segunda-feira, 29 de abril de 2013

O arco-íris no centro da política


Para sociólogo francês, a bandeira do ‘casamento igualitário’ - já hasteada em 14 países - transcendeu o universo das minorias e assumiu a vanguarda na transformação da sociedade

27 de abril de 2013 | 17h 48
Ivan Marsiglia - O Estado de S.Paulo
Tão logo foi ratificado pelo Parlamento da França na terça-feira, o projeto que permite o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a adoção de crianças por casais homossexuais desencadeou protestos violentos. Em Paris, manifestantes atiraram garrafas, latas e pedaços de metal na polícia, que reagiu com bombas de gás lacrimogêneo e prendeu 12 pessoas. Os distúrbios foram ainda mais violentos em Lyon, no centro-oeste do pais, onde 44 foram detidos.
 - Marcos Müller/ Estadão
Marcos Müller/ Estadão
Promessa de campanha do presidente François Hollande, eleito pelo Partido Socialista em maio de 2012, o projeto enfrentou resistência da Igreja Católica francesa, da União pelo Movimento Popular, legenda do ex-presidente Nicolas Sarkozy, e da Frente Nacional, de extrema direita. A votação dividida na Assembleia Nacional - 331 votos à favor e 225 contra - já prenunciava a situação da causa do "casamento igualitário", como preferem seus defensores, não só na França, mas no mundo: um cenário de vitórias sucessivas, quase sempre apertadas. Já são 14 os países que adotaram legislação semelhante, na maioria democracias avançadas como Holanda, Noruega, Dinamarca, Suécia, Islândia, Canadá, Bélgica, Nova Zelândia, Portugal e Espanha, mas também Africa do Sul, Argentina e Uruguai. No Brasil, embora o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido, em maio de 2011, a união homoafetiva estável, a decisão não é equivalente a uma lei sobre o assunto.
Para o sociólogo francês Éric Fassin, a bandeira da igualdade de direitos para os homossexuais adquiriu centralidade única na política contemporânea: "Hoje, a principal divisão ideológica entre a direita e a esquerda na França se dá na questão do casamento igualitário". Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Paris VIII, Fassin se dedica a pesquisar a interface política entre as questões sexuais e raciais e afirma que o mito de uma "democracia sexual" no Ocidente serviu muitas vezes para justificar a xenofobia - travestida de defesa dos ‘nossos’ valores contra os ‘deles’. Autor, entre outros livros não traduzidos no Brasil, de Liberdade, Igualdade, Sexualidade: Atualidade Política das Questões Sexuais (2004) e A Inversão da Questão Homossexual (2008), o professor afirma que a empedernida reação à extensão de direitos às minorias acabou por revelar "a cultura hétero que organiza toda nossa vida cotidiana e até as disciplinas que estudam a sociedade, como a sociologia da família ou a antropologia do parentesco".
Na entrevista a seguir, Éric Fassin explica por que os religiosos desta vez não foram os responsáveis pela polêmica, mas pegaram carona nela; afirma que a adoção de crianças por casais gays incomoda por enterrar de vez "a ilusão de que a filiação é fundada biologicamente", o que põe em risco certa concepção arcaica de nação; e diz que rever as concepções "naturais" que temos sobre o casamento, a família e a filiação pode ajudar na necessária reinvenção de nossas sociedades.
Por que mesmo na França, com sua longa tradição na defesa dos direitos humanos, o tema do casamento gay é tão sensível?
Antes de qualquer coisa, há por trás disso uma lógica política. A questão do casamento igualitário é, hoje, a principal diferença entre a direita e a esquerda na França. Todo o resto, de Nicolas Sarkozy a François Hollande, é continuidade: seja em se tratando de economia, nas proposições de austeridade e competitividade tributárias da mesma política neoliberal, seja no debate sobre a imigração - a expulsão de imigrantes não diminuiu no atual governo e a perseguição cotidiana aos ciganos inclusive se intensificou. Foi sobre o casamento, então, que se fixou a clivagem ideológica. Os protestos aos quais estamos assistindo se explicam pelo fato de que todas as forças se concentram, num ambiente no resto consensual, nessa única batalha. Veja que até mesmo em matéria de laicidade, já não há diferença entre os diversos partidos políticos: Hollande propõe hoje uma lei contra o uso do véu islâmico exatamente como o fizeram Sarkozy em 2010 e Jacques Chirac em 2004...
Mas os protestos ocorridos essa semana não aparentam ter origem exclusivamente religiosa, certo? 
