Viúva do sargento morto no atentado do Riocentro relembra as ameaças que recebeu para não falar da ação que pretendia culpar a esquerda e enfraquecer a abertura
22 de fevereiro de 2014 | 14h 34
Luciana Nunes Leal - O Estado de S. Paulo
RIO - Na tarde do feriado de 1º de maio de 1981, Suely José do Rosário tinha acabado de chegar em casa, depois do enterro do marido, o sargento do Exército Guilherme Pereira do Rosário, quando um oficial que se apresentou como "dr. Luiz" bateu a sua porta. O recado era claro: ela estava proibida de falar sobre o trabalho de Rosário, agente do Destacamento de Operações de Informações (DOI), órgão de inteligência e repressão da ditadura militar. O sargento tinha morrido horas antes, na noite de 30 de abril, aos 35 anos, quando uma bomba explodiu em seu colo, no estacionamento do Riocentro, na zona oeste do Rio, onde havia um grande show de MPB em homenagem ao Dia do Trabalho.
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Agência O Globo
Bomba explodiu antes do tempo, matando na hora o sargento Rosário
Casados havia 16 anos, Suely e Rosário viviam com os dois filhos, de 15 e 10 anos, em um apartamento em Vista Alegre, periferia da zona norte carioca. De volta do cemitério, Suely estava com as crianças na sala, quando o desconhecido chegou. "A senhora vai ser chamada a depor, veja bem o que vai falar. A senhora tem de lembrar que tem dois filhos para criar", disse "dr. Luiz" à viúva de 36 anos.
"Fui ameaçada na minha casa no dia em que enterrei meu marido. Não deram tempo nem para eu chorar a morte (...) Isso ficou engasgado", desabafou Suely em depoimento prestado em dezembro, no Ministério Público Federal (MPF) do Rio de Janeiro, aos procuradores que fazem nova investigação do caso Riocentro, um dos episódios mais obscuros do período final da ditadura. O caso nunca foi totalmente esclarecido nem teve responsáveis condenados.
No impressionante relato de quase uma hora, a viúva de Rosário contou, pela primeira vez em 33 anos, desde as pressões e interferências do Exército em sua vida, após a morte do marido, até a surpresa e decepção ao descobrir que Rosário tinha como amante uma comadre do casal, mulher de um grande amigo do sargento, também agente do DOI .
Agora moradora de Copacabana, Suely trabalha como corretora de imóveis. Ela foi uma das 48 pessoas ouvidas nos últimos dois anos pelos procuradores, que, na semana passada, denunciaram cinco militares e um civil por envolvimento no atentado, tramado para incriminar grupos de esquerda e enfraquecer o processo de abertura, mas frustrado pela explosão acidental que matou Rosário e feriu o então capitão do Exército Wilson Machado, hoje coronel reformado.
A mulher de Rosário começou a desconfiar que a morte do sargento era o início de um período de horror, e não apenas pela perda que sofrera, já na madrugada de 1º de maio, quando foi acordada em casa por dois militares à paisana que a informaram da morte do marido. "Me levaram para o HCE (Hospital Central do Exército), dizendo que o Guilherme estava lá. Quando eu disse que queria vê-lo, tentaram me dopar. Tentaram me dar água, me dar uma injeção. Não bebi água, não deixei me aplicarem nada. Eu dizia ‘onde está meu marido?’ Até que me levaram para o IML (Instituto Médico Legal)", relatou.
O depoimento de Suely e de outras 30 pessoas tornou-se público na terça-feira e está napágina do MPF do Rio na internet.
Entre muitos segredos, Suely contou que, menos de uma semana depois da primeira visita do "dr. Luiz", um grupo de militares voltou ao apartamento em Vista Alegre e exigiu que ela entregasse os papéis de trabalho guardados por Rosário. "Como ele trouxe isso para casa?", reclamaram os agentes, segundo relato de Suely. Eles destruíram os documentos ali mesmo: "Botaram (os papéis) no meu tanque e tacaram fogo".
Os enviados do Exército levaram as chamadas folhas de alteração, um resumo de toda a vida funcional e atividades dos militares. Suely se arrepende de ter entregue o documento. "Eu, boba, não deveria ter dado. Ele (Rosário) me dizia: ‘No dia que me acontecer qualquer coisa, não deixa isso sair aqui de casa’. A (pasta com os registros) dele era alta assim e me devolveram reduzida, tiraram muitas folhas. Não sei por quê, não entendo de militarismo", afirmou. "Eu estava muito abalada, entreguei tudo (...) Viúva com dois filhos, 36 anos, não tinha cabeça para pensar nisso", respondeu Suely ao ser questionada se não percebeu que aqueles documentos poderiam ser úteis na investigação da explosão, se algum dia houvesse uma apuração séria do caso.
