"Deus conta as lágrimas das mulheres", registra o Talmude, belo livro da tradição judaica. A espessura enigmática da frase suscita várias interpretações, mas o sentido conflui para o pensamento da sensibilidade feminina como acréscimo de sabedoria e advertência para que se redobre o respeito à geração da espécie humana. Num poema sobre a tragédia nuclear ("A Rosa de Hiroshima"), Vinícius de Moraes exorta a que "pensem nas mulheres, rotas alteradas", assim como "pensem nas crianças, mudas telepáticas".
Os textos, de procedências tão diversas, vêm aos olhos junto com as notícias tenebrosas de Gaza, onde uma força militar poderosa faz terra arrasada de residências, edifícios e hospitais, até mesmo de filas de ajuda humanitária. As maiores vítimas, milhares, são mulheres e seus filhos, corpos despedaçados ou estripados como nas horripilantes incitações de divina vingança a Davi, o senhor da espada, no Velho Testamento. As crianças que sobrevivem aos escombros tornam-se mudas, sem lágrimas, mas telepáticas no sofrimento.
Isso é holocausto? Não. O arquiconservador presidente Reagan se confundiu num encontro com Menaghen Begin, assim como o presidente Lula. Um conselheiro oportuno poderia tê-lo avisado de que o "schibboleth" (palavra-chave hebraica para conduta no Antigo Testamento) do governante é a cautela da língua. Em atual encenação teatral na Noruega, "Hamlet" é infectado pelos corpos apodrecidos dos antecessores. O Holocausto, capítulo único, foi uma infecção do corpo nacional da Alemanha pela degeneração nazifascista. As vítimas foram judeus, ciganos, gays e deficientes.
Mas, assim como Lenin podia sugerir uma separação interna da política (há boa e má), é possível pontuar quando a pessoa do político se contrapõe ao cargo. Em Adis Adeba, Lula reprovou tanto a desproporção dos ataques israelenses quanto o terrorismo do Hamas, que não poupou mulheres e crianças. Depois, coração na boca, incorreu na comparação imprópria. Não ultrapassou limite, e sim o limiar ambíguo da linguagem de quem improvisa em história.
Mas Lula agiu no interior da política que parte de onde se está, da vida e do pensamento das pessoas. Política como prática de pensar desde o senso comum e não do cercadinho da mídia corporativa ou do vácuo representativo do parlamento. Não a cega "Realpolitik", pois a degeneração fascista continua infectando e fazendo escola. Por coerência moral, entretanto, deverá indignar-se com os assassinatos de Putin, com a migração forçada na Venezuela, com a desfaçatez ditatorial de Ortega e, claro, com a carnificina de Netanyahu. Holocausto não, certo, infanticídio massivo: esqueceram o Talmude. Já o cristão Salmo 104, que compara fiéis a "chamas de fogo", isto é, a intensidades emocionais, lembra a fagulha do deslize retórico de Lula
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