26/10/2021, 10h12
Medicamento que mudou a história é protagonista incidental de novo romance
Você se lembra qual descoberta mais transformou a visão que você tinha de si mesmo? Não sei se foi minha maior, mas certamente minha primeira experiência desse tipo foi descobrir, ainda pequeno, que no dia das crianças o feriado não era por nossa causa – das crianças – mas por ser dia de Nossa Senhora da Aparecida. Foi um golpe na minha autoestima perceber que a gente não era assim tão importante.
Dizem que os dois maiores golpes desse tipo que já sofremos coletivamente foram desferidos por Copérnico e Darwin, ao respectivamente tirar a Terra (e nós com ela) do centro do universo e mostrar nosso lugar na criação. Aprender é perigoso mesmo – sempre traz a ameaça de termos que rever conceitos sobre nós mesmos.
Embora fale-se pouco dela, uma dessas transformações ocorreu na metade do século vinte e foi tão influente que, mesmo quem não sabe de sua existência sente seus reflexos até hoje. Ela está no centro do romance Uma tristeza infinita(Companhia das Letras, 2021) do escritor brasileiro Antônio Xerxenesky. A história se passa na Suíça, no período logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, e acompanha o psiquiatra francês Nicolas Legrand lutando para se adaptar: a um novo país, um novo emprego, novo ritmo de vida (tendo mudado de uma cidade grande para um vilarejo) e ainda às mudanças ocorridas em seu casamento, decorrente de tudo isso. Mas é só depois da metade do livro, talvez lá para seu terço ou quarto final, que a mudança mais radical irá desafiá-lo: o surgimento de uma nova droga para tratamento dos transtornos mentais. As notícias diziam que os hospitais estavam sendo esvaziados, doentes crônicos melhoravam e podiam voltar para suas famílias, uma revolução estava chegando. (Trata-se de um episódio real na história da psiquiatria, e Xerxenesky conheceu-o bem ao traduzir o livro de divulgação científica Dez drogas, que tem um capítulo dedicado aos antipsicóticos).
A partir daí, como se não bastassem todas as mudanças a desafiá-lo, Legrand tem que se confrontar com uma transformação radical na visão do ser humano que põe em xeque seu próprio trabalho. Psicanalista numa época em que a psicanálise era ainda um dos poucos recursos com status de ciência, ele resiste a acreditar que uma pílula possa fazer em dias o que semanas, meses de análise muitas vezes não conseguia. O que fazer com toda aquela teoria sobre os delírios, com horas de conversa tentando encontrar-lhes um significado, se eles poderiam sumir tão de repente?
Esse golpe de fato foi transformador não apenas para o protagonista, mas para a História. E não só da psiquiatria, pois alteraria para sempre a visão que o ser humano tem de si mesmo. Se Freud já falara que não éramos senhores de nós mesmos ao propor que sequer tínhamos noção da maior parte do que se passava em nossa cabeça, descobria-se agora que muito do que atribuíamos a conflitos, medos ou traumas, era também uma disfunção química, passível de correção com medicamento. A divisão entre mente e corpo, que pelo menos desde Descartes era o pensamento central, começava a morrer ali.
Não é spoiler algum dizer como o livro resolve a questão, já que a solução apresentada no romance é a que até hoje parece ser a mais aceita nos meios científicos: ninguém está com toda a razão de seu lado. A despeito dos entusiastas de parte a parte, a grande maioria dos cientistas e pensadores sobre o tema entende que o ser humano não pode ser reduzido nem a neurotransmissores, nem a suas experiências psicológicas. Não há remédio que faça um povo se recuperar de uma infinita tristeza ao dar-se conta de ter apoiado Hitler, mas não há terapia que por si consiga devolver um psicótico à razão. E nem terapia nem remédio ajudarão muito se o paciente não encontrar suporte social e uma inserção adequada.
Sem dizer isso de maneira explícita o romance parece concluir que a fórmula de encarar o ser humano como bio-psico-social, embora tenha se tornado quase um clichê, é ainda a melhor maneira de lidar com nosso sofrimento.
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Leitura mental
Para quem quer se aprofundar no braço “bio” do que nos faz quem somos, poucos livros podem superar o recém lançado em português Comporte-se (Companhia das letras, 2021), de Robert Sapolsky. Neurobiólogo prolífico e excelente comunicador, Sapolsky investiga as origens do comportamento humano, indo da seleção natural ao papel dos hormônios mas sem ignorar a importância de determinantes sócio-ambientais e culturais, por exemplo. É um verdadeiro tratado, embora acessível ao público não especialista como só bons escritores-cientistas são capazes.
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