O telefone da casa da família Rosário tinha o número alterado a todo momento, sem que Suely soubesse. "As pessoas não conseguiam falar comigo", lembrou. Nos três primeiros meses, ela não podia sair de casa e, durante anos, dois policiais ficaram dia e noite a sua porta. "Eu me sentia vigiada (...) Nos dois ou três primeiros meses, fiquei enclausurada, com um policial na minha porta, sem receber pensão, sem poder descer à loja para trabalhar."
"Tudo era ordem do dr. Luiz", disse Suely. O oficial interferiu até na vida pessoal da viúva. Dois meses depois da morte de Rosário, Suely viveu outro drama: descobriu por acaso, escondida no extintor do carro do sargento, um Passat, uma carta de amor. A remetente era uma amiga do casal, Elisabeth, mulher de outro agente do DOI, Magno Cantarino Motta, conhecido pelo codinome "Guarani", que também estava no Riocentro no dia da explosão. A missão de Motta era fotografar tudo que acontecesse naquela noite.
Surpreendida pela traição do marido, Suely procurou Magno. "Ele me abraçou, chorou, disse que desconfiava e que lamentava não pela Beth, mas pelo ‘irmão’, que era o Guilherme", contou Suely. No mesmo dia, a viúva recebeu um telefonema de Magno com um recado do oficial misterioso. "Dr. Luiz achava melhor que eu não tocasse no assunto da carta e que eu fosse visitá-la (Elisabeth) como se não tivesse acontecido nada", revelou Suely, que obedeceu às ordens e foi de táxi à casa de Elisabeth. "Nós éramos comadres duas vezes. Batizamos a filha deles e eles batizaram nosso filho menor", contou Suely. Aos poucos, a viúva se afastou da ex-amiga. Magno e Elisabeth se divorciaram. "Nunca mais vi essa gente", comentou.
No depoimento, a viúva insistiu que não sabia detalhes do trabalho do marido no DOI e, apesar das evidências de que Rosário e Machado foram destacados para fazer explodir as bombas no Riocentro, disse que compartilha da conclusão do primeiro Inquérito Policial Militar (IPM) que apurou o caso, em 1981. Claramente forjado, o IPM concluiu que Rosário e Machado foram vítimas de um atentado, de algum grupo de esquerda ou direita.
"Acho que foi uma queima de arquivo", afirmou Suely aos procuradores. "Ele não ia para o Riocentro, tanto que me telefonou dizendo que chegaria em casa às 9 horas da noite. Perguntou se eu tinha comprado a carne, a gente ia fazer um churrasco na casa da minha mãe no dia seguinte", lembrou Suely. Rosário morreu por volta das 21h30 daquele 30 de abril.
A mulher contou que o sargento, pouco tempo antes de morrer, tinha passado 15 dias em Brasília. "Eu achava que ele estava muito preocupado, manifestava vontade de sair do DOI (...) Eram 16 anos de casamento, a gente percebe. Na véspera do dia em que ele morreu, conversamos e ele disse que no ano seguinte estaria fora do DOI e nós íamos morar em Brasília."
Suely é avessa à imprensa, raras vezes deu entrevistas e vive de maneira discreta em um pequeno apartamento de um edifício antigo na Rua Figueiredo Magalhães, em Copacabana. Na noite da última quarta-feira, foi procurada pelo Estado, mas não estava em casa. Também não respondeu ao pedido de entrevista, deixado em um bilhete. Parecia estar fora havia alguns dias, já que o escaninho de correspondência tinha envelopes e contas acumulados.
Questionada pelos procuradores por que manteve tantas informações em sigilo durante mais de 30 anos, inclusive quando o caso foi reaberto, em 1999, já em plena democracia, Suely disse que sempre teve medo de falar a verdade, principalmente por causa dos filhos, apesar de já serem adultos, um advogado e outro físico. "Não falei nada, não me sentia à vontade para falar. A responsabilidade de criar filho sozinha é muito grande, eu não podia falar. Os últimos vitimados nessa situação fomos eu e meus filhos", desabafou mais uma vez.
Os procuradores acreditam que "dr. Luiz" seja o coronel reformado do Exército Otelo José da Costa Ortiga, que alegou doença grave para não depor no MPF. "Ele merece morrer. Ameaçar uma pessoa dentro da casa dela é muita covardia", reagiu Suely ao ouvir o comentário dos investigadores. Suely não se conforma por não ter conseguido a promoção do marido, após a morte. "O atestado de óbito diz que meu marido morreu em serviço", afirmou. Passados tantos anos, a viúva tem mágoa por nunca ter sido procurada por Machado, companheiro de Rosário na missão frustrada. "Eu queria muito conversar com ele, saber o que de fato aconteceu."
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