terça-feira, 19 de outubro de 2021

O legado da CPI da Covid, Joel Pinheiro da Fonseca - FSP

 Como toda CPI, a CPI da Covid —que discute agora seu relatório final— teve um grande elemento de circo político, servindo de palanque para opositores do governo fazerem seus discursos, marcarem posição, aparecerem para a opinião pública, ostentarem sua indignação ou compaixão para com as vítimas.

Esse espetáculo midiático não trouxe informações relevantes para a investigação. É preciso dizer que ter Renan Calheiros como relator apenas realçou esse aspecto e prejudicou a credibilidade dos trabalhos.

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Há também, felizmente, o outro lado da CPI: a investigação de possíveis crimes levada adiante por senadores que fizeram a lição de casa (como Alessandro Vieira e Simone Tebet). Graças a eles, a CPI tornou públicos crimes sérios em duas frentes principais.

Placas com a inscrição "Luto" em bancada no Senado, com frasco de álcool gel ao lado
Placas em protesto durante sessão da CPI da Pandemia, no Senado - Edilson Rodrigues - 22.jun.21/Agência Senado

A primeira foi a corrupção. Foi graças à CPI que um contrato espúrio, eivado de propina, negociado por membros do Ministério da Saúde com os personagens mais suspeitos e desqualificados, foi identificado e cancelado, economizando cerca de R$ 1,6 bilhão aos cofres públicos.

A segunda frente de investigação foi a do negacionismo. O governo brasileiro, seguindo a assessoria de um gabinete paralelo sem transparência e sem amparo técnico, perseguiu uma política de imunidade de rebanho por contágio, negligenciando a compra de vacinas em 2020 ao mesmo tempo em que promovia uma cura fraudulenta para pacientes sintomáticos. Jamais saberemos quantas mortes adicionais essa conduta ocasionou, mas devem estar nas dezenas de milhares.

O que o presidente tem a ver com isso tudo? Nos crimes de corrupção não há, até agora, nenhum documento ou depoimento que prove ligação com ele. Já as condutas negacionistas são inequivocamente obra de Bolsonaro. E como, ao contrário da corrupção, são bastante inusitadas e até difíceis de imaginar (um presidente fazendo propaganda de remédio falso e apoiando pesquisas fraudulentas), ainda não está claro qual a melhor maneira de enquadrá-las. Charlatanismo? Crime de epidemia? Quanto menos tipificações forem escolhidas no relatório final, melhor: o tiro certeiro bem dado é mais forte do que uma dispersão de balas sem alvo.

Nos meios de oposição à esquerda, chamar Bolsonaro de genocida virou uma espécie de símbolo mobilizador. Mas ele não é uma boa descrição literal: pois é claro que, por mais perverso que seja, Bolsonaro não queria matar o povo brasileiro. O combo “imunidade de rebanho + cloroquina” foi mortal; mas se trata de uma política muito diferente da que ceifou milhões de vidas de judeus na Alemanha nazista ou de armênios no Império Otomano.

Resta a acusação mais específica —e plausível— de genocídio contra os povos indígenas, que agora é objeto de debate mas recebeu pouca atenção ao longo da CPI. Não duvido que Bolsonaro tenha as piores intenções para com os povos indígenas, mas, para afirmar que sua conduta na pandemia foi genocida, é preciso mostrar que ele os tratou de maneira diferente —e deliberadamente pior— da que tratou o resto da população.

Que indígenas, quilombolas e o restante dos brasileiros tenham sido submetidos à completa negligência, incompetência e má-fé do governo federal não há dúvidas; que houve a intenção de exterminar qualquer um deles ainda é preciso provar. Nem passapanismo, nem exagero retórico: a descrição justa dos crimes de Bolsonaro deveria guiar o relatório final.


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