Para a brasiliense Lúcia Helena Galvão, ao longo dos anos viemos complicando a ideia de propósito, que, a princípio, seria bem simples de explicar. Segundo ela, nossa missão está delimitada pela natureza. “É nos construir como seres humanos, com plenitude de valores, virtudes e sabedoria, agregando algo ao mundo. Esse é o propósito final. E tem muitos jeitos de chegar lá”, explica.
Graduada em relações internacionais pela Universidade de Brasília (UnB), a professora dá aulas há 32 anos na instituição sem fins lucrativos Nova Acrópole, presente em 50 países e com diversas sedes no Brasil. Na pandemia, tornou-se a filósofa mais pop do Youtube. Seus vídeos, que somam milhões de visualizações, passeiam pela filosofia e a literatura, indo de Platão a Shakespeare e Carl Gustav Jung, de análises filosóficas de contos de fadas a histórias da mitologia indiana. Por vezes, ela faz lives com gente como o físico brasileiro Marcelo Gleiser, além de ministrar palestras e cursos sobre organização de tempo e técnicas de estudo.
Segundo ela, o estoicismo grego é uma das tradições filosóficas que explora mais explicitamente a ideia de propósito. “Eles falam sobre ter um sentido que justifique e honre a vida humana. O propósito surge então como um referencial: precisamos estabelecê-lo para que ‘as nossas sementes de grandeza germinem’, como disse Epíteto”, diz.
Em conversa com Gama, ela explica a diferença entre propósito e projetos pessoais e conta como viver com propósito, além de trazer foco, resiliência e bem-estar, ajuda a construir uma sociedade melhor.
Propósito nos dá uma coisa sólida na qual podemos ficar de pé. Sem nenhum norte, a vida é caos, e surgem insegurança, ansiedade, desespero
G |Como as diferentes tradições filosóficas entendem essa ideia de propósito?
Lúcia Helena Galvão |A gente vê isso principalmente dentro do estoicismo greco-romano, na tríade Sêneca, Epíteto e Marco Aurélio. Eles falam de ter um sentido que justifique a existência. E também tem isso demais em tradições do Oriente, como o Vedanta [parte dos Vedas, textos de cerca de 1500 a.C. que servem de fundamento para religião e filosofia na Índia], que deixa claro que o que o humano constrói é o seu nome. Ou seja, é muito onipresente a ideia de que a primeira coisa que você deve pensar é que tipo de ser humano você quer ser, e depois caminhar em direção a isso. Aquilo que Marco Aurélio dizia: “Tome a morte como conselheira — se você fosse morrer amanhã, que tipo de ser humano gostaria de ser hoje?”.
G |Para que serve ter propósito, sob esse ponto de vista?
LHG |Imagine a angústia de estar dentro de um carro que você não sabe para onde está indo. E não está fácil encher o tanque de um carro hoje, né? A gente vai só rodar por aí sem rumo? A condição humana já é uma meta estabelecida pela natureza que pode orientar nossos passos. Porque consciência animal é aquela que se guia só por medo e desejo, dor e prazer. Consciência humana é fazer aquilo que nos cabe como ser humano. Uma vida aleatória pode ser tremendamente boa ou tremendamente destrutiva, assim como uma flecha atirada em qualquer direção. Propósito nos dá uma coisa sólida na qual podemos ficar de pé. Sem nenhum norte, a vida é caos, e surgem insegurança, ansiedade, infelicidade, desespero. Não há valores verdadeiros sem propósito, não há discernimento sem propósito. Há todo momento a vida está te fazendo ofertas, como é que você escolhe se não quer construir nada? E construir não pelo ego ou pelo lucro, mas pelo que é pela humanidade. Quais são os valores de uma sociedade que não sabe onde quer chegar?
G |Vivemos em uma sociedade com falta de propósito?
LHG |Hoje nos comportamos como um acidente ecológico: nessa cultura materialista, a falta de valores e virtudes como propósito causa destruição, de nós mesmos e do planeta. Vamos deixando terra arrasada para trás e achando que a vida foi feita para o benefício dos nossos caprichos, e não da humanidade, do coletivo. Vivemos um egoísmo visceral. Para a tradição tibetana, a heresia da separatividade, que é um outro nome para egoísmo, é o maior mal do mundo, todos os outros males nascem dele. Uma das coisas que mais atrapalha esse propósito humanista é, por exemplo, que a gente não sabe ganhar junto, só sabe ganhar sobre o outro. O êxito, o sucesso e a prosperidade erguem-se sobre o fracasso do outro. E não tem como alcançar o propósito humano sem desconstruir coisas desse tipo. Hoje a sociedade está muito fragmentada, com suas suas partes repelindo uma as outras em vez de se unir em torno de um propósito comum. Por isso temos situações extremas de pobreza, miséria, entre outros problemas sociais.
A falta de valores e virtudes como propósito causa destruição, de nós mesmos e do planeta
G |É um equívoco pensar no propósito como algo individual e até específico? O propósito é sempre coletivo?
Lúcia Helena Galvão |O propósito final é a plenitude da condição humana, é pensar sistemicamente e canalizar o foco e a vontade para somar alguma coisa para o mundo. O jeito que você faz isso vai mudando, é muito provável que você não faça a mesma coisa a vida toda. Um propósito engloba os muitos setores da vida, mas o princípio maior é deixar um mundo um pouco melhor do que aquele que recebemos. O caminho vai se delineando à medida que nos comprometemos com esse objetivo. E cada ser só se realiza sendo aquilo que é, cada um tem uma palavra a acrescentar à melodia da vida. A tradição budista diz uma coisa muito bonita: mais do que mil palavras sem sentido, tem valor uma palavra que traz consolo a quem a ouve. Quem de nós já deu seu recado ao mundo? Isso é realização do nosso propósito.
G |Como agir no dia a dia com mais propósito?
LHG |Isso consiste em primeiríssimo lugar em entender o que a natureza espera da vida e depois começar a rever as posições que te levam na contramão disso. Porque uma vez que você tem como propósito ser um ser humano legítimo, vai começar a perceber um monte de pedras culturais no seu sapato. Então pense no próximo degrau: o que eu preciso para crescer? Propósito te ensina a morrer e a renascer um pouco todos os dias. Sem essa consciência sobre si, você vai ficar correndo atrás do pacote da vida que a cultura propõe e uniformizando seu pensamento e seu sentimento. Seria muito bom para isso ter Platão no Twitter: “Bom dia, você já saiu da caverna hoje?” Além disso, a tradição tibetana diz que a vida é inteiramente pedagógica. Quando a gente ata uma bola de ferro ao nosso tornozelo que não nos permite aprender mais nada, nós escolhemos morrer. Se não há aprendizado, não há vida. Às vezes fazendo as coisas simples do dia a dia você tem os aprendizados mais brilhantes.
G |Você fala da diferença entre propósito e projeto pessoal. Pode explicar?
LHG |Hoje confunde-se muito propósito, ou sentido de vida, com projetos particulares. Ou seja, querer comprar um apartamento, casar, abrir uma empresa, escrever um livro. Um projeto é algo temporário, e você não tem como saber se ele é bom ou mal se ele não está inserido harmoniosamente dentro de um propósito. Propósito está sempre no campo do “ser”, e não do “ter”, e justifica a vida como um todo. Viver guiado por projetos pessoais pode ser muito angustiante, porque eles só trazem satisfação temporária quando são alcançados. Lembrando que a ideia de propósito não exclui uma vida material digna de nenhuma forma. As coisas materiais podem ser muito boas quando conectadas a um fim maior do que elas.
Seria muito bom ter Platão no Twitter: ‘Bom dia, você já saiu da caverna hoje?’
G |Ter propósito ajuda a se reconectar com esperança e ter resiliência para lidar com situações adversas?
Lúcia Helena Galvão |A nossa esperança depositada em um propósito é o que faz com que a caminhada seja válida e que nos traga preenchimento e felicidade. Sem nenhum tipo de direção nós somos jogados para lá e para cá pelas marés – e estamos passando por uma muito forte agora. Um propósito nos ajuda a dizer: “Ok, o momento está difícil, mas a vida tem valor, vale a pena insistir, vale a pena ser resiliente”. E acreditar na humanidade e na vida é essencial para isso, porque os desafios são grandes. E nós vivemos uma época de disseminação da perda da fé na humanidade, o que é terrível, é suicida. Nesse momento, é interessante fazer uma lista de pessoas que te orgulham de ser ser humano, desse e de outros tempos. Isso traz esperança. E esperança não é passividade, é ação, é colocar o coração na meta, é ter uma referência de direção para que você se coloque em movimento, independente do resultado. O fruto é a própria ação.
G |Mas tem que ter meta? O que importa é a jornada, e não o destino, não?
LHG |As duas coisas são perfeitamente conciliáveis. Você só valoriza o dia de hoje se lembra onde quer chegar com ele, qual o sentido de vivê-lo. Então o propósito é um referencial de direção para viver o presente. E o propósito está ali, é o ideal humano, e de vez em quando eu olho para ele para não me perder. Gosto muito do que diz o escritor grego do século 19, Konstantínos Kaváfis, no poema “Ítaca”. Ele fala de viajar para Ítaca, mas em nenhum momento tem ansiedade para chegar. Ele curte cada parada da viagem, passa nos mercados, conhece os sábios. Ítaca não promete nada, só uma boa viagem, no fim ela é só uma ilha pedregosa. Mas é uma referência de direção para ele não se perder.
G |Qual a relação entre propósito e foco?
LHG |Ter foco deve ser um dos maiores problemas do nosso tempo, somos desdobrados de uma madeira viciosa. Dificilmente estamos com a mente no mesmo lugar que o nosso corpo. As coisas passam diante de nós e não vemos, porque estamos em outro lugar. Propósito nos ajuda também a curar a dispersão, porque temos algo que nos concentra. O propósito chama para aterrissar e tomar as rédeas da vida. Ajuda demais a recuperar o foco e a colocar a consciência no momento que estamos vivendo. Foco e propósito são uma parceria maravilhosa.
G |Propósito traz felicidade?
LHG |Nossa natureza humana anseia por vir ao mundo, e realizá-la nos traz grande felicidade. A felicidade vem de darmos passos reais em relação a ela, e ter propósito te permite isso. O cultivo de valores humanos também traz qualidade de vida, porque vai te deixando em maior harmonia com o mundo ao redor. Traz a paz de saber que você está deixando rastros de humanidade por onde passa.
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