Uma megaoperação foi deflagrada na manhã desta terça-feira (6) para desmantelar um ecossistema de atividades econômicas ilícitas concentradas no centro de São Paulo.
Essas práticas incluem a atuação de milícias com agentes de segurança pública, a venda ilegal de armas, a exploração do trabalho de pessoas em situação de vulnerabilidade, a receptação de produtos de furto e roubo e o tráfico de drogas, entre outros crimes —tudo sob controle territorial do PCC (Primeiro Comando da Capital) na região.
Envolvem ainda o uso de torres clandestinas de comunicação para captar a frequência da Polícia Militar de São Paulo e permitir a grupos criminosos antecipar ações policiais.
Batizada de Salus et Dignitas (saúde e dignidade, em latim), a operação é liderada pelo Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público, e tem a participação das polícias Militar, Federal e Rodoviária Federal, além do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério Público do Trabalho, Receita Federal e estadual, Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e Secretaria de Assistência Social do governo.
Trata-se de um novo modelo de intervenção, transversal e com a participação de vários órgãos públicos, que busca dar conta da complexidade de um território recortado por diversas práticas criminosas, mas que tem como face mais visível as cenas abertas de consumo de drogas, como a cracolândia.
Segundo os promotores do Gaeco, uma extensa investigação apontou para a cooperação entre diferentes grupos criminosos, o que cria um ambiente de ilicitudes no centro da maior cidade do país, favorecendo atividades ilegais que se valem da dependência química e da vulnerabilidade social das pessoas que circulam por ali para obtenção de benefícios econômicos.
A hipótese da operação em várias frentes é que ela suprima a estrutura de controle integrado dessas atividades criminosas locais para romper com o monopólio que o PCC exerce na área.
Estão sendo cumpridos 85 mandados de busca e apreensão, 48 medidas de confisco e bloqueio de bens e 45 medidas de suspensão de atividades econômicas e de interdição por lacração de estabelecimentos. Foram decretadas as prisões preventivas de sete pessoas apontadas como lideranças ou peças-chave da atuação desses grupos criminosos.
Esta é a primeira operação liderada pelo Gaeco na região central de São Paulo. Diferentemente das ações conduzidas pela Polícia Civil, do governo estadual, a Salut et Dignitas não tem como foco a concentração de usuários de crack conhecida como fluxo.
Ao contrário, os dependentes químicos que circulam pela cracolândia são alvo de um habeas corpus preventivo para que não sejam sujeitos a prisão nem a internação compulsória durante a operação.
"Tudo começou no ano passado, a partir de uma conversa com o então procurador-geral, Mário Sarrubbo [atual secretário nacional de Segurança Pública], sobre a necessidade de uma intervenção na região da cracolândia que fosse diferente daquelas ações policiais que focam no microtráfico e que acabam atingindo os usuários", explica o promotor Lincoln Gakiya, do Gaeco, que liderou as investigações.
"Idealizei essa operação a partir da premissa de que existe uma situação de total desrespeito com a dignidade e os direitos humanos dessas pessoas. Não estamos agindo sobre o fluxo, que é vítima e será sujeito de direitos. Queremos mudar aquele ambiente como um todo", afirma.
Um centro de acolhimento do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) deve oferecer atendimento médico, assistência social e emissão de documentos ao longo do dia para aqueles que desejarem esses serviços.
"Existe um grande risco de o PCC causar tumulto durante a operação para forçar intervenção policial. Mas não quero um tiro, nem de bala de borracha", diz Gakiya.
A investigação foi possível partir de medidas cautelares autorizadas judicialmente, dentre elas a ação controlada, a interceptação telefônica e a quebra de sigilos bancário e fiscal, além da colaboração de duas testemunhas protegidas que atuaram por anos nas redes criminosas locais.
"Quando constatamos que o problema não era só o tráfico de drogas, mas o ecossistema que permite que o tráfico esteja presente, convidamos instituições como a Receita Federal, a PM, a Polícia Rodoviária Federal, que tem grande expertise em desmanches, e o Ministério Público do Trabalho, entre outras, a participarem do trabalho", relata o promotor.
A Prefeitura de São Paulo, atualmente comandada por Ricardo Nunes (MDB), candidato à reeleição, não integra a megaoperação, que tem entre os alvos três guardas-civis metropolitanos (GCM) apontados como lideranças de milícias que extorquiam dinheiro de comerciantes em troca de proteção contra crimes que se concentram no centro da capital.
"Não dá para chamar [para a operação] quem se omitiu por décadas", afirma Gakiya. "Todas as omissões e negligências serão cobradas. Depois, o apoio é bem-vindo."
