sexta-feira, 13 de agosto de 2010

A doce ilusão da vontade


Fernando Reinach   fernando@reinach.com - O Estado de S.Paulo

Quando nos levantamos da mesa, vamos até a geladeira e nos servimos de um copo de água, temos a certeza de que esse comportamento complexo teve sua origem em nossa vontade. Em outras palavras, acreditamos que tudo se iniciou com nossa vontade consciente de tomar água.
Não há dúvida de que a mente humana é capaz de imaginar uma situação no futuro (a água prazerosamente descendo pela garganta), avaliar se essa situação é recompensadora (sim, tenho sede) ou não (que preguiça de ir até a geladeira) e tomar a decisão de agir para tornar real a situação que imaginamos. O problema é que nas últimas décadas os cientistas têm descoberto que muitos atos que acreditamos serem derivados de nossa vontade consciente na verdade são comandados ou modulados pelo nosso inconsciente.
A ilusão da vontade consciente é tão forte que muitos têm dificuldade em aceitar que atos inconscientes existem. Para convencer os incrédulos, nada melhor que examinar os mais simples. Nosso coração bate regulado por um mecanismo sobre o qual praticamente não temos controle consciente. O mesmo ocorre com o movimento dos intestinos. Outros atos são controlados pelo inconsciente durante a maior parte do tempo, mas podemos assumir seu controle. É o caso do ato de respirar.
Em outros casos - por exemplo, quando dirigimos um carro por um percurso familiar -, abdicamos do controle consciente e de repente percebemos que já chegamos. O mesmo ocorre com o ato de andar. Já tentou controlar conscientemente cada movimento de cada músculo do seu corpo enquanto anda? É praticamente impossível. Começamos a andar e o inconsciente toma conta dos detalhes enquanto sonhamos acordados.
A primeira descoberta que abalou nossa ilusão de que a vontade consciente inicia nossos atos foi o experimento que demonstrou que quando uma pessoa levanta um dedo, um cientista que monitora seu cérebro é capaz de prever que ela vai decidir levantar o dedo frações de segundo antes de ela fazê-lo e muito antes de o dedo realmente se mover (veja A possibilidade de prever decisões e o livre-arbítrio, publicado aqui em 16/08/2007). Nesse caso, apesar de o cérebro ter "decidido" antes de a decisão aparecer na consciência, o ato de levantar o dedo só ocorre depois de essa vontade aparecer na consciência.
Nos últimos anos, os cientistas descobriram que muitos de nossos atos são iniciados e concluídos sem que eles apareçam na nossa consciência. O elemento que provoca o início do ato também é inconsciente. Dezenas de experimentos demonstram que isso ocorre. Em um deles, duas pessoas sentadas em uma mesa são instruídas a montar dois quebra-cabeças em sequência. Os quatro quebra-cabeças, quando montados, revelam palavras. Foi descoberto que se o quebra-cabeça montado primeiro por uma das pessoas revelar palavras como "vitória" ou "competitividade", essa pessoa vai montar mais rapidamente que a outra o segundo quebra-cabeça.
Ou seja, mesmo sem ter decidido conscientemente aumentar a velocidade com que tenta completar a tarefa, o inconsciente da pessoa usa a informação visual e o significado da palavra lida no primeiro quebra-cabeça para modular seu comportamento. A competitividade brotou diretamente do inconsciente. Interrogadas sobre o experimento, essas pessoas não têm consciência de que tentaram aumentar a velocidade.
Nessa mesma linha, outros experimentos demonstram que, em um escritório, as pessoas mantêm suas mesas mais limpas se um ligeiro odor de desinfetante (em níveis abaixo dos percebidos conscientemente) for adicionado ao ar. Em outro estudo, pessoas eram informadas que receberiam uma recompensa fixa em dinheiro (digamos, sempre R$ 1) se apertassem um botão quando uma imagem de dinheiro aparecesse na tela. Diferentes grupos foram submetidos a diversas imagens de dinheiro. A força com que as pessoas apertam o botão é diretamente relacionada ao valor que aparece na tela.

Em todos esses casos, as pessoas agiram guiadas por estímulos vindos do inconscientes e nunca tiveram conhecimento ou "vontade consciente" de praticar os atos. Elas procuraram atingir um objetivo e executaram um ato sem intervenção da consciência. Experimentos mais complexos demonstram que muitas vezes iniciamos, executamos e terminamos atos sem jamais termos consciência do que fazemos.

Esses experimentos têm gerado muitas discussões sobre seu significado. Eles afetam a imagem que temos de nossos atos, da nossa liberdade de ação e do que significa ser humano. Mas, para muitos biólogos, essas descobertas são mais uma demonstração de que, afinal, não somos tão diferentes dos outros animais.