Na França, a religião não é o motor primeiro da hostilidade ao tema da igualdade de direitos. É algo que não entendemos bem 15 anos atrás, contra o PaCS (Pacto Civil de Solidariedade, votado em 1999 durante o governo Lionel Jospin, que previa uma parceria contratual entre duas pessoas maiores, independente do sexo, que inspirou o debate sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo no Brasil). A Igreja, na verdade, se aproveita dessa polêmica para existir politicamente. E Sarkozy soube preparar bem o terreno com sua política de identidade nacional, que repousava sobre duas heranças: a laica, contra "eles", os outros, estrangeiros, etc., e a cristã, por "nós", nossos valores. Era um ato de legitimação política da Igreja. Em retribuição, o lobby religioso dá hoje sua bênção à oposição.
O que incomoda mais, a questão reprodutiva, as relações homossexuais em si ou a adoção de crianças por casais do mesmo sexo?
Nos EUA, o casamento em si é que está no coração da controvérsia. Já na França, é a filiação, o acesso à adoção e à assistência médica para as crianças. Por que isso? Ocorre que na França a filiação define, por sua vez, a família e a nacionalidade. Estendê-la aos homossexuais significa desnaturalizá-la de vez, dissipando a ilusão de que a filiação é fundada biologicamente. Do lado inverso, naturalizar a filiação significa dar um fundamento biológico à ideia de nação. Ainda hoje fala-se muito na França de "franceses de estirpe" em oposição a "franceses de origem estrangeira". E naturalizar a filiação é atribuir a ela um caráter racista, que distingue dois tipos de cidadãos, os "naturais" e os de raízes estrangeiras.
Logo após a votação no Senado, o antigo primeiro ministro Jean-Pierre Raffarin acusou os defensores do casamento gay de provocar uma ‘crise social’ e promover ‘uma injustiça contra as crianças, que não conhecerão nem papai nem mamãe’. O que achou dessa declaração?
De um lado, ela joga com o medo, a retórica reacionária de que permitir a adoção por casais gays é entrar em "terreno escorregadio". Por outro lado, está aí a reivindicação de uma visão biologizante da filiação. "Nem papai, nem mamãe"? A única filiação então é a dos genitores? Como fica isso então em relação aos filhos adotivos? No caso da adoção, os genitores não têm papel na filiação, sejam os pais adotivos de sexos diferentes ou não. A frase de Raffarin é uma negação do direito. Não contente em fazer a defesa de "verdades naturais", biológicas, pretende que elas produzam verdades sociais. Vê-se aqui o quão atual é o debate sobre o casamento igualitário, e quanto a resistência a ele significa uma resistência à noção de igualdade e um retorno ao determinismo biológico.
Em um artigo de 2012, o sr. se perguntava se a oposição ao casamento gay seria, em si, uma forma de homofobia. Como responderia a essa questão hoje?
Os que se opõem ao casamento igualitário fazem uso da ideia de natureza, o que é contraditório, uma vez que tanto o casamento quanto a família são instituições sociais. Falar em "instituição natural" é uma contradição em termos. Portanto, julgar que a extensão do casamento aos homossexuais não seria natural é o mesmo que dizer que a homossexualidade vai contra a natureza. Na época dos primeiros debates sobre o PaCS era possível posicionar-se de maneira hostil ao casamento sem ser homofóbico - mas isso porque não havíamos refletido suficientemente sobre isso. Hoje, todo o mundo já debateu todos os argumentos. Recusar a igualdade de direitos é optar conscientemente pela homofobia política. Veja que interessante: tanto na França como nos EUA pouco menos da metade da população é contrária ao casamento igualitário. Entre os americanos, essa proporção é praticamente a mesma dos que se declaram homofóbicos. Na França, ao contrário, a se supor pelas pesquisas, pouquíssimos se dizem homofóbicos. É um dado revelador da hipocrisia francesa.
Por falar em pesquisas, no início dessa semana só 25% dos franceses se declaravam satisfeitos com o governo Hollande. A polêmica afetou sua popularidade?
O casamento igualitário não é a causa da impopularidade do presidente da república, até porque os eleitores de esquerda são majoritariamente favoráveis. Quanto aos de direita, hostis ao tema, de todo modo não apoiariam Hollande. O que explica sua rejeição é o fato de que a volta ao poder dos socialistas não significou uma verdadeira alternância. Lembremo-nos de que o slogan da campanha Hollande era le changement c’est maintenant (a mudança é agora). A defesa do casamento igualitário é, por isso, o único fator que limita sua impopularidade - porque aí, sim, houve mudança. Há quem diga, inclusive, que sua defesa da nova lei serve apenas para fazer os eleitores de esquerda esquecerem as renúncias que fez na volta ao poder. É um fato, mas prefiro que o governo distraia os franceses com a questão do casamento do que expulsando imigrantes ou perseguindo ciganos.
