas.
O governo Dilma foi marcado por uma aposta em mais Estado...
... e microgerenciamento. O Estado escolhendo a dedo quem vai ter ou não subsídio, quem vai ter ou não desoneração, quem vai ter tarifa de importação. Essa é uma dimensão de interferência muito abrangente do governo Dilma. Nesse caso, temos uma espiral intervencionista. O governo interfere num ponto porque acha que vai resolver aquela distorção e vai ficar por ai. Mas não vai. Porque ao corrigir o que ele acha que é uma distorção, ele vai gerar uma outra, que vai exigir uma nova intervenção. E isso gera a espiral intervencionista, na qual esse governo está enredado - e não vai ser fácil desfazer. Adam Smith tem uma metáfora que eu gosto - está na Teoria dos Sentimentos, não está na Riqueza das Nações. Ele diz que o planejador estatal diante do grande tabuleiro de xadrez da sociedade humana acredita que ele vai movimentar uma peça e ela vai obedecer passivamente. Mas ele esquece que, nesse grande tabuleiro, a peça, além do movimento que o Estado lhe imprime, ela tem movimento próprio, que vai surpreender o planejador - e vai escapar do seu controle. Isso gera uma espiral intervencionista. Nós estamos vivendo esse ciclo no Brasil. Coisa que era praticada no governo de Getúlio Vargas no Estado Novo e praticada no governo Geisel, no regime militar. A Dilma pertence a essa linhagem. É uma cabeça estatizante.
Como se desfaz isso na economia?
Vai ser complexo. Porque vai criando grupos de interesses, muito organizados e focados na defesa daquilo que conquistaram. Num primeiro momento, você só tem perdedores, porque os ganhadores da desconstrução disso são difusos na sociedade. É uma perda geral da eficiência do sistema econômico. Isso gera uma equação política, uma desassimetria de informação que é complexa para você desfazer. Vai ter que desfazer. O pessoal que está pendurado no BNDES vai ter de aceitar que acabou a mamata. Vai ter de buscar mecanismos de financiamento voluntários ou autofinanciamento - como, aliás, era no Brasil.
E na economia, qual será o custo de desmontar as outras coisas que o senhor mencionou? Vamos ter de dar um passo atrás para depois andar para frente?
Não é andar para trás, mas é aceitar que sacrifícios nos curto prazo vão ter de ser feitos para obter benefícios logo adiante. É uma troca no tempo. E o Brasil é um País que tem muita dificuldade de aceitar custos que precedem benefícios. Mas para isso existem estadistas - lideranças capazes de mostrar que sacrifícios feitos agora valem a pena porque os benefícios que virão são mais recompensadores.
Isso vai se traduzir em baixo crescimento por um ou dois anos ou recessão em algum momento?
É difícil fazer previsões de crescimento, mas haverá um choque de credibilidade que vai ser positivo e, em parte, compensa o aperto de cinto que se impõe num primeiro momento. Esse choque de credibilidade pode, em grande medida, atenuar ou compensar a austeridade que o Brasil vai ter de enfrentar. Um exemplo é o reajuste das tarifas. Engraçada essa crença do brasileiro de que o preço subsidiado está sendo pago pelo governo. O governo não paga nada. Não existe gratuidade. A ideia de chacoalhar a árvore não gera os frutos que caem. O governo é uma chacoalhador de árvores, mas ele não cria os frutos que caem. Os frutos que caem são criados pelo trabalho dos brasileiros. E, se você chacoalhar a árvore demais, você fragiliza e destrói a árvore. O Estado é um grande intermediador de recursos. Essa noção de Estado patrimonialista que está ainda muito presente na cultura brasileira, passa a ideia de que o Estado é o dono e o setor privado vive por concessão para pagar tributos ao governo. Mas não é isso. Na verdade do Estado deveria servir a quem o financia, porque ele não gera recursos - ele transfere de um lado para outro ou entre grupos da sociedade ou jogando a conta para o futuro. Mas isso tem um limite, porque se a dívida começa a crescer muito, a conta vem para geração atual. O risco da dívida começa a ficar preocupante. Nós já estamos nesse ponto. Os protestos recentes mostram que as pessoas estão com pressa... A classe média ascendeu ao consumo, mas não ascendeu a cidadania. O passo que falta é esse - o transporte coletivo, a segurança aeroportuária e portuária, energia elétrica, qualidade de ensino, saúde pública, saneamento.