A maioria dos seres vivos provavelmente não tem consciência de seus atos da mesma maneira que acreditamos possuir. Apesar disso, agem e reagem guiados por um cérebro capaz de captar estímulos do meio ambiente e transformá-los em ações na ausência de consciência. Nossa mente consciente evoluiu no interior de um desses cérebros e não deveria nos espantar que muitos dos mecanismos que governam o comportamento de nossos ancestrais ainda governem nossos atos. Precisamos aprender a conviver com o fato de que não passamos de animais sofisticados e aos poucos nos libertarmos da doce ilusão de que nossos atos dependem de nossa vontade consciente.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Papai

11 de agosto de 2010 | 0h 00
    Roberto da Matta - O Estado de S.Paulo
Um papel social importante é regularmente assinalado. Na semana que passou, comemoramos o seu lado positivo. Mas mesmo vivido pelo avesso, o papel é discutido, como ocorre nos tristes casos em que o pai destrói o filho, que o castiga em excesso ou, pior que isso, que o renega. No lado simbólico e exemplar, invocamos o Pai para glorificá-lo na sua projeção como o Pai Eterno que tudo criou; ou o pai mortal que, sendo regular e mediocremente bom e mal, como é o caso em geral, ajuda - é certo - a vender cuecas e gravatas, mas também a pensar em certas coisas...
* * * *
De papai guardei duas memórias. Ele não foi um homem de palavras ou canções. Pouco disse, muito agiu. Sempre no sentido de preservar e cuidar da família ("nada pode faltar na minha casa!"); jamais pulou a cerca: foi o maior marido "caixão branco" que vi na minha vida; nada me disse quando, um dia, tive uma dificuldade sexual corriqueira (e fundamental) que nos torna ternamente meninos diante das mulheres; mas, um dia, quando notei a janela do meu quarto ser forçada, testemunhei sua coragem quando ele, de um salto, escancarou-a no intuito de pegar o ladrão que tentava violar o nosso lar.
Quando entrei no ginásio numa Juiz de Fora de bondes e apenas duas piscinas (a do Sport e a da casa do Mario Assis onde, com o Mauricio Macedo e o saudoso Naninho, tomávamos banho depois de peladas de basquetebol), meu pai, um tanto solene, presenteou-me com uma caneta Parker. Nela, estava incrustado o meu nome. Aquela caneta me levou à escrita - um desejo e comando ocultos daquele pai provedor e elegante. Ali eu recebi a pena que me livra, com as mentiras que conto, de todas as penas desta vida.
Quando, nos idos de 1963, para o risco de Harvard, ia partir para uma Nova Inglaterra fria e desconhecida, papai me presenteou com um sóbrio sobretudo que era uma confirmação de autonomia, era um voto de sucesso para a carreira que tomava corpo e era, eis o que vejo hoje com olhos marejados de lágrimas, a definitiva, a tão necessária - a tão magnânima Bênção paterna. Pois o que é a "bênção" senão a prova explícita de um amor incondicional e, por isso mesmo, pronto para sair de cena?
Esse casaco me agasalhou nas nevascas. Deu-me o calor e o conforto moral contra as covardias da minha insegurança. Usei-o quando fiz meus exames para o doutoramento; vesti-o quando caminhava nas ruas de Cambridge e, solitário, aprendia a ser antropólogo. Ou antropófago dos fatos da vida. Ao escrever e tentar me proteger, estou com papai. Bonito, forte, amante da praia e dos esportes. Fiel à sua família e à sua casa. Tão honesto e puro que, mesmo sendo fiscal do consumo, só nos legou uma casa. Nós, seus cinco filhos e filha, o enterramos com um choro de orgulho e amor. Fôramos todos abençoados por esse baiano que, entre muitas coisas, jamais visitou os Estados Unidos, pois - como me disse uma vez - jamais poderia pôr os pés num país que não gostava de negros.
* * * *
Um dia eu virei e - digo-o porque é importante - jamais deixei de ser pai. Estava escrito e a despeito de minhas dúvidas, determinado. Segui a mesma sina e tive dois filhos e uma filhinha. A metade da prole paterna, como manda o figurino de um rapaz que queria ser pai e tinha aspirações politicointelectuais. Como politicointelectual queria ser a luz dos explorados e era favorável ao que então se chamava de "reformas de base" e hoje dizem ser o PAC. E que jamais saem do papel. Tinha fantasias de ser um grande "conscientizador" (eis uma outra palavra da época) e sair pelo mundo, renunciando-o, para exercer a carreira dos comunistas que - naquele momento - figuravam como andarilhos e santos. Não sei aonde foram parar. Como pai e marido, segui o pai e como pai fui menos calado e certamente tão insatisfatório e faltoso quanto Renato, meu genitor. Pois quem como pai é pleno, se a plenitude supõe uma igualdade que o papel de doador da vida, instaurando uma dívida inafiançável, suprime de saída? Como ser pai (ou mãe) se num momento de nossas vidas fomos deuses e o nosso êxtase - num leito que também é o Jardim do Éden - produziu o sopro da vida?

Quando meu filhos nasceram, eu me senti mais como um deus do que como um mero reprodutor. Tinha uma consciência tão forte, tão brutalmente presente da minha capacidade de conceber vidas que esse dom englobava a mera paternidade social e cartorial de dar apenas o nome, ao lado da transformação de marido em papai.

