domingo, 5 de maio de 2013

O jogo oculto


Ugo Giorgetti - O Estado de S.Paulo
Um lendário diretor da Rede Globo de Televisão, responsável pelo estabelecimento e consolidação da liderança absoluta da emissora em território nacional sempre dizia: "O principal é não mudar o horário dos programas. Nunca. O espectador deve saber que, no horário de costume, vai entrar o programa de costume".
Até hoje a Globo adota, enquanto TV aberta, essa regra que é fundamental para o telespectador. Mas na TV paga, ou TV fechada, como queiram, ninguém sabe bem o que entra, nem quando entra no ar.
Ou pelo menos é preciso muita atenção às pequenas informações que aparecem num canto de página e lembrar de horários que são frequentemente trocados. Estou falando da programação esportiva nesses emissoras.
Claro que há exceções e alguns programas sabem que precisam se fixar num horário e o fazem sem ressalvas. Sobretudo os programas de entrevistas, opinião, e as mesas redondas sobre futebol.
Com os jogos a coisa é muito mais complicada. Na última quinta-feira, estavam prestes a entrar em campo o São Paulo e Atlético-MG, pela Taça Libertadores da América - era o confronto entre o melhor time da primeira fase da competição contra o chamado 'Time da Fé', que conquistou sua vaga aos 45 do segundo tempo justamente contra o rival do dia.
Um pouco antes do pontapé inicial soou a campainha. Era meu vizinho do andar de baixo. "Será que eu podia ver o jogo aí com você?" Fiquei encantado com essa proposta que me remetia diretamente aos anos cinquenta, quando as pessoas vagavam de vizinho em vizinho, procurando alguém com um aparelho de tevê.
Discretamente procurei saber o que tinha acontecido com a televisão dele. Nada. A tevê estava perfeita, o que ele não tinha era o canal Fox Sports, e como eu escrevo sobre futebol, lhe ocorreu que eu tivesse esse canal, naturalmente. Não tenho. Mas tenho todos os outros que supostamente transmitam todas as partidas importantes.
Por que então deslocar algumas partidas de alto nível para o tal canal Fox Sports? Não que esse canal não transmita jogos. Transmite. Mas jogos não exatamente de meu interesse, algo como Tigre x Huracán, pelo Campeonato Argentino. De qualquer jeito, era uma falta considerada grave que uma pessoa que escreve sobre futebol não tenha o canal Fox Sports.
Vergado pela humilhação pensei em lhe oferecer uma bebida enquanto eu ia dar telefonemas à procura de amigos que tivessem o canal Fox Sports.
Ele me disse então que não havia tempo porque achava que o jogo já tinha começado. Era pouco depois das vinte horas. Essa informação de um horário diferente de tudo que estava habituado, acabou de me derrotar. Não sabia mais o que dizer.
No canal Fox Sports lá estava São Paulo x Atlético, oculto, na minha tevê, pelo aviso: "você não está habilitado, etc, etc."
Abrimos um vinho e logo estávamos acaloradamente amaldiçoando quem distribui os jogos de futebol pelas emissoras, quem faz os horários, etc. Fizemos um pacto que, custe o que custar, não vamos assinar o Fox Sports. Abaixo Tigre x Huracán!
Depois de alguns copos estávamos assistindo Chicago Bulls x Brooklyn Nets, pela NBA. E ficamos esperando informações da vizinhança sobre São Paulo x Atlético-MG. Realmente, quando qualquer dos grandes faz gol, há sempre comemorações por perto. Pois o São Paulo fez um gol aos oito minutos e nenhum de nós percebeu! Foi o vinho ou pouca gente tem o Fox Sports?
A Juventus só precisa de um empate em casa com o Palermo para garantir hoje a conquista do bicampeonato italiano. Mas poderá ser campeã até com uma derrota, desde que o Napoli não ganhe da Inter.
Espanha. A vitória de ontem do Real Madrid sobre o Valladolid por 4 a 3 impede o Barcelona de conquistar o título hoje, quando recebe o Betis. Kaká, fez um gol.
França. Se ganhar hoje do Valenciennes o PSG só não será campeão se ocorrer uma hecatombe, porque abrirá nove pontos de vantagem sobre o Olympique de Marselha (que ontem fez 2 a 1 no Bastia) a três rodadas do final, e sua vantagem no saldo de gols (primeiro critério de desempate) é de 34 gols.
Alemanha. Numa prévia da final da Copa dos Campeões, Borussia Dortmund e Bayern empataram ontem por 1 a 1.