Além da França, outros 14 países aprovaram leis semelhantes, inclusive nossos vizinhos, a Argentina e o Uruguai. Parece haver uma movimentação internacional em torno do tema. Por que o casamento gay virou a principal bandeira de seus ativistas, mais importante até que as leis anti-homofobia? 
No primeiro país, a Holanda, a legalização data de 2001 e, de lá para cá, a multiplicação tem sido bastante rápida. São oito países na Europa, mas também na América do Norte e do Sul, além da Oceania. Isso ocorreu porque os ativistas gays se apoiaram em princípios democráticos como a igualdade de direitos. É uma eficácia ainda mais impressionante quando se leva em conta a enormidade de lutas progressistas que fracassaram nos últimos anos. E mais: trata-se de um desafio enorme simbolicamente, daí a resistência feroz que enfrenta por toda a parte. Outro fator que contribui para sua implementação é o fato de ela não custar quase nada - de certa maneira, portanto, é uma reivindicação compatível com as políticas neoliberais. Ainda que o exemplo da direita francesa, partidária do neoliberalismo, tenha se aliado aos conservadores religiosos para combatê-la.
Em A Inversão da Questão Homossexual o sr. diz que os debates em torno da causa marcam uma ruptura histórica: após um século de estudos da psicanálise, da antropologia e da sociologia sobre a homossexualidade, atualmente é a política lésbica e gay que põe em questão essas disciplinas e a própria sociedade. Por quê?
Veja o exemplo francês: é a homofobia que se esconde hoje em dia, não a homossexualidade. Nos EUA, o humorista Steven Colbert chegou a dizer: "Na França, aquele pessoal com cartazes cor-de-rosa dançando ao som do grupo Abba são os manifestantes antigays!" A homofobia se travestiu: em vez de deixar sua violência sair do armário, percebeu que já tinha perdido a batalha. Dizendo de outra maneira, a questão hoje não é mais "como alguém pode ser homossexual?", mas "como alguém pode ser homofóbico?". As reivindicações gays revelaram o que ninguém percebia em nossa sociedade: é a cultura hétero que organiza toda nossa vida cotidiana, a família e até as disciplinas que estudam a sociedade, como a sociologia da família ou a antropologia do parentesco. O que não conseguíamos ser capazes de perceber, de pensar, passa rapidamente a ser visível, "pensável". Tudo isso que nos parecia "natural" revela-se como mera convenção, arbitrária e portanto modificável.
De que maneira tal mudança de parâmetros afeta questões como a imigração e a xenofobia, como o sr. chegou a dizer?
Durante os anos 2000, políticos xenófobos e racistas buscaram legitimar sua voz nas sociedades ocidentais pela instrumentalização do que chamo de "democracia sexual": dizendo que o sexismo e a homofobia eram mazelas ‘deles’ e não ‘nossas’, os espíritos libertos. Assim, falava-se o tempo todo na Europa sobre como o véu islâmico é um símbolo do patriarcado atrasado deles, assim como casamentos forçados ou a poligamia. Insistíamos o tempo todo que tais violências contra mulheres e homossexuais estavam restritas aos bairros de imigrantes ou estrangeiros. Ora, fazer esse discurso hoje em dia ficou mais difícil. Tanto que a heroína do movimento anticasamento igualitário, Frigide Barjot, foi ao congresso da União das Organizações Islâmicas da França buscar o apoio ‘deles’ para a causa! E já provoca inquietação em alguns imaginar qual será o resultado dessa mudança na retórica conservadora. Ou seja, como será reposta a oposição entre ‘nós’ e ‘eles’ sem o pretexto da democracia sexual.
Em um texto sobre a obra de Michel Foucault, o sr. afirma que não se trata de pensar a invenção de uma cultura gay em torno do casamento e da família, mas de ‘uma cultura inventiva a partir da atualização homossexual dessas instituições’. Tal transformação é possível? Qual seria o resultado dela?
Ela é a mais difícil, mas também a mais necessária, em minha opinião. Na França, como teria sido absurdo denunciar o casamento igualitário como um projeto de normalização da homossexualidade, o argumento que se usou contra, tanto à direita como à esquerda, foi o da defesa da "ordem simbólica". Mas uma vez vencida a batalha, é preciso enfrentar a questão. E aproveitar este momento para questionar de fato as noções de casal, de família, casamento e filiação. Se em vez de presumir que já sabemos do que estamos falando, como se fosse algo óbvio, tomarmos consciência de que cabe a nós dar-lhes sentido, abre-se um espaço. Se não um espaço de reinvenção radical, pelo menos de um pouco de bricolagem, de improvisação. Já vimos, em outras ocasiões, como o divórcio, a possibilidade de outros casamentos engendraram novas experiências sociais. Por que não poderia ocorrer novamente, a partir da abertura do casamento e da família aos casais do mesmo sexo? 

