Num de seus belos poemas, Fernando Pessoa escreve: “o que em mim sente está pensando”. O
poema, sem título, identificado pelo primeiro verso, “Ela canta, pobre ceifeira”, trata de um
tema que sempre perseguiu o poeta, uma desolada percepção de que pensamento e sentimento
são irremediavelmente incompatíveis entre si.
Para Pessoa, a grande tragédia de uma parcela dos seres humanos parece estar no fato de serem
entes de razão, seres pensantes, que, ao pensarem, perdem o melhor da vida, que é a
espontaneidade do próprio viver, do sentir. O poema faz um contraponto entre a pobre ceifeira
que canta e o “eu lírico” do poeta que a inveja, por não ter a mesma espontaneidade.
No entender dele, o pensamento destrói o sentimento. Pensar o sentimento é perdê-lo. Incapaz
de ser apenas puro e espontâneo sentimento, seu sonho é ser como a ceifeira, mas sem abrir
mão da consciência: “Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciência,/ E a
consciência disso! Ó céu!”
O poeta jamais renuncia ao pensar e gostaria de conciliar pensamento e sentimento, o que se
mostra impossível, na medida em que separa radicalmente essas duas faculdades humanas. Daí,
lamentar sua incapacidade de harmonizá-las, incapacidade da qual advém sua angústia e
sofrimento. Enquanto isso, a pobre ceifeira é feliz, porque apenas canta, sem pensar que seu
ato tenha qualquer sentido além dele próprio.
Também no seu mais conhecido poema “Tabacaria”, escrito pelo heterônimo Álvaro de Campos,
o conflito entre sentir e pensar se manifesta: “Come chocolates, pequena: / Come chocolates!
[....]/Come, pequena suja, come!/ Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com
que comes!/ Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, /Deito tudo
para o chão, como tenho deitado a vida.” Tanto a criança como a ceifeira seriam mais felizes
que ele, porque não têm consciência da vida; limitar-se-iam apenas a viver. “O guardador de
rebanhos”, composto pelo seu heterônimo Alberto Caeiro, é um manual poético da negação do
pensar em favor da simplicidade do sentir, do existir, do viver.
A neurobiologia atual vem mostrando que a pessoa só atinge um padrão satisfatório de saúde
física e mental quando consegue ser capaz de um pensar e um sentir integrados. O neurologista
António Damásio, no livro “Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos”, nos
diz: “[....] quando temos a experiência de um sentimento positivo, a mente representa mais do
que bem-estar, a mente representa também bem-pensar. [...] sentir a tristeza não diz respeito
apenas ao mal-estar. Diz respeito também a um modo ineficiente de pensar, concentrado em
torno de um número limitado de ideias de perda”.
Ou seja, na perspectiva da ciência, Pessoa está equivocado. Não é que a pobre ceifeira não
pense. O que ocorre é que, nela, pensamento e sentimento estão indissoluvelmente
conectados. Não existe sentimento feliz sem pensamento feliz. Não há separação entre pensar
e sentir. O seu cantar feliz é indissociável do seu pensar feliz, assim como o pensamento infeliz
do poeta não lhe permite senão o sentimento também infeliz. Ao se deixar dominar por um
pensamento que se desgarra do sentimento, o “eu lírico” Fernando Pessoa se condena à
infelicidade. Esse “modo ineficiente de pensar” é causa de sofrimento para o poeta; mas é,
também, responsável pela criação dos belíssimos poemas, com os quais brindou a humanidade!
Bom para nós, seus leitores... (limajb@gmail