Essa demanda vai pesar na campanha eleitoral deste ano?
Tudo leva a crer que sim, porque há um sentimento geral de frustração. Eu acho que se criou uma expectativa de avanço, que não aconteceu. Este foi um governo marcado por medida protecionistas e poucos acordos comerciais... Sem dúvida. Quando o câmbio estava incomodando alguns grupos, eles se reuniram para ir ao governo pedir proteção. E o governo cedeu. Deu tarifa adicional para 100 categorias de produtos. No momento em que a inflação começou a incomodar, o governo reduziu algumas dessas tarifas conseguidas por pressão lobista. Tornar o sistema de tarifas objeto de negociações e de mudança de curto prazo ao sabor da conjuntura é um enorme retrocesso. Isso é umas das coisas que dificultam a decisão de investir no Brasil. E precisamos ter claro também que o Brasil é um dos países mais fechados do mundo. Chama a atenção quando o comparamos a outros emergentes; como perdemos espaço nas exportações e impomos restrições às importações. A gente precisa pensar em aumentar o fluxo de comércio. Vender e comprar mais do mundo.
Ainda sobre a questão macroeconômica, o senhor defende apenas a volta do tripé ou faria algo diferente?
Na política econômica strictus sensus é a volta do tripé na macroeconomia e uma nova agenda de reformas na microeconomia. O princípio dessa agenda é a horizontalidade. Não vão ser desonerações caso a caso, incentivos fiscais caso a caso, medidas protecionistas caso a caso. O governo Dilma virou um balcão de demanda de grupos de interesse - inclusive dentro dos ministérios. Para muitos empresários faz mais sentido ter tido uma boa negociação no ministério do que buscar produtividade e a eficiência. Eles criaram tamanha incerteza quanto às regras de funcionamento da economia que os empresários se retraem. O cálculo de retorno do investimento fica fragilizado, incerto, em um ambiente desse tipo. A todo momento estão mexendo em regras fundamentais de previsibilidade que são essenciais para o cálculo econômico. Nós vamos ter que ter uma outra filosofia de ação microeconômica. Ações microeconômicas são as ações do governo que interferem no funcionamento dos mercados. Dizem respeito ao sistema tributário, tarifa de proteção, subsídio, crédito. O que começou no segundo mandato do Lula e prevaleceu no de Dilma foi o microgerenciamento na linha do Geisel (General Ernesto Geisel, presidente nos anos 70). Essa filosofia gera problemas terríveis - inclusive deprime o nível de investimento. Não é à toa que caiu. Mas acho que a grande mudança que o Brasil precisa, numa visão de estadista, é trazer dois componentes da ação pública para o centro da agenda. Um deles é a questão do capital humano - educação. O outro componente é o meio ambiente. Não dá para ter crescimento saudável sem que educação e meio ambiente tenham uma centralidade que nunca tiveram nas políticas públicas.
Como se faz isso na prática?
Em educação, acho que precisamos faze uma verdadeira revolução. Para colocar de uma forma mais simples - o Brasil precisa de um Juscelino (Juscelino Kubitschek, presidente nos anos 50) do capital humano. Assim como Juscelino incendiou a imaginação brasileira com o valor da industrialização, da urbanização, da modernidade, do capital físico, o que está faltando agora é alguém que faça uma liderança em torno do valor do conhecimento, da pesquisa, da formação humana. Em meio ambiente, o Brasil tem uma responsabilidade planetária, porque a natureza nos dotou com biodiversidade, com recursos hídricos, com incidência de sol, com terras cultiváveis, minérios, fontes de energia, e o Brasil precisa ter muita maturidade, sabedoria, para fazer um uso consistente, sustentável e benéfico desses recursos. Em relação ao pré-sal, por exemplo, acho fundamental ficar estabelecido de uma vez por todas que os recursos arrecadados com a exploração do petróleo vai constituir um fundo soberano fora do alcance dos políticos. Eles não vão poder usar esse patrimônio que é da nação brasileira e das gerações futuras. O que vai estar disponível para gasto é a receita do fundo, mas o patrimônio do recurso vai estar em um fundo soberano selado, blindado do avanço dos políticos. O pior cenário que eu vejo para o Brasil, olhando para a frente, é a receita do pré-sal na mão de um governo populista. Vira Venezuela. É uma maldição que vai nos jogar um século para atrás. Isso precisa ficar bem claro. Mas desapareceu do debate brasileiro a ideia do fundo soberano. Nós queremos o modelo norueguês ou o modelo venezuelano?