Nós entre os outros


Lúcia Guimarães - O Estado de S.Paulo
1 - O governo dos Estados Unidos armou uma cilada para enquadrar os irmãos Tsarnaev pelo atentado à bomba contra a maratona de Boston. 2 - O vídeo do sobrevivente Dzhokhar Tsarnaev não prova nada. Por que não liberaram outros trechos do vídeo? 3 - O tiroteio na madrugada de Boston, que resultou na morte de Tamerlan Tsarnaev, está mal explicado. 

As afirmações acima não saíram apenas da boca de Zubaidat, a mãe dos dois acusados, no Daguestão. Foram feitas, em conversas comigo, por amigos brasileiros, jornalistas e profissionais com pós-graduação, mais viajados e cosmopolitas do que a maioria dos americanos.

Se eu trabalhasse em comunicação para o Departamento de Estado em Washington, estaria preocupada. Mas trabalho para um jornal brasileiro e estou mais preocupada ainda. Não porque ignore o fato de que George Bush mentiu para o povo americano e o resto do mundo para começar uma guerra que fez dezenas de milhares de mortos no Iraque. Não porque negue que a manutenção da prisão de Guantánamo seja uma vergonha que mancha a história da democracia constitucional. Não porque não me horrorize com o "dano colateral", a morte de civis provocada pelos ataques de drones. Não porque ignore o fato de que os assassinatos em massa por armas de fogo, como Newtown e Aurora, são crimes hediondos que podiam ter sido evitados. Há muito o que condenar no comportamento dos Estados Unidos depois do 11 de setembro. Mas determinar que milhares de policiais, centenas de figuras públicas e de jornalistas, sem contar testemunhas entre o público fazem uma demonstração sincronizada de falsificação digna da Coreia do Norte é um salto que tenho dificuldade de compreender.

A desinformação folclórica dos americanos que consideravam Buenos Aires a nossa capital, era explicada em parte pelo país continental, o superpoder intervencionista do século 20, enamorado de sua dominação econômica e tecnológica. A desinformação do país no século 21, com candidatos a presidente afirmando que o planeta nasceu há 5 mil anos, é assustadora e possível graças à bolha criada por propaganda, conservadorismo político e religioso. 

