sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Não se combate a fuga de cérebros com migalhas, FSP

 

Alicia J. Kowaltowski

Professora do Instituto de Química da USP

Paulo A. Nussenzveig

Professor do Instituto de Física da USP

Stevens Rehen

Professor do Instituto de Biologia da UFRJ

Em julho deste ano, o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), principal órgão de financiamento à pesquisa federal, sofreu uma pane computacional por 20 dias. Cientistas de todo o país não puderam acessar dados de pesquisa nem submeter projetos ou avaliações através das plataformas que o órgão mantém.

Esse “apagão” temporário de dados científicos foi simbólico da situação nacional. Nos últimos 20 anos, o orçamento do CNPq nunca foi maior que modestos R$ 3,3 bilhões por ano, pico atingido em 2016. Desde então, vem caindo vertiginosamente, chegando a R$ 1,2 bilhão em 2021, valor menor que em 2001 e equivalente a US$ 228 milhões. Esse desfinanciamento público da ciência básica, aquela que sustenta todas as descobertas verdadeiramente inovadoras de um país, não é sem consequências. Financiamento atrai cientistas, e criatividade e trabalho de jovens pesquisadores sempre foi o alicerce que alavanca o desenvolvimento.

Como base de comparação, o orçamento do National Institutes of Health americano, responsável apenas por pesquisas na área biomédica, é superior a US$ 50 bilhões em 2021, um aumento substancial em relação ao já generoso orçamento de US$ 31,3 bilhões em 2016. Investimento nessa área é uma ação declarada do governo americano para promover desenvolvimento e enfrentar os desafios presentes e futuros da saúde. Não é surpresa que os EUA atraem cientistas bem formados de todo o mundo. Também não é surpresa que a procura de cientistas brasileiros por posições no exterior cresceu enormemente nos últimos anos: estamos sofrendo uma verdadeira debandada de cérebros, indicada pela queda acentuada da atratividade do país medida pelo Global Talent Competitiveness Index.

A situação não precisaria estar tão crítica. Contrariando as vontades do presidente da República e do ministro da Economia, o Congresso Nacional aprovou a lei complementar 177, que proíbe contingenciamento —este chegou a atingir 90% do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Isso significa que a arrecadação do fundo, cerca de R$ 7 bilhões, terá que ser integralmente repassada.

Embora a liberação ainda não seja completa, foi com apoio predominante do FNDCT que se anunciou, em 31 de agosto, o edital universal para projetos científicos do CNPq, com um aumento de 20% relativo a financiamentos anteriores.

Após um apagão de dados e três anos sem possibilidades de investimentos em novas ideias, a comunidade científica nacional deveria estar comemorando a retomada de financiamento, mas o clima entre nós, cientistas, é o contrário.

O problema é que o edital mudou completamente a maneira de se investir em pesquisa no país, tornando o processo mais complicado para a organização entre os cientistas, além de diminuir o investimento máximo possível para cada pesquisador. O teto é de pífios R$ 9.167 por ano, insuficiente para a realização de qualquer pesquisa científica na fronteira do conhecimento.

De fato, o edital dá claras indicações de que não será julgada a qualidade do projeto apresentado, pois as submissões consistem apenas em preenchimento de um formulário online, com limitação de caracteres menor que uma coluna de jornal.

O médico paranaense Guilherme Agnoletto se mudou com a família para os EUA em busca de melhores oportunidades. Na foto, Guilherme com a esposa Marjorie Piovezan - Marlene Bergamo - 2.jun.2021/Folhapress - Marlene Bargamo

Em vista da decisão do CNPq de substituir investimento em pesquisa de qualidade por espalhamento de migalhas mediante uma submissão burocrática, e do descompasso na Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), sem modelo ou calendário de avaliação, vemos pesquisadores que sempre buscaram as fronteiras do conhecimento passarem a buscar as fronteiras geográficas do país, rumo a oportunidades no exterior. Os mais talentosos as conquistarão.

Para reter nosso melhor recurso nacional, que são os cérebros de cientistas brasileiros com alto grau de especialização, não basta oferecer esmolas. É necessário investimento concreto nas melhores ideias originais, identificadas por cuidadosas avaliações de mérito.

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