Relatórios produzidos pelo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) revelaram diversas operações financeiras atípicas em contas ligadas aos GCMs Elisson de Assis, Antonio Carlos Amorim Oliveira e Renata Oliva de Freitas Scorsafava. A movimentação financeira de um deles chegou a R$ 4 milhões em quatro anos. Parte das transferências tem como beneficiários outros GCMs.
Um ex-GCM, Rubens Alexandre Bezerra, que já havia sido alvo da Operação Corta-Giro, em 2023, dedicada ao comércio ilegal de peças de veículos e motocicletas, é apontado como comerciante de armas ilegais na região, inclusive para guardas-civis da ativa. Entre os artefatos estão fuzis, pistolas, munições e detectores de sinal de radiofrequência.
Investigações feitas com o auxílio da Anatel indicaram que esse tipo de dispositivo está sendo utilizado na favela do Moinho para obtenção da frequência de rádio utilizada pela PM, o que possibilita aos criminosos se esquivar de ações policiais.
A favela do Moinho é referida como espécie de quartel-general do PCC na região. O local funcionaria como fonte de abastecimento do tráfico de drogas da cracolândia e sede dos chamados "tribunais do crime", apesar de ser também residência de trabalhadores que nada têm a ver com ilícitos.
Monitorada por um esquema permanente de vigilância, a favela é dominada por Leonardo Monteiro Moja, o Leo do Moinho, uma importante liderança do PCC. Ele foi preso numa cobertura em Praia Grande, no litoral, em 2021 e está, desde 2023, em liberdade condicional. Moja é apontado como o real proprietário de uma série de hotéis e comércios na região registrados no nome de laranjas.
Esses e outros hotéis investigados não têm alvará de funcionamento e servem como local de consumo de drogas e de prostituição, inclusive de adolescentes, além de entreposto para cargas de drogas e para produtos oriundos de furto e roubo.
De acordo com interceptações telefônicas, fora da comunidade do Moinho é Janaína da Conceição Cerqueira Xavier quem atua como "disciplina" do PCC no fluxo de dependentes químicos, informando ao quartel-general sobre o andamento do tráfico e eventuais transgressões cometidas por pequenos traficantes.
Ferros-velhos exploram trabalho e receptam material furtado, diz apuração
Em outra frente, a megaoperação também mira em uma série de ferros-velhos e galpões de reciclagem irregulares. Além das condições insalubres e da presença de trabalho infantil, esses locais receberiam produtos de furtos e roubos, além de explorarem pessoas em situação de vulnerabilidade. Algumas das pessoas que vendem materiais para esses locais são pagas com cachaça.
A investigação indica que alguns desses ferros-velhos irregulares vendem materiais para empresas regulares do ramo da reciclagem.
"Tem garotinho trabalhando em ferro-velho nos mesmos materiais que, lá na frente, vão ganhar um selo verde. Muitas empresas não controlam a cadeia daquilo que compram. E, na reciclagem, tem trabalho degradante. Queremos mexer com isso também", diz o promotor do Gaeco.
Relatórios financeiros produzidos a partir de dados dos proprietários de diversos ferros-velhos e estabelecimentos ligados à reciclagem detectaram, em um dos casos, movimentações de mais de R$ 5 milhões em seis meses, com saques em espécie que somam mais de R$ 1 milhão, o que sugere um esquema de lavagem de dinheiro.
"Esse comércio irregular emprega trabalho infantil e análogo à escravidão e faz receptação de material furtado. Será que ninguém está vendo isso? Cabe à prefeitura explicar. O que temos de fazer é dar um basta. E que venha uma empresa legalizada deste setor", avalia.
Por último, a operação deve atuar junto a lojas suspeitas de receber celulares roubados cujas peças desmontadas são vendidas em lojas físicas e virtuais.
"A região central de São Paulo tem toda a sorte de negócios ilícitos que são difíceis de enxergar sem um diagnóstico mais profundo. Foi um trabalho de campo e de inteligência", resume Gakiya. Sobre essa diversidade de atividades ilegais, o promotor afirma ter ouvido de uma das testemunhas protegidas que "não existe uma coisa sem a outra".
Para o promotor, após a megaoperação, cabe ao Estado, nas figuras do governo e do município, reocupar o território e torná-lo um bem público. "O tráfico não vai acabar nem os dependentes químicos vão desaparecer, e crimes vão continuar acontecendo, mas esse estado de coisas ilegal e a violação sistêmica de direitos de todos, inclusive dos dependentes químicos, deve acabar."
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