Mas como explicar as crenças de uma elite que compra mostarda em Paris, ridiculariza os desinformados do norte e se considera tão esclarecida? E por falar em Paris, lembro que a bela e talentosa Marion Cotillard, depois de sugerir que as torres gêmeas foram destruídas no 11 de setembro para dar lugar a prédios modernos, concluiu com esta pérola: "Será que o homem pisou na lua? Assisti a vários documentários sobre isso, mas fiquei pensando...". Um agente em pânico e os dólares de Hollywood devem ter impedido a ganhadora do Oscar como Edith Piaf de continuar pensando alto.

Depois de uma semana no Brasil, revivi a noção de como o mundo supostamente unido pela mídia social e pelo registro digital instantâneo é, em vários aspectos, um mundo mais isolado. O trajeto da opinião que substitui fatos à teoria conspiratória encurtou bastante. 

Sim, é ultrajante que Dzhokhar tenha sido interrogado por 16 horas antes de lerem para ele o Alerta Miranda, sobre seus direitos à defesa e a não se incriminar, e, só então, parou de falar. Sim, Dzhokhar Tsarnaev não só tem direito a julgamento, como vai ser representado por três advogados, um deles a maior estrela da defensoria pública do Estado de Massachusetts.

E, mesmo se ele confessou que foi autor do atentado que matou três e feriu 200; que planejava mais ataques em Nova York, com os seis artefatos explosivos encontrados; que agiu motivado pelas guerras no Iraque e Afeganistão - tudo isso pode ser contestado pela defesa durante o julgamento. Difícil de contestar é o testemunho do jovem empresário chinês sequestrado pelos irmãos, numa ação atrapalhada que resultou na captura de Dzhokhar e na morte de Tamerlan, ação, diga-se de passagem, fotografada por moradores do bairro.

"Ouviu falar do que aconteceu na maratona de Boston?", disse segundo o sequestrado, Tamerlan Tsarnaev. "Eu fiz aquilo. E acabei de matar um policial em Cambridge." Na entrevista ao Boston Globe, a vítima, que teme revelar seu verdadeiro nome chinês, relata 90 minutos de terror em detalhes que podem ser parcialmente confirmados pelo sistema de navegação do carro e, em seguida, pelo GPS do celular.

Se as forças policiais envolvidas na maior caçada humana da história de Boston contribuíram para a desinformação - Dzhokhar estava armado e não estava, Tamerlan morreu no tiroteio ou atropelado pelo irmão em fuga - a disposição imediata de acreditar numa conspiração governamental em grande escala, num mundo tão documentado pela tecnologia, merece pausa. 

A desconfiança do país que invadiu o Iraque sob falso pretexto, mantém Guantánamo e articulou uma erosão expressiva da privacidade depois do 11 de setembro é justificada. O mesmo não se pode dizer da ideia de que qualquer fato deve ter versões coloridas para combinar com nosso guarda-roupa ideológico.

sábado, 27 de abril de 2013

Darwin e a prática da 'Salami Science'