Como se equilibra desenvolvimento com sustentabilidade?
Nós precisamos separar no Brasil duas questões que estão misturadas. Uma coisa é o nível de exigência que o Brasil precisa ter no que se refere ao meio ambiente no século 21. Isso é a altura da régua. Outra coisa é processo de licenciamento. O nível de exigência precisa ser alto, rigoroso e não é para negociar. Mas isso não implica em ter de gastar um tempo enorme para licenciar, ser obrigado a conviver com uma enorme insegurança jurídica, porque está tudo sujeito a revisões. Não significa ter de conviver com órgãos públicos que têm medo de tomar uma decisão e sofrer alguma punição. O processo de licenciamento precisa avançar para ser mais célere e confiável.
Recentemente, o senhor deu entrevista e rescreveu um artigo dizendo que o problema da desigualdade são as condições iniciais. Como se muda isso na prática?
Com saneamento básico, melhora nas condições de moradia, universalização da creche, ensino fundamental - e médio, se possível - em tempo integral. Atuando na questão da violência urbana. A incidência de mortes violentas entre jovens de cor negra no Brasil é um escândalo. Isso deveria mobilizar um esforço de entendimento e de ação completo - não só do governo, como da sociedade. Uma questão que chama a atenção e precisa ser resolvida pode ser vista em um padrão que se repete no processo da ascensão da classe média. A nova classe média deseja automóvel, mas o Brasil não fez a contrapartida necessária que é infraestrutura. Você expande abruptamente a frota e gera o caos no trânsito que está presente em todas as cidade brasileiras. O financiamento incentivou a nova classe média a comprar freezer, forno de microondas, máquina de lavar roupa. Ótimo. É um inclusão muito bem-vinda. Mas cuidaram da geração e da transmissão de eletricidade para dar consistência a essa nova demanda? Estamos caminhando para uma situação crítica nessa área. Aeroportos. Aumentaram rapidamente o acesso de novos grupos sociais ao conforto de uma viagem aérea. Que bom que isso aconteceu. Mas os aeroporto estão numa condição deplorável. Educação. A nova classe média demanda credenciais educacionais, o que é muito bem-vindo. Mas nós temos professores e condição de atender essa demanda com ensino de qualidade? Sabe-se que 60% dos que fizeram a prova do Conselho Regional de Medicina em São Paulo - sextoanistas de faculdade de medicina - foram reprovados em conhecimentos básicos. O exame da OAB reprova regularmente mais de 80% dos que se candidatam a ter credenciais para o exercício da profissão. Tem um estudo da Fundação Paulo Montenegro mostrando que mais de um terço dos egressos do ensino superior são analfabetos funcionais. Não adianta alimentar a ilusão de que se está democratizando o ensino superior quando na realidade o que se está fazendo é um balcão de diplomas. E, por fim, tem o Minha Casa, Minha Vida, que é um programa bom - a aspiração por moradia é legítima para qualquer cidadão - mas e o saneamento? Metade dos domicílios no Brasil não tem saneamento. Apenas 15% tem tratamento de esgoto. Veja que o padrão em todos esses exemplos é exatamente o mesmo. Você faz a parte fácil do benefício imediato, mas não se dá ao trabalho de criar as condições para que esse movimento possa ter continuidade. Ele tem fôlego curto.
Qual seria, então, o novo motor de crescimento do Brasil?
