domingo, 21 de abril de 2013


Delícias da burocracia - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 21/04

SÃO PAULO - A pílula do dia seguinte é oferecida de graça na rede púbica, mas muitos postos de saúde exigem receita médica para fornecê-la. Pegadinha: marcar uma consulta ginecológica pelo SUS leva até dois meses e o medicamento só funciona se tomado até cinco dias após a relação sexual desprotegida.

Casos de disposições burocráticas absurdas ou pelo menos muito esquisitas é o que não falta. Acho até que nutrimos um prazer meio masoquista em identificá-las e ridicularizá-las. Não é mera coincidência que uma das definições de "burocracia" no meu "Houaiss" registre: "Estrutura ineficiente, inoperante, morosa na solução de questões e indiferente às necessidades das pessoas".

Há, é claro, um outro lado. Um sinônimo de "burocracia" é "serviço público profissional". Foi Max Weber (1864-1920) quem primeiro destacou a relevância para o Estado moderno de uma estrutura de funcionários capacitados organizados em hierarquias e que tomam decisões com base em regras racionais preferencialmente escritas. Foi só a partir daí que os favores prestados pelos poderosos puderam converter-se em direitos garantidos pelo poder público.

O mundo, porém, está longe de ser um lugar perfeito e nem a mais weberiana das burocracias é sem pecados. Um pouco por falhas nas regras, um pouco por preferências inatas de seus integrantes e muito para exercer seu quinhão de poder, o serviço público frequentemente cria paradoxos como o da pílula do dia seguinte.

Minha modesta sugestão para lidar com isso não esconde um viés burocrático: por que Dilma, que não tem mesmo medo de criar ministérios, não traz de volta a pasta da desburocratização? Estou ansioso para que alguém me explique por que carteiras de motorista com o exame médico vencido deixam de valer como prova de identidade e por que uma xerox autenticada, que serve até como prova no STF, não basta para pegar um ônibus intermunicipal.

A ferrovia inacabável - EDITORIAL O ESTADÃO

O ESTADÃO - 21/04

Se tudo ocorrer como quer o governo, o mais antigo projeto ferroviário do País poderá ser concluído em meados do ano que vem, mas totalmente diferente do que foi anunciado há 27 anos e a um custo várias vezes maior do que o previsto, o que o torna a sétima obra de transportes mais cara do mundo - e certamente a mais lenta.
Símbolo da megalomania político-administrativa do governo Sarney (1985-1990) - que, no plano econômico, desorganizou o setor produtivo com a insistência em programas de estabilização baseados no controle de preços a Ferrovia Norte-Sul começou a ser construída em 1987, mas muitos de seus contratos foram encerrados sem que as obras tivessem sido concluídas, mesmo tendo tido seus valores corrigidos até 17 vezes. Irregularidades constatadas por auditorias do Tribunal de Contas da União (TGU) resultaram na suspensão de obras e sua correção implicou gastos adicionais para a Valec, a estatal encarregada de construí-la.
De seu atual traçado de 2.254 quilômetros, apenas um trecho de 719 km, de Açailândia (MA) a Palmas (TO), está em operação pela mineradora Vale, que obteve a concessão por 30 anos, em leilão realizado em 2007. O trecho seguinte, de 855 km, entre Palmas e Anápolis (GO), deveria ter sido concluído em outubro de 2010, de acordo com o cronograma anunciado em 2007 pelo então presidente Lula, quando repassou R$ 4,2 bilhões do Tesouro para a Valec. Há alguns meses, a estatal prometeu concluir o trecho em julho próximo, mas agora o presidente da empresa, Josias Cavalcante, admite que, ele ficará pronto só em dezembro. A conclusão do último trecho, de 680 km, entre Ouro Verde (GO) e Estrela d?Oeste (SP), está prevista para julho de 2014.
A construção da Norte-Sul sintetiza diversos vícios da administração pública brasileira, como projetos deficientes, superfaturamento, obras mal executadas, mas mesmo assim pagas pelo poder público. A quantidade de irregularidades levou a ferrovia e a Valec às páginas policiais dos jornais e contribuiu para a substituição da diretoria da empresa e da cúpula do Ministério dos Transportes.
No ano passado, a nova diretoria da Valec reviu as obras do trecho entre Palmas e Anápolis e constatou que teria uma despesa extra de R$ 400 milhões para reparar estruturas malfeitas e trilhos mal instalados, além de construir pátios logísticos ao longo da ferrovia, indispensáveis para o transbordo de mercadorias. Isso estava nos contratos, mas não foi executado a contento.
Mesmo que as principais irregularidades sejam sanadas, parece pouco provável que os dois trechos restantes sejam entregues em perfeitas condições de operação nos prazos previstos pela estatal, pois as obras
continuam a patinar, como mostrou o jornal Valor (15/4).
Em Anápolis, foi entregue o túnel de 360 metros, mas sem nenhum metro de trilho instalado. Nas paredes de concreto na entrada e na saída do túnel, que têm a finalidade de evitar deslizamentos, já há rachaduras provocadas por plantas e infiltrações das águas das chuvas. Em trechos onde já foram instalados dormentes de concreto, foi afixado o. terceiro trilho, para permitir o tráfego de trens com bitolas diferentes, mas, nos trechos seguintes, não há estrutura para esse terceiro trilho.
Recente vistoria do TGU constatou que, num trecho de 280 km, obras consideradas prontas não têm rede de drenagem, aterros foram mal construídos e falta cobertura vegetal. Um ramal de 7 km ligando a ferrovia ao porto seco de Anápolis deveria ter sido construído, mas não o foi. O TGU também constatou superfaturamento e armazenamento inadequado de materiais.
A conclusão da Ferrovia Norte-Sul tornou-se vital não apenas para as regiões agrícolas e mineradoras de sua área de influência, mas sobretudo para a viabilização do ambicioso programa de concessões de ferrovias anunciado pelo governo. Boa parte dos 12 trechos que serão oferecidos à iniciativa privada está diretamente conectada à Norte-Sul ou depende de sua conclusão para que seja assegurado o movimento de cargas necessário para tornar viável a operação comercial desses trechos.