O nó da competitividade - ARLINDO MOURA


O GLOBO - 04/05
O Brasil deverá produzir 183,3 milhões de toneladas de grãos em 2013, o que representa um avanço de 13,1% em relação a 2012. A alta expectativa se deve à previsão de aumento de produção de soja na ordem de 26,3%. Essa é uma boa notícia para a economia brasileira, que precisa recuperar o crescimento do passado recente, mas os ganhos devem ser minimizados pela instabilidade recente na área logística.

A produção de soja foi um dos impulsionadores do PIB na primeira década do século XXI, mas poucas medidas foram tomadas para melhorar a infraestrutura de escoamento. Apesar de a agropecuária enfrentar há décadas as dificuldades logísticas, essas se tornaram mais intensas nos últimos 12 meses. Inicialmente, a legislação que reduziu a jornada de trabalho dos caminhoneiros - responsáveis pelo transporte de 90% da carga - ampliou os já altos custos do setor. Mais recentemente, as dificuldades para o embarque portuário garantiram contornos ainda mais críticos para a produção.

Quem ganha são nossos concorrentes. O prêmio norte-americano para a venda de soja, que sempre foi negativo, passou a ser positivo. Já o brasileiro, que sempre foi positivo, passou a ser negativo. A precariedade rodoviária, a ineficiência das rotas disponíveis para o escoamento e a burocracia portuária explicam o problema. Apesar de o campo brasileiro apresentar a maior produtividade em soja do mundo, os ganhos com a eficiência da produção são perdidos depois que os grãos cruzam a porteira das propriedades rurais. Enquanto são necessários em média US$ 85 para transportar 1 tonelada de soja brasileira, no caso de Rondonópolis para Paranaguá ou Rondonópolis para Santos o custo hoje é superior a US$ 100 por tonelada. Enquanto isso, são necessários apenas US$ 23 nos EUA e US$ 20 na Argentina. A economia do país é quem perde, pois parte dos gastos adicionais são descontados de quem produz. O preço pago aos produtores caiu de R$ 50 para R$ 40 por saca de soja, um quadro que atua contra novos ganhos em eficiência.

O algodão - cuja produtividade brasileira também é a maior do mundo - é outra cultura afetada pela logística. Nossa produtividade é o dobro da indiana, 40% superior à chinesa e 60% superior à norte-americana. Mesmo assim, perdemos mercados por causa do alto custo de escoamento.

O Brasil tem a oportunidade de se tornar o maior exportador de alimentos do mundo, mas as rotas de exportação se concentram em Santos, Paranaguá e São Francisco do Sul, pontos distantes dos centros produtores. Precisamos viabilizar novos corredores do Norte/Nordeste e estabelecer um ambiente de competição entre os diversos terminais. Isso não representa perda para os portos públicos, dado que precisaremos dobrar a infraestrutura portuária até 2020.

O Brasil não pode continuar ostentando a vergonhosa 130ª posição no ranking de eficiência portuária do Fórum Econômico Mundial. Os problemas não se resumem a uma infraestrutura frágil. Enquanto o desembaraço aduaneiro demora em média 2,9 dias em todo o mundo, no Brasil este demanda 5,5. Precisamos dos portos funcionando 24 horas por dia. A ausência dessa prática - de rotina em Xangai, Cingapura ou Roterdã - já causou prejuízos de R$ 346 milhões em 2010 e 2011. Enquanto prolongamos o atraso de décadas em logística, nossa balança comercial é prejudicada e todo o país perde.

Uma dívida de R$ 94 bilhões - FRANCISCO A. FABIANO MENDES ( precatórios)


O GLOBO - 05/05
Mário de Andrade, ao escrever Macunaíma, formulou síntese que ficou famosa: pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são. Acertou em parte, porque os males brasileiros são muitos: falta de segurança, corrupção, pouca eficiência do Poder Público, transporte precário, sonegação, má aplicação dos altos impostos arrancados dos contribuintes. A lista é grande.