O novo ciclo de desenvolvimento do Brasil será liderado pelo investimento. Investimento em capital humano e em capital físico. Mas não cabe ao Estado eleger as empresas, grupos ou setores que vão merecer algum tipo de estímulo para fazer o investimento. O que o Estado pode fazer é dar condições gerais para que o mercado faça, já que ele faz melhor do que o Estado e o burocrata. O que o Estado pode fazer de relevante é financiar o desenvolvimento tecnológico, a pesquisa de tecnologias que são relevantes para as condições brasileiras.
Qual o papel do BNDES nessa mudança?
Eu vejo o BNDES financiando tecnologias alternativas e setores ligados à sustentabilidade, mas com muito critério. Não vejo com bons olhos o mecanismo de financiamento com endividamento do tesouro. Isso é uma extravagância que foi longe demais. Nos temos hoje US$ 350 bilhões, US$ 400 bilhões em financiamentos via BNDES e bancos estatais por meio de dívida bruta do tesouro. É quase uma volta àquele sistema que existia antes da estabilização que usava o Banco do Brasil agressivamente para fazer financiamento subsidiado.
O que o Brasil deveria fazer com o Mercosul?
O Mercosul virou um obstáculo a uma inserção mais intensa do Brasil no comércio internacional. Em nome da ideia de uma união aduaneira, inibe-se cada membro do bloco. Em relação a outros blocos e parceiros, ficamos presos desnecessariamente. E o Brasil é grande demais para o Mercosul. E nossos parceiros de Mercosul são muito complicados. Ainda mais agora que a Venezuela virou membro do clube.  
A saída é sair?
Acho que deveriam transformar o Mercosul em um acordo de livre comércio, com redução de barreiras, embora a Argentina e a Venezuela não pratiquem o mesmo. O Brasil precisa recuperar a sua autonomia para poder negociar e perder um pouco do atraso acumulado nos últimos 20 anos de não ter negociado com blocos relevantes que nos interessam - Estados Unidos, União Europeia, Ásia.
Em que nível o senhor está participando da campanha de Marina Silva?
Há um trabalho em andamento de construção entre a Rede e o PSB. Desde a campanha de 2010, eu tenho um diálogo com a Marina Silva, que eu considero uma líder com qualidades raras. Em qualquer país do mundo, qualquer pessoa que se afirme em seu compromisso ético, antes de mais nada - isso é um privilégio em qualquer democracia - uma liderança expressiva que tem na ética, nos valores o seu ponto de gravidade. Eu me disponho a colaborar com o que eles demandarem de mim, com reflexões, com ideias, com formulações.
Há um debate em andamento?
Lógico. Houve um momento que eu achei muito positivo, que foi o lançamento das diretrizes programáticas da aliança, há duas semanas. Fiquei muito bem impressionado com o discurso que Eduardo Campos fez nesse evento, porque foi a primeira vez que eu o vi seriamente empenhado em tornar a nossa aliança uma realidade. Ele mostrou uma disposição em realmente trazer o que são para nós os valores de um projeto de nação - educação e meio ambiente - para o centro de um programa de governo, e sem aventura na economia. Nós não temos nenhuma ideia muito radical e original para gestão da política econômica. Nós vamos fazer o que já mostrou que funciona.
Qual o nível da conversa para a formação de uma eventual chapa?
Está caminhando. Acho que já há uma afinidade consistente, embora algumas coisas ainda não estejam muito claras. O problema é que dentro do PSB há grupos com ideias diferentes das que prevalecem na Rede. Nesse ponto, há um trabalho a ser feito. Mas acho bom a divergência e a conversa. É uma troca. Mas a Rede vem de uma trajetória diferente das bases do PSB em relação a questões como dívida pública, do financiamento e do tamanho do Estado. Ainda há um caminho a percorrer.
Para o eleitor há dúvida se a Marina consegue separar as crenças pessoais da gestão pública.
Eu tenho absoluta certeza que sim. A Marina não mistura a convicção religiosa dela com questões da vida pública. Eu vi testes de fogo em questões espinhosas. Casamento homossexual, por exemplo. A postura dela é irretocável. Em relação ao casamento civil, não há a menor dúvida. Se as pessoas vivem juntas e adquiriram obrigações e direitos, o Estado deve reconhecer e sancionar. Casamento é outra coisa. Cada religião decide o que faz.
