quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Amores ideais - MARTHA MEDEIROS


ZERO HORA - 19/02

No filme A Garota Ideal, de 2007, o ator Ryan Gosling vive um cara tímido e introspectivo que compra uma boneca inflável, dá a ela o nome de Bianca e começa a tratá-la como a uma namorada de verdade. Cega, surda e muda, mas com um corpo, ele a leva para passear e a apresenta aos colegas, deixando todos perplexos com esse delírio.

Em determinada cena, uma vizinha, entrando no jogo do rapaz, presenteia a “namorada” dele com flores de plástico, deixando-o comovido: as flores durariam para sempre, como Bianca. Em sua cabeça, ele havia conquistado uma relação eterna, à prova de realidade.

Corta para o excelente Ela, filme em cartaz com Joaquin Phoenix vivendo um recém-divorciado que, solitário e carente, se apaixona pela voz de um sistema operacional – outro absurdo, mas é isso mesmo que acontece: ele fala com um smartphone através de um serviço de inteligência artificial que faz parecer que há, de fato, uma pessoa real batendo papo com o cara.

Dessa vez, não há um corpo, mas há uma voz feminina que pergunta, responde, conversa, faz declarações de amor, discute a relação, faz sexo por telefone, dá toda a pinta de que é humana – só que é outra “garota ideal” que não existe.

Em ambos os filmes, os protagonistas tratam as suplentes como gente: um leva a boneca para as refeições à mesa com a família, o outro leva o aparelho tagarela para um piquenique com um casal de amigos. A diferença entre os filmes é que, no primeiro, todos ao redor estão conscientes de que aquela maluquice é um caso isolado. Já em Ela, a situação é considerada normal, corriqueira até. Não duvide: em muito pouco tempo, estaremos namorando smartphones e quiçá casando com eles.

Se, no primeiro filme, o protagonista é um desajustado, no segundo é um homem sensível, romântico, que está apenas atravessando uma fossa e encontra na tecnologia uma forma aparentemente menos sofrida de se relacionar. Porém, havendo idealização, sempre haverá a dor da perda – mesmo entre um homem e uma máquina. A única forma de manter uma relação sem brigas, ciúmes e desencantos é não se envolvendo emocionalmente. Ou seja: quem almeja um romance perfeito, que abrace de vez a solidão, a única candidata à altura do projeto.

Parece ficção científica, mas o relacionamento entre pessoas reais e virtuais, que já acontece, não demora será convencional. Esse futuro está logo ali, dobrando a esquina. O artificial e o verdadeiro estão cada vez mais próximos e parecidos. Enquanto isso, o melhor é continuarmos nos virando com amores onde há cheiro, toque, pele, e que brotam e murcham, dois processos naturais da vida orgânica. Ao menos, poderemos guardar deles a lembrança das mãos que acariciaram nossos cabelos e dos beijos de boa noite.

O dia que um smartphone também fizer isso, eu caso.

Disse o "black bloc" - RUY CASTRO


FOLHA DE SP - 19/02

RIO DE JANEIRO - Depois não digam que ele não avisou. Um "black bloc", o estudante paulista "Pedro" (nome fictício), ouvido no domingo pelo "Estado", anunciou algumas das ações planejadas por ele e por seus camaradas para a Copa do Mundo. "Nossa tática nunca foi ferir civis", balbuciou, "mas, se não formos ouvidos, a gente vai dar susto em gringo. Não queremos machucar, mas, se for preciso tacar' [coquetel] molotov em ônibus de delegação ou hotel em que as seleções vão ficar, a gente vai fazer".

"Se uma seleção sentir que há risco de vida, eles vão querer continuar aqui?", pergunta. Diz mais: "Todo mundo [os black blocs'] deve se preparar, porque a PM vai vir em peso. A gente está se preparando com treinos de artes marciais como krav maga, jiu-jítsu e muay thai".

Segundo "Pedro", os "black blocs" se organizam em células de 30 pessoas. Em São Paulo, seriam cerca de dez células, num total de 300 participantes "realmente ativos". Somando-se a esses os ativistas beneficiários da Bolsa-Protesto, os membros de grupúsculos com nomes românticos como "Frente Internacionalista dos Sem-Teto" e "Organização Anarquista Terra e Liberdade", e um punhado de impúberes para fazer espuma, não parece muita gente.

Mas, se não forem "ouvidos", eles prometem descontar nos visitantes: "Não somos contra a Copa do Mundo nem contra o futebol. Nossa luta é por uma educação e uma saúde melhores".

