Em vez de novas tipificações penais, País precisa agora de um pacto por uma vida digna e em paz
15 de fevereiro de 2014 | 16h 00
Renato Sérgio de Lima
Diante de uma espiral de violência inaugurada pelo despreparo das polícias em lidar com as manifestações inauguradas em junho de 2013, passando pelo recrudescimento de posições radicais (de direita e de esquerda) em torno de como administrar demandas legítimas da sociedade e que ganham destaque com os Black Blocs, os reiterados incêndios de ônibus na periferia paulistana ou os justiceiros cariocas, culminando com a morte trágica do cinegrafista Santiago Andrade, o fato é que estamos correndo sérios riscos de nosso projeto democrático ser derrotado pela banalização do terror e da violência.
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Dida Sampaio/Estadão
Calma lá. 'A vontade de vingança e de castigo suplanta a ideia de justiça e de punição'
O Brasil tem vivido nestes últimos meses um profundo mal-estar civilizatório, que abre brechas perigosas para que a violência seja assumida como a principal baliza que regula as relações sociais no país e as respostas públicas frente ao medo, à insegurança e às demandas por paz e ordem.
Até porque a violência faz parte da história do País, sendo contada como marca de nossa identidade nacional por quase todos os grandes nomes do pensamento social brasileiro. Ela é, como propõe o sociólogo Luiz Antônio Machado da Silva, forte evidência de uma ordem social fraturada, desigual e extremamente hierarquizada que regula seletivamente a ação e os padrões operacionais das instituições do sistema de Justiça e segurança pública.
O dilema brasileiro é que, mesmo vitimando proporcionalmente mais jovens, negros e pobres, ela é aclamada por significativos segmentos da população como uma "legítima defesa da sociedade", na ineficiência dos mecanismos públicos de resolução pacífica de conflitos. E, para tornar o quadro ainda mais perverso, temos o exemplo do Senado Federal, que tenta reagir às manifestações sociais com soluções ad hoc, como a atual proposta de tipificação do crime de "terrorismo", que reproduz a lógica do pânico e oportunisticamente pega carona nos temores e anseios da população por justiça.
Na prática, a vontade de vingança e de castigo suplanta a ideia de justiça e de punição e, no caso, reforça um factoide político que busca agradar à opinião pública, mas não enfrenta o fato de que nosso sistema de Justiça e segurança pública está falido e necessita de reformas estruturais mais profundas.
E, sem essas reformas estruturais, que passam por eliminar antagonismos e por esvaziar de legitimidade o uso excessivo da violência por parte das polícias, quando o Estado precisa reagir às ameaças seus representantes acabam, conscientemente ou não, por reforçar essa mesma violência. Ao serem cobrados dos excessos institucionais, esses dirigentes os justificam em função do contexto social e das características da criminalidade e declaram-se impotentes frente à "frouxidão" da legislação.
Por certo temos que melhorar a eficiência das políticas públicas de Justiça e segurança, coibindo atos criminosos e a violência por parte da sociedade, mas nosso problema é muito mais profundo e não circunscrito às leis. A violência está arraigada em nossa ordem social e em nossas relações de poder. Ela solapa a confiança nas instituições e nas leis.
Resgatando Hannah Arendt, filósofa que teve a coragem de ir contra o pensamento dominante, embora os fenômenos da violência e do poder apareçam usualmente juntos, a diminuição do poder faz com que esse deixe de restringir a violência, que, quando não restringida pelo poder, pode destruí-lo e tem um grande potencial desagregador, como parece que estamos vendo no debate atual. Vivemos um vácuo de poder legítimo.
Assim, penso que o momento político e institucional é extremamente preocupante, pois estamos à beira de retrocessos significativos no projeto democrático inaugurado na década de 1980. Na reação aos excessos sociais e em nome de combater a violência estamos vendo o crescimento de opiniões que advogam autorização para revogar direitos e restringir liberdades.
E, infelizmente, em nome de um Estado forte, o Brasil sufocou os canais de participação existentes que poderiam deter esse clamor populista. A sociedade civil organizada foi sendo paulatinamente enfraquecida e criminalizada, bem como os defensores de direitos identificados como inimigos da sociedade. Adicionalmente, a imprensa brasileira foi sendo atingida por ameaças reais à integridade física de seus profissionais.
Como resultado, na aguda crise de legitimidade de nosso sistema político e dos governos, as demandas sociais não encontram eco nas instituições públicas e não mais têm porta-vozes capazes de estabelecer interlocução com o Estado.
Por tudo isso, em lugar de tentarmos novas tipificações penais ou justificarmos a violência institucional frente ao contexto social, temos que buscar um pacto em defesa de uma vida digna e em paz, que garanta direitos, previna a violência e reabra canais de diálogos.
RENATO SÉRGIO DE LIMA É COORDENADOR DA LINHA DE PESQUISA "ESTADO DE DIREITO, VIOLÊNCIA E SEGURANÇA PÚBLICA", DO CPJA/DIREITO GV|SP, E CONSELHEIRO DO FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA
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