Qual é a inflação corrente? - SAMUEL PESSOA

FOLHA DE SP - 21/04

O espalhamento atual da inflação é compatível com uma taxa de 7,5% ao ano; as desonerações são artificiais


Talvez a maior dificuldade na condução da política monetária corrente seja saber exatamente qual é a inflação de fundo da economia. Isto é, qual a inflação gerada pela pressão da demanda.

Geralmente o índice de inflação --o IBGE mede mensalmente a inflação do consumidor dada pela evolução do índice de preço ao consumidor amplo (IPCA)-- fica "contaminado" por elevações de preços que representam choques de oferta da economia que no futuro serão revertidos.

Por exemplo, sabe-se que os preços das principais commodities agrícolas --soja, milho e trigo-- elevaram-se muito no segundo semestre do ano passado em razão de secas nos EUA, na Argentina e no Brasil.

Como os problemas climáticos vêm e vão, não faz sentido a política monetária combater choques dessa natureza.

Evidentemente, se os choques gerarem pressão sobre o mercado de trabalho e induzirem barganhas salariais que elevem a taxa de crescimento dos salários além da produtividade, de sorte que os aumentos salariais serão repassados aos preços dos produtos, deve-se elevar a taxa de juros para combater o fenômeno inflacionário.

Além do choque das commodities agrícolas, houve no primeiro trimestre deste ano e no quarto do ano passado um choque de produtos hortifrutigranjeiros. Esse choque também reverterá. No fim do ano, a inflação em 12 meses provavelmente estará na casa de 5,6%.

Por que motivo toda a preocupação e a grita do "mercado" financeiro? Ocorre que houve inúmeros choques de oferta de sinal contrário. As inúmeras desonerações --energia elétrica, cesta básica, IPI de automóveis, entre outras-- têm efeito transitório e funcionam exatamente como um choque de oferta, só que com sinal contrário.

Qual seria a inflação hoje medida pelo IPCA se não houvesse as desonerações? Uma maneira é recalcular o índice de inflação desconsiderando os itens do IPCA que foram desonerados. Esse cálculo sugere que a inflação estaria entre 7% e 7,5%.

Outra forma de avaliar qual seria a inflação corrente se não existisse as desonerações é procurar alguma variável ligada à inflação, mas que não seja afetada pela desoneração. Um exemplo é a taxa de difusão. A taxa de difusão é a proporção dos preços que se elevam no mês.

Cada ponto do gráfico nesta página apresenta para cada mês entre julho de 2005 e junho de 2012 a inflação acumulada em 12 meses no eixo horizontal e a difusão média nos 12 meses anteriores no eixo vertical.

Nota-se que há uma clara relação positiva entre ambas: quando o nível de inflação acumulada em 12 meses eleva-se, a difusão acompanha.

As cruzes no gráfico representam as mesmas variáveis para o período de julho de 2012 até março de 2013. Nota-se um claro deslocamento da relação entre a inflação em 12 meses e a difusão. Nos últimos nove meses, a relação entre inflação e difusão deslocou-se para cima e para a esquerda no gráfico.

O descolamento recente entre inflação e difusão da inflação é consequência das desonerações. As desonerações reduzem artificialmente a inflação, mas têm impacto bem menor sobre a difusão. Como as flechas indicam, a elevadíssima difusão média em 12 meses observada em março é compatível com uma inflação de 7,5% ao ano! De fato, o Comitê de Política Monetária do Banco Central deve estar bem preocupado com a inflação.