Os "black blocs" devem acreditar que, se sabotarem e interromperem a Copa, novos hospitais e escolas se materializarão instantaneamente. Perfeito. Os hospitais serão úteis para tratar dos PMs feridos nos protestos --não se sabe como, sempre em maior número que os vândalos. Quanto às escolas, os "black blocs" ficam na obrigação de se matricular --de preferência, no bê-á-bá-- assim que elas forem abertas.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Terror no papel

Em vez de novas tipificações penais, País precisa agora de um pacto por uma vida digna e em paz

15 de fevereiro de 2014 | 16h 00

Renato Sérgio de Lima
Diante de uma espiral de violência inaugurada pelo despreparo das polícias em lidar com as manifestações inauguradas em junho de 2013, passando pelo recrudescimento de posições radicais (de direita e de esquerda) em torno de como administrar demandas legítimas da sociedade e que ganham destaque com os Black Blocs, os reiterados incêndios de ônibus na periferia paulistana ou os justiceiros cariocas, culminando com a morte trágica do cinegrafista Santiago Andrade, o fato é que estamos correndo sérios riscos de nosso projeto democrático ser derrotado pela banalização do terror e da violência.
Veja também:
link Democracia líquida
Calma lá. 'A vontade de vingança e de castigo suplanta a ideia de justiça e de punição' - Dida Sampaio/Estadão
Dida Sampaio/Estadão
Calma lá. 'A vontade de vingança e de castigo suplanta a ideia de justiça e de punição'
O Brasil tem vivido nestes últimos meses um profundo mal-estar civilizatório, que abre brechas perigosas para que a violência seja assumida como a principal baliza que regula as relações sociais no país e as respostas públicas frente ao medo, à insegurança e às demandas por paz e ordem.
Até porque a violência faz parte da história do País, sendo contada como marca de nossa identidade nacional por quase todos os grandes nomes do pensamento social brasileiro. Ela é, como propõe o sociólogo Luiz Antônio Machado da Silva, forte evidência de uma ordem social fraturada, desigual e extremamente hierarquizada que regula seletivamente a ação e os padrões operacionais das instituições do sistema de Justiça e segurança pública.
O dilema brasileiro é que, mesmo vitimando proporcionalmente mais jovens, negros e pobres, ela é aclamada por significativos segmentos da população como uma "legítima defesa da sociedade", na ineficiência dos mecanismos públicos de resolução pacífica de conflitos. E, para tornar o quadro ainda mais perverso, temos o exemplo do Senado Federal, que tenta reagir às manifestações sociais com soluções ad hoc, como a atual proposta de tipificação do crime de "terrorismo", que reproduz a lógica do pânico e oportunisticamente pega carona nos temores e anseios da população por justiça.
Na prática, a vontade de vingança e de castigo suplanta a ideia de justiça e de punição e, no caso, reforça um factoide político que busca agradar à opinião pública, mas não enfrenta o fato de que nosso sistema de Justiça e segurança pública está falido e necessita de reformas estruturais mais profundas.
E, sem essas reformas estruturais, que passam por eliminar antagonismos e por esvaziar de legitimidade o uso excessivo da violência por parte das polícias, quando o Estado precisa reagir às ameaças seus representantes acabam, conscientemente ou não, por reforçar essa mesma violência. Ao serem cobrados dos excessos institucionais, esses dirigentes os justificam em função do contexto social e das características da criminalidade e declaram-se impotentes frente à "frouxidão" da legislação.
Por certo temos que melhorar a eficiência das políticas públicas de Justiça e segurança, coibindo atos criminosos e a violência por parte da sociedade, mas nosso problema é muito mais profundo e não circunscrito às leis. A violência está arraigada em nossa ordem social e em nossas relações de poder. Ela solapa a confiança nas instituições e nas leis.
Resgatando Hannah Arendt, filósofa que teve a coragem de ir contra o pensamento dominante, embora os fenômenos da violência e do poder apareçam usualmente juntos, a diminuição do poder faz com que esse deixe de restringir a violência, que, quando não restringida pelo poder, pode destruí-lo e tem um grande potencial desagregador, como parece que estamos vendo no debate atual. Vivemos um vácuo de poder legítimo.
Assim, penso que o momento político e institucional é extremamente preocupante, pois estamos à beira de retrocessos significativos no projeto democrático inaugurado na década de 1980. Na reação aos excessos sociais e em nome de combater a violência estamos vendo o crescimento de opiniões que advogam autorização para revogar direitos e restringir liberdades.
E, infelizmente, em nome de um Estado forte, o Brasil sufocou os canais de participação existentes que poderiam deter esse clamor populista. A sociedade civil organizada foi sendo paulatinamente enfraquecida e criminalizada, bem como os defensores de direitos identificados como inimigos da sociedade. Adicionalmente, a imprensa brasileira foi sendo atingida por ameaças reais à integridade física de seus profissionais.
Como resultado, na aguda crise de legitimidade de nosso sistema político e dos governos, as demandas sociais não encontram eco nas instituições públicas e não mais têm porta-vozes capazes de estabelecer interlocução com o Estado.
Por tudo isso, em lugar de tentarmos novas tipificações penais ou justificarmos a violência institucional frente ao contexto social, temos que buscar um pacto em defesa de uma vida digna e em paz, que garanta direitos, previna a violência e reabra canais de diálogos.
RENATO SÉRGIO DE LIMA É COORDENADOR DA LINHA DE PESQUISA "ESTADO DE DIREITO, VIOLÊNCIA E SEGURANÇA PÚBLICA", DO CPJA/DIREITO GV|SP, E CONSELHEIRO DO FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA