sábado, 16 de outubro de 2021

Demétrio Magnoli - Procuradores pretendem preservar estatuto de intocáveis, FSP

 “PEC da vingança” –é assim que a corporação dos procuradores da República apelidou a proposta de Emenda à Constituição de reforma do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

Há alguma verdade na alcunha pois, desde a desmoralização da Lava Jato, a elite política articula-se para limitar investigações sobre corrupção. Sobretudo, porém, o que os procuradores pretendem é preservar seu estatuto de intocáveis –ou seja, de sentinelas da lei autorizados a agir fora da lei.

A Constituição de 1988 fabricou uma anomalia ao desenhar o atual Ministério Público (MP). Inexiste, no mundo, instituição similar com prerrogativas tão amplas e tão pouca responsabilização como o nosso MP.

Numa ponta, os constituintes atribuíram-lhe poderes excepcionais, encarregando-o da tutela dos “interesses difusos” dos cidadãos. A função permite ao MP lançar acusações judiciais amparadas exclusivamente nas crenças ideológicas dos procuradores.

Na outra, isentaram-no de controles externos, traçando um círculo aristocrático de impunidade em torno de seus integrantes. O CNMP, finalmente criado em 2004, funciona apenas como simulacro de controle externo pois o próprio MP indica metade dos conselheiros.

O ser teratológico evoluiu como estufa ideal para a militância de procuradores engajados na missão da reforma da sociedade. Dentro do MP, nasceram partidos políticos com programas e associados, como o “MP Democrático”, sob influência lulopetista, e o “MP Pró-Sociedade”, de inspiração moro-bolsonarista.

A lei, ora a lei: os procuradores-militantes utilizam o poder de investigar e acusar para fazer política sem risco, no conforto da estabilidade, de gordos salários e aposentadorias integrais.

A degeneração do MP ficou evidenciada na hora da desmoralização da Lava Jato. Como esquecer o acordo de imunidade judicial absoluta firmado pela PGR com Joesley Batista, o corruptor confesso da JBS? Ou a tentativa da força-tarefa de Curitiba de gerir recursos devolvidos à Petrobras por meio de um fundo privado? Ou, ainda, o conluio ilegal entre a mesma força-tarefa e o juiz Sergio Moro na condução dos processos contra Lula?

A corporação que alerta contra a “vingança” precisa olhar-se no espelho do desfecho do “caso Lula”. A decisão do STF que reconheceu a parcialidade de Moro ilumina a necessidade de reforma do MP. O mais notório processo de corrupção na história brasileira permanecerá inconcluso para sempre.

Os inimigos de Lula insistirão na narrativa de que existiam provas condenatórias irrefutáveis. Os lulistas persistirão na versão da inocência de um ex-presidente perseguido. A eternização de narrativas polares capazes de reclamar legitimidade é uma mancha indelével de descrédito aplicada ao sistema nacional de justiça –e, ainda, uma lápide apropriada no túmulo de um poder irresponsável.

A PEC em tramitação não tem nem mesmo a pretensão de reformar o MP. Circunscreve-se a uma reforma do CNMP, fazendo muito e pouco ao mesmo tempo.

Muito: a autorização que concede ao órgão de rever atos de integrantes do MP, uma nítida “vingança” destinada a interromper investigações de corrupção. Pouco: a ampliação de 14 para 15 no número de assentos, com a reserva de quatro cadeiras a indicados pelo Congresso, o que mantém a maioria de integrantes do MP, inviabilizando um efetivo controle externo.

Moro confundiu a lei com suas ambições políticas, mas escapou de punição porque abandonou o Judiciário para servir a Bolsonaro. Os procuradores missionários da força-tarefa, que pintaram e bordaram, acabaram expostos pela Vaza Jato mas nunca foram devidamente sancionados. A redoma constitucional os protege, tornando-os imunes às leis com as quais acusam os demais cidadãos.

O Congresso, porém, não quer acabar com a classe dos intocáveis. Prefere estender o privilégio a seus próprios integrantes.


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