* * * *

Sou hoje avô, ou como falamos carinhosamente no Brasil, sou pai duas vezes. De fato, testemunhar o nascimento dos filhos dos filhos é uma bênção: um raro e bíblico privilégio. Os filhos dos filhos nos fazem reviver o dom da vida sendo reproduzida pelos que fizemos. Pode haver algo mais gracioso?
Mas em verdade eu vos digo, queridos leitores, não há nada, mas nada mesmo mais abençoado do que ter a consciência de ser um doador de vidas e por elas responder. De ter o poder de distribuir a Bênção do amor e de assim desejar, do fundo do coração, que todos os seus filhos tenham uma longa vida e sejam muito - sejam eternamente felizes. 

Tópicos: CulturaVersão impressa

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Sayad explica planos a conselho da TV Cultura


Presidente da instituição anunciou o fim de alguns contratos, extinção de programas e a estratégia para diminuir déficit e aumentar produtividade

10 de agosto de 2010 | 0h 00
    Jotabê Medeiros - O Estado de S.Paulo
Conselheiros da Fundação Padre Anchieta, reunidos ontem de manhã na sede da TV Cultura, sabatinaram o presidente da instituição, João Sayad, a respeito das mudanças que ele planeja fazer na programação e na gestão da emissora. Sayad apresentou seus planos de reformulação da programação e enxugamento da estrutura da TV Cultura.
Cerca de 27 conselheiros participaram, entre eles Danilo Miranda, do Sesc São Paulo, o embaixador Rubens Barbosa e o poeta Jorge da Cunha Lima.
Sayad anunciou a extinção de programas (como o Manos & Minas e Login), o encerramento dos serviços terceirizados da fundação (gravações, por exemplo, para a TV Assembleia, TSE, Procuradoria da República e TV Justiça), o encerramento de contratos e seu plano para a diminuição dos déficits da TV, além do aumento da produtividade. Segundo Sayad, em 24 horas de programação, a TV Cultura só produz atualmente 6 horas de conteúdo próprio, o que é considerado muito pouco para o tamanho da folha salarial.
Os conselheiros resolveram, ao final da explanação, conceder uma espécie de "crédito" de seis meses para que o plano de Sayad surta resultados. Ao final desse período, haverá uma reavaliação das modificações. Sayad também teve de ouvir algumas advertências e recomendações. O conselho não concorda que ele extirpe totalmente da programação de música erudita as transmissões de orquestras brasileiras - o presidente preferiria exibir, como o núcleo central do programa, orquestras internacionais em apresentações consagradas.
Segundo um conselheiro, que preferiu não se identificar, foi sugerida a manutenção, pelo menos, das apresentações da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). Outro conselheiro sugeriu que Sayad abandone a pretensão de exibir daqui por diante apenas os documentários da mostra É Tudo Verdade, organizado pelo crítico Amir Labaki - para uma ala da fundação, é importante manter a exibição dos documentários financiados pelo programa Doc-TV, que Sayad pretendia diminuir drasticamente.
Cortes. O conselho deu carta branca ao dirigente porque avaliou que Sayad está cumprindo à risca os compromissos que firmou ao ser eleito para a presidência, entre eles o de comunicar previamente aos diversos comitês do colegiado, com antecedência, todos os seus passos. Os conselheiros não abordaram o tema das demissões, mas é certo que vai haver cortes na folha da fundação, hoje com cerca de 1,9 mil funcionários. Esses cortes, entretanto, avalia um executivo da emissora, só poderão ser realizados a partir do ano que vem. Até lá, deverão ser afastados apenas funcionários que mantêm contratos como pessoas jurídicas - não há uma estimativa de quantos seriam na TV.
O debate foi pontuado pelos gráficos e pela longa explanação de João Sayad, economista com reputação de rígido e metódico. O déficit de R$ 10 milhões no orçamento da emissora, este ano, não foi considerado desastroso pela administração, que pode buscar recursos em outras fontes para tapar o buraco. "O prestígio da TV Cultura depende de uma boa programação", disse Jorge da Cunha Lima. "Ninguém vai se incomodar com dívidas de sentenças trabalhistas se a emissora estiver cumprindo bem sua função. Na minha avaliação, a TV Cultura é uma emissora de conhecimento, com a missão de formar pessoas, não entreter."

PARA LEMBRAR
Emissora foi fundada em 1960
A TV Cultura foi fundada em 1960, ainda sob propriedade do grupo Diários Associados, de Assis Chateaubriand. Em 1967, o então governador de São Paulo, Roberto de Abreu Sodré, criou a Fundação Anchieta e comprou a TV Cultura. A emissora foi reinaugurada em 1969. É mantida pela Fundação, que é dirigida por uma Diretoria Executiva com o apoio de um conselho formado por representantes de universidades, institutos de pesquisa, entidades culturais e dos poderes Legislativo e Executivo.