Escrevo aqui sobre mais um mal, uma original invenção brasileira: o precatório, palavrinha sinistra que significa o crédito de um particular contra o Poder Público, oriundo de condenação judicial definitiva (transitada em julgado, como falam os processualistas). Já que no Brasil não se aceita que os bens públicos sejam penhorados e leiloados para pagamento dos créditos dos particulares, concebeu-se o precatório. A ideia é interessante e está prevista na Constituição Federal: uma lista de credores do Poder Público, organizada e gerida pelo Poder Judiciário, em que são arrolados os nomes das pessoas físicas ou jurídicas que venceram demandas contra o governo, e que recebem uma espécie de senha (o número do precatório), atestando o dia em que seu precatório foi apresentado ao Judiciário. Organizam-se listas com esses precatórios: a dos idosos e doentes graves, que recebem com prioridade; e duas filas comuns.

À medida que são transferidos recursos financeiros do governo federal, estadual ou municipal ao Poder Judiciário, este expede as ordens de pagamento em favor do dono do precatório. Portanto, quem ganhou um processo contra o Poder Público tem a certeza de que receberá seu dinheiro. Simples, não? Engano seu: complicadíssimo, demorado e enervante. Assim como a jabuticaba, que só existe no Brasil, o precatório é coisa nossa, sendo desconhecida pelos gringos, e serve de escudo para o Poder Público pagar muito pouco do que deve, e nada acontecer ao administrador relapso, que não vira "ficha suja", mesmo se sair do governo sem pagar um só centavo dos precatórios. Convenhamos: isso é um incentivo e tanto ao calote.

O precatório tem inspiração nobre (regularizar o pagamento das dívidas publicas, evitando atrasos e espertezas), mas na prática foi desvirtuado, e hoje a dívida dos precatórios, somando tudo, no Brasil inteiro, é de R$ 94 bilhões. Atente bem: quantias fantásticas de dinheiro são devidas pelos estados e municípios e não são pagas, e fica tudo por isso mesmo. A União Federal é exceção, pois paga suas dívidas, o que não é vantagem, tendo em vista as fortunas colossais que arrecada em impostos. Outra exceção é o governador Sérgio Cabral (RJ), que vem, com habilidade, consertando os desmandos financeiros dos governos diminutivos que o antecederam e, de forma consistente, tem transferido ao Poder Judiciário, ano a ano, valores elevados. Muito falta a ser pago, mas ao menos há boa vontade e atuação firme.

Mas essas exceções não obscurecem - até ressaltam - o fato de que o precatório é um verdadeiro instrumento de tortura, que pune o credor e deixa o administrador público à vontade para nada pagar, sem sequer virar "ficha suja". Primeiro, o cidadão ou empresa, prejudicada de algum modo pelo Poder Público, tem que enfrentar um longo processo judicial para ver reconhecido seu direito de crédito. Depois de vencer sua demanda, o credor nada recebe, a não ser um papel (precatório) que, na prática, só lhe dá o direito de aguardar mais alguns anos.

Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas cunhou a frase: "O sertão é uma espera enorme." O mesmo se diga dos titulares dos precatórios: uma espera infinda, dupla (a do processo inicial e mais a do precatório), agravada pela dor de um dia ter sido lesado pelo Poder Público - motivando a demanda inicial - e continuar a ser desrespeitado em sua cidadania, ao esperar um pagamento devido, mas sempre protelado.

Não ouso propor solução para esse problema. Está fora da realidade propor que o precatório seja desinventado e as dívidas públicas sejam pagas nos seus vencimentos, pois isso implicaria mudar as práticas políticas, que resistem com sucesso invariável às tentativas de moralização. Também não adianta constatar, como os romanos já fizeram, que as leis de nada valem, se não existirem os bons costumes.

Cabe tão só deitar luzes sobre o problema e lutar, com os escassos meios de que dispõem os cidadãos, para a construção de um Brasil minimamente razoável. Como disse John Lennon, sou um sonhador, mas não sou o único.