FERNANDO REINACH - O Estado de S.Paulo
Em 1985, ouvi pela primeira vez no Laboratório de Biologia Molecular a expressão "Salami Science". Um de nós estava com uma pilha de trabalhos científicos quando Max Perutz se aproximou. Um jovem disse que estava lendo trabalhos de um famoso cientista dos EUA. Perutz olhou a pilha e murmurou: "Salami Science, espero que não chegue aqui". Mas a praga se espalhou pelo mundo e agora assola a comunidade científica brasileira.
"Salami Science" é a prática de fatiar uma única descoberta, como um salame, para publicá-la no maior número possível de artigos científicos. O cientista aumenta seu currículo e cria a impressão de que é muito produtivo. O leitor é forçado a juntar as fatias para entender o todo. As revistas ficam abarrotadas. E avaliar um cientista fica mais difícil. Apesar disso, a "Salami Science" se espalhou, induzido pela busca obsessiva de um método quantitativo capaz de avaliar a produção acadêmica.
No Laboratório de Biologia Molecular, nossos ídolos eram os cinco prêmios Nobel do prédio. Publicar muitos artigos indicava falta de rigor intelectual. Eles valorizavam a capacidade de criar uma maneira engenhosa para destrinchar um problema importante. Aprendíamos que o objetivo era desvendar os mistérios da natureza. Publicar um artigo era consequência de um trabalho financiado com dinheiro público, servia para comunicar a nova descoberta. O trabalho deveria ser simples, claro e didático. O exemplo a ser seguido eram as duas páginas em que Watson e Crick descreveram a estrutura do DNA. Você se tornaria um cientista de respeito se o esforço de uma vida pudesse ser resumido em uma frase: Ele descobriu... Os três pontinhos teriam de ser uma ou duas palavras: a estrutura do DNA (Watson e Crick), a estrutura das proteínas (Max Perutz), a teoria da Relatividade (Einstein). Sabíamos que poucos chegariam lá, mas o importante era ter certeza de que havíamos gasto a vida atrás de algo importante.
Hoje, nas melhores universidade do Brasil, a conversa entre pós-graduandos e cientistas é outra. A maioria está preocupada com quantos trabalhos publicou no último ano - e onde. Querem saber como serão classificados. "Fulano agora é pesquisador 1B no CNPq. Com 8 trabalhos em revistas de alto impacto no ano passado, não poderia ser diferente." "O departamento de beltrano foi rebaixado para 4 pela Capes. Também, com poucas teses no ano passado e só duas publicações em revistas de baixo impacto..." Não que os olhos dessas pessoas não brilhem quando discutem suas pesquisas, mas o relato de como alguém emplacou um trabalho na Nature causa mais alvoroço que o de uma nova maneira de abordar um problema dito insolúvel.
Essa mudança de cultura ocorreu porque agora os cientistas e suas instituições são avaliados a partir de fórmulas matemáticas que levam em conta três ingredientes, combinados ao gosto do freguês: número de trabalhos publicados, quantas vezes esses trabalhos foram citados na literatura e qualidade das revistas (medida pela quantidade de citações a trabalhos publicados na revista). Você estranhou a ausência de palavras como qualidade, criatividade e originalidade? Se conversar com um burocrata da ciência, ele tentará te explicar como esses índices englobam de maneira objetiva conceitos tão subjetivos. E não adianta argumentar que Einstein, Crick e Perutz teriam sido excluídos por esses critérios. No fundo, essas pessoas acreditam que cientistas desse calibre não podem surgir no Brasil. O resultado é que em algumas pós-graduações da USP o credenciamento de orientadores depende unicamente do total de trabalhos publicados, em outras o pré-requisito para uma tese ser defendida é que um ou mais trabalhos tenham sido aceitos para publicação.
Não há dúvida de que métodos quantitativos são úteis para avaliar um cientista, mas usá-los de modo exclusivo, abdicando da capacidade subjetiva de identificar pessoas talentosas, criativas ou simplesmente geniais, é caminho seguro para excluir da carreira científica as poucas pessoas que realmente podem fazer descobertas importantes. Essa atitude isenta os responsáveis de tomar e defender decisões. É a covardia intelectual escondida por trás de algoritmos matemáticos.
Mas o que Darwin tem a ver com isso? Foi ele que mostrou que uma das características que facilitam a sobrevivência é a capacidade de se adaptar aos ambientes. E os cientistas são animais como qualquer outro ser humano. Se a regra exige aumentar o número de trabalhos publicados, vou praticar "Salami Science". É necessário ser muito citado? Sem problema, minhas fatias de salame vão citar umas às outras e vou pedir a amigos que me citem. Em troca, garanto que vou citá-los. As revistas precisam de muitas citações? Basta pedir aos autores que citem artigos da própria revista. E, aos poucos, o objetivo da ciência deixa de ser entender a natureza e passa a ser publicar e ser citado. Se o trabalho é medíocre ou genial, pouco importa. Mas a ciência brasileira vai bem, o número de mestres aumenta, o de trabalhos cresce, assim como as citações. E a cada dia ficamos mais longe de ter cientistas que possam ser descritos em uma única frase: Ele descobriu...