E na esfera econômica, como tende a ser, por exemplo, a reação diante de projetos de usinas hidrelétrica que estão próximas a aldeias indígenas?
Essa é uma questão a ser discutida. Por que o critério econômico deve dominar todas as decisões? Não há nenhuma razão para isso. Se grupos indígenas vão ser prejudicados é preciso repensar. O Estado de direito existe para defender as minorias. Caso contrário, é como na China, onde o governo decide e faz - e dá no que dá. Um estudo descobriu que a poluição ao Norte da China está reduzindo a expectativa de vida em cinco anos. Qual é o sentido de crescer 10% ao ano se você perde cinco anos de vida? Esse crescimento é ilusório. O critério do crescimento de renda monetária é parcial e míope em relação à vida humana. Como você contabiliza as 5 horas que um cidadão comum brasileiro passa no inferno do transporte coletivo? É uma perda tangível de bem-estar e de qualidade de vida que não entra nas contas nacionais. Se você elucida melhor o que está em jogo e começa a medir o que é avanço e o que é retrocesso, as pessoas acabam percebendo que não é uma crença baseada em dogma ou tabu, mas no entendimento mais completo do que está em jogo.
* Mineiro de Belo Horizonte, Giannetti formou-se em economia e ciências sociais pela Universidade de São Paulo, onde também lecionou. É doutor em economia pela Universidade de Cambridge, onde deu aulas, e é autor de vários livros, entre eles ‘O valor do amanhã’.

20 anos do Plano Real, por Gustavo H. B. Franco - O Estado de S.Paulo


23 de fevereiro de 2014 | 2h 09

Gus
Na próxima sexta feira, dia 28 de fevereiro de 2014, quando começarem os trabalhos de carnaval, vamos festejar também os 20 anos da publicação da Medida Provisória nº 434, que introduziu a URV (Unidade Real de Valor), uma formidável inovação que assumiu a forma de segunda moeda nacional, porém apenas "virtual", ou "para servir exclusivamente como padrão de valor monetário" (art. 1).
A URV era o real, desde o início. Em seu artigo 2º, a MP 434 já determinava que, quando a URV fosse emitida em forma de cédulas - e assim passasse a servir para pagamentos -, o cruzeiro real seria extinto e a URV teria seu nome mudado para real.
A inflação beirava os 40% mensais, mas, em vista do modo como foi construída, a URV (que Saulo Ramos, com verve e má vontade chamou de "feto de moeda") era uma "moeda estável", ou uma unidade de conta protegida da inflação, portanto, superior às outras em circulação ou em uso para indexar contratos, e por isso as substituiu de modo espontâneo e surpreendentemente rápido.
Na partida, em 1º de março de 1994, a cotação da URV em cruzeiros reais, a moeda de pagamentos, era CR$ 647,50, valor que o BC usava para fixar a taxa de câmbio (e não o contrário). No dia seguinte a URV mudou para CR$ 657,50, conforme a variação da inflação corrente, e depois para CR$ 667,65 assim fomos.
Em poucas semanas a URV se alastrou de forma viral, pois era um convite irresistível: migrar espontaneamente para uma moeda de conta que andava junto com o dólar. Por que o Brasil não poderia ter uma moeda tão boa quanto a de qualquer outro país? Por que a moeda estável, a indexada, era privilégio apenas do rico que usava o "overnight"?
Em 1º de julho, quatro meses depois (e bem poderia ter sido antes!), as novas cédulas e moedas do real foram colocadas em circulação em lugar do cruzeiro real na razão de R$ 1,00 para CR$ 2.750,00. A reforma monetária estava completa e o real em plena circulação. Quem disse que o brasileiro não sabe fazer conta e não é capaz de entender e agir inteligentemente diante de questões econômicas aparentemente complexas?
