A paisagem da avenida Rebouças, na zona oeste de São Paulo, está em plena transformação com casas demolidas e torres com escritórios e apartamentos de alto padrão sendo erguidas. Mas essa tendência preocupa urbanistas. Na concepção do Plano Diretor, a intenção era tornar esse espaço mais acessível à população de média e baixa renda.
Conectando as avenidas Paulista e Faria Lima, a via atravessa uma das regiões mais ricas da cidade. De um lado estão quarteirões ocupados pelas casas de alto padrão do Jardim Paulistano. Do outro está Pinheiros, que concentra escritórios de grandes empresas e um dos circuitos de bares e restaurantes mais procurados da capital.
Hoje, um conjunto de quarteirões delimitado pela Rebouças e pelas ruas Teodoro Sampaio, Francisco Leitão e Cunha Gago reúne a maior quantidade de obras. Só nas áreas mais próximas à avenida a reportagem contou na última segunda-feira (2) ao menos 24 novos empreendimentos, entre aqueles praticamente completos, em construção ou terrenos com placas indicando a chegada de futuros edifícios.
Alguns escritórios em oferta chegam a mil m², e apartamentos, a mais de 160 m². Para especialistas, porém, há um risco de que boa parte desses imóveis fique vazia nos próximos anos —em uma cidade cujo déficit habitacional é estimado em 369 mil domicílios.
Nessa área, a verticalização foi incentivada pela prefeitura por causa da proximidade das estações de metrô –Oscar Freire e Fradique Coutinho da linha 4-amarela– e da existência de um corredor de ônibus na avenida. A intenção ao criar um zoneamento diferenciado era aproximar emprego e moradia e desestimular o uso do carro.
O conjunto de quarteirões em obras faz parte de um Eixo de Estruturação da Transformação Urbana, nome dado às áreas em que a gestão municipal pretende estimular o adensamento. O Plano Diretor, que é o conjunto de regras que organizam o crescimento da cidade, estipulou que essas áreas deveriam ter uma mistura de comércio, serviços e moradias destinadas a pessoas que usam prioritariamente o transporte público no dia a dia.
Quando as construtoras incluem unidades de HIS (habitação de interesse social) ou HMP (habitação de mercado popular) em seus empreendimentos, recebem o direito de construir ainda mais unidades. A HIS, mais comum, é destinada a famílias que ganham até seis salários mínimos (R$ 7.812) e o valor do imóvel para financiamento não pode passar de R$ 264 mil.
"O plano era trazer uma população que mora mais distante para essas áreas mais estruturadas. O que está ocorrendo é um efeito diverso do que se pretendia", diz a diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie, Angélica Benatti Alvim. "A cidade está se verticalizando e se transformando, mas [com o crescimento voltado] para empreendimentos de alta e média renda. Já tem bastante oferta. Será que temos tanta demanda? Quem está comprando são os investidores."
A hipótese para a provável ociosidade, segundo urbanistas, é que a maior parte desses imóveis em construção na Rebouças não foi adquirida com a intenção de moradia, e sim por investidores.
Junto com empreendimentos de luxo, há uma minoria de unidades de HIS, segundo o vice-presidente de assuntos legislativos e urbanismo do Secovi-SP (Sindicato da Habitação), Ricardo Yazbek.
A tendência do mercado, segundo especialistas, é que elas sejam repassadas a um público com maior poder aquisitivo, sirvam como aluguel de curta temporada por meio de aplicativos ou fiquem vazias.
No ano passado, a Folha mostrou que a Prefeitura de São Paulo não fiscaliza qual é o destino de apartamentos quando concede benefícios para construtoras que oferecem imóveis populares em seus empreendimentos.
"O que foi produzido, e para quem, nesse lugar? Essa pergunta é fundamental. Atraiu moradia popular para os usuários de transporte coletivo? A resposta é não", afirma a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, professora da FAU-USP. "Do ponto de vista da cidade e dos objetivos urbanísticos, é inútil. E pior, é cruel, pois ainda existem pessoas precisando de moradia na cidade."
Rolnik diz que, apesar de o plano original para essas áreas diminuir o incentivo para construção de garagens em prédios residenciais e de uso misto, a prefeitura teria permitido "gambiarras": compensações que, na prática, garantiram vagas em garagens para as unidades mais caras. Seria outra distorção da lei, pois atrai carros para uma área onde esse modal deveria ser desestimulado.
Ricardo Yazbek, do Secovi-SP, diz acreditar que apartamentos e escritórios no local não ficarão ociosos. Para ele, o que garantirá a ocupação contínua desses imóveis é a atividade econômica movida a shows, eventos, turismo de negócios, congressos e a atração do setor de saúde a pacientes de outras regiões do Brasil.
Para ele, é natural haver uma minoria de HIS e HMP por ali, uma vez que se trata de uma das regiões com metro quadrado mais caro da cidade.
"Nessa região da Faria Lima, Jardins, Pinheiros, há bairros excelentes em que normalmente o custo do solo é caro", ele diz. Os apartamentos menores, de até 25 m², "mesmo que não custem tão barato por metro quadrado [R$ 15 mil a R$ 20 mil], ficam mais acessíveis à classe média ou média baixa".
As torres sendo construídas no lado par da Rebouças, em Pinheiros, contrastam com a calçada oposta. Ali, casarões do Jardim Paulistano estão abandonados e cercados por tapumes, com placas anunciando aluguel e venda dos imóveis.
É proibido construir prédios no lado ímpar da avenida devido ao zoneamento, que separa esse setor dos Jardins apenas de casas —inclusive com tombamento de parte do bairro devido ao valor histórico do bairro, planejado na década de 1910 pela Companhia City.
Com a multiplicação das torres a poucos metros de distância, tem aumentado um antigo interesse do setor imobiliário para que se libere a construção de prédios nos dois lados da Rebouças.
Segundo a Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras), o investimento na Rebouças está obedecendo a orientação do Plano Diretor e também a demanda de consumidores. "As regiões que estão se desenvolvendo são aquelas que possuem demanda da população e leis que permitem seu crescimento. A Rebouças é uma dessas", disse a Abrainc.
REVISÃO
Questionada, a Prefeitura de São Paulo disse, por meio da Smul (Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento), que tem feito um "amplo e transparente diálogo com a população" sobre o Plano Diretor nas etapas da revisão obrigatória da lei. O prazo de entrega da revisão está marcado para o fim de março, após ser adiado três vezes.
A gestão municipal afirmou que um diagnóstico sobre o plano identificou que o licenciamento de unidades de HIS cresceu na cidade como um todo, o que inclui os Eixos de Estruturação da Transformação Urbana. Esse diagnóstico também apontou "uma distribuição heterogênea entre as macroáreas da cidade", disse a secretaria.
A secretaria também destacou o número de unidades de moradia popular entregues. "Em 2021, foram 154.573 unidades aprovadas, o maior número desde 2013 e mais do que todas as unidades aprovadas entre 2013 e 2016. Em 2022, foram 103.753 até outubro."
Sobre a destinação de moradia popular para outros públicos, a gestão Ricardo Nunes (MDB) disse, em outubro, que o proprietário ou possuidor do empreendimento apresenta declaração se responsabilizando expressamente pela correta destinação das unidades de habitação de interesse social e de mercado popular. Essa regra está prevista no Decreto nº 59.855, disse a gestão municipal à época.
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