domingo, 11 de agosto de 2024

A dupla face do Supremo, Oscar Vilhena Vieira, FSP

 Duas são as funções fundamentais de tribunais e cortes constitucionais em regimes democráticos: habilitar a vontade da maioria e ao mesmo tempo defender os direitos das minorias.

A função habilitadora da vontade da maioria está associada à proteção das regras do jogo democrático. Para que a vontade da maioria possa florescer, os canais institucionais de representação e participação não podem estar obstruídos; as regras eleitorais devem assegurar iguais oportunidades aos cidadãos; as eleições precisam ser conduzidas com honestidade; o direito à informação, à liberdade de expressão e oposição devem ser assegurados; por fim, os eleitos devem se conformar ao império da lei.

Sessão plenária do STF - Pedro Ladeira/Folhapress

A função contramajoritária está, por sua vez, associada à defesa dos direitos essenciais de minorias —especialmente aquelas vulneráveis e historicamente discriminadas— em face de ataques de maiorias circunstanciais ou de governos arbitrários.

Cortes constitucionais se encontram bem posicionadas para exercer essas funções que parecem contraditórias, mas são complementares na defesa da democracia. Se o fundamento moral da democracia é a igualdade de todas as pessoas, que merecem ser tratadas com igual respeito e consideração, não seria democrático se a maioria pudesse usar o seu poder para privar minorias vulneráveis de seus direitos ou mesmo para impedir futuras maiorias de chegar ao poder.

Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) fez movimentos contraditórios no manejo dessas duas funções. No campo da habilitação democrática, o ministro Flávio Dino reiterou o entendimento da ministra Rosa Weber, determinando ao Congresso Nacional que abra a caixa secreta das emendas orçamentárias.

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A maneira turva pela qual essas emendas têm sido empregadas tanto fere o direito à informação, prejudicando o exercício do voto consciente, como viola a igualdade de oportunidade na competição política ao desequilibrar a competição entre os que se encontram entrincheirados no poder e os que estão de fora.

A falta de transparência na aplicação desses recursos também impede que se verifique se estão sendo empregados de acordo com as regras da lei.

Na contramão dessa decisão habilitadora da democracia, que deve ser aplaudida, o Supremo deu início a um controverso processo de conciliação que fragiliza direitos de minorias. No caso, direitos fundamentais dos povos indígenas. Controverso porque abre processo de conciliação em torno de "direitos inalienáveis", portanto direitos que por definição não podem ser objeto de alienação ou troca. Controverso porque promove insegurança jurídica ao ignorar recente decisão do Supremo que declarou inconstitucional o marco temporal. Controverso porque seus procedimentos não atendem as premissas básicas para realização de acordos com minorias culturais. Controverso, entre outros motivos, porque promete ser concluído ainda que os indígenas se afastem da mesa de negociação. Ora, como pode haver "conciliação" sem a anuência dos legítimos interessados?

Tal como colocada em prática, essa conciliação parece ser apenas mais uma "ideia fora de lugar", como tantas outras empregadas ao longo da história para encobrir simples processos de supressão de direitos. Brinquedo novo. Resposta velha.

Sem que o Supremo suspenda a eficácia da lei que reintroduziu a tese do marco temporal e reformule os procedimentos dessa controversa iniciativa, dificilmente angariará a confiança indispensável a qualquer processo de conciliação.

As sucessivas crises políticas em que imergimos, agravadas por intensos ataques à Constituição e às suas instituições —em especial o Supremo—, expuseram a jurisdição constitucional brasileira ao oportunismo de diversos setores. Não é hora de o Supremo recuar no exercício de suas funções, sob o risco de ser devorado por quem imagina alimentar.


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