Depois de 20 anos, a adoção generalizada da URV ainda está cercada de uma aura de mistério e fascinação, e entre os especialistas, é lembrada como uma das experiências de estabilização mais engenhosas e bem-sucedidas que a humanidade já conheceu. O fim da hiperinflação alemã em 1923, que fez uso de um expediente semelhante - o rentenmark - é frequentemente descrito como um "milagre", e desafia explicações, tal como a URV.
O fato é que a introdução da moeda de conta indexada deu início a uma reação química em cadeia, uma espécie de redescoberta do "valor das coisas", que estendia seus efeitos para todo o espectro de simbolismos associados ao dinheiro, sugerindo, inclusive, a identificação entre inflação e imoralidade. Havia muita coisa em jogo no plano simbólico: a moeda, como a bandeira e o hino, está entre os mais importantes símbolos nacionais, de tal sorte que sua degradação, quando levada ao extremo de uma hiperinflação, espalhava suas consequências para muito além da órbita econômica.
Elias Canetti, numa passagem famosa sobre a hiperinflação alemã, observou mais genericamente que uma inflação desse tipo "pode ser tomada como uma orgia satânica de desvalorização no qual os homens e as unidades de seu dinheiro exercem os mais estranhos efeitos sobre si mesmos. Um se projeta no outro, o homem sentindo-se tão 'ruim' quanto o seu dinheiro". Nada a estranhar, portanto, no torpor e na dissolução de valores, entendida de forma mais ampla, em vigor durante aqueles anos e que, infelizmente, deixou sequelas.
O "caminho de volta" enunciado pelo Plano Real compreendia a recomposição e reunificação das funções da moeda em sequência: primeiro a de servir como unidade de conta com a URV, substituindo outros indexadores e unidades de conta usadas em contratos e orçamentos familiares, segundo a de servir como meio de pagamento de curso legal, com a emissão de cédulas e moedas denominadas em real, e por último, e mais difícil, a de funcionar como reserva de valor, teste realizado quando a nova moeda deixou de ser indexada ao dólar e flutuou com relação à moeda norte-americana. E diante do veredicto dos mercados, quando o real apreciou com relação ao dólar, e assim se manteve, o circuito estava completo.
Era apenas o começo, é claro, e o programa prosseguiu, inclusive porque havia clareza que o Plano Real, diferentemente dos outros planos econômicos, compreendia uma extensa agenda de ações contemplando os chamados fundamentos econômicos da estabilização e do desenvolvimento. Era uma linguagem inovadora para uma época em que as pessoas ainda acreditavam em Papai Noel e inflação inercial. Essa agenda era o cerne do programa. A passagem do tempo e a alternância no poder só tornaram mais claro que estávamos adotando paradigmas já bem assentados no tocante à disciplina monetária, à responsabilidade fiscal e à sustentabilidade financeira do Estado.
A URV, depois transformada em real, trouxe a inflação no Brasil para níveis internacionais no início de 1997 sem sustos, confiscos, caneladas e recessão. No ano calendário de 1998 a inflação medida pelo IPCA foi de 1,6%, a menor da série histórica. Foi a menor inflação anual desde que o IPC da Fipe começou a ser calculado em 1940.
Pois assim, a estabilização nos retirou de um estado de torpor e depressão para outro de euforia e ansiedade; a agenda de estabilização rapidamente se converteu na discussão das reformas necessárias para o crescimento, onde estacionamos já faz alguns anos.
O problema do crescimento é semelhante ao da estabilização de muitas formas: ambos dependem de coordenação, persuasão, segurança quanto à consistência macroeconômica e, sobretudo, incentivos corretos. O sucesso da URV e do Plano Real é sempre associado ao estilo da coisa, à transparência no fazer e à ideia de um "convite a aderir" a um mecanismo que os agentes econômicos percebem como superior. Não é um "Pacto Social" negociado por sindicatos e associações patronais, nem um mecanismo compulsório e invasivo como foram os congelamentos. Essas coisas não funcionam: as pessoas, inclusive as jurídicas, preferem exercer suas próprias escolhas orientadas por suas próprias percepções sobre os seus melhores interesses. Assim funcionam as economias de mercado como a nossa. Quando o governo organiza políticas públicas que atentam para esse detalhe crucial sobre o modo com a economia funciona, as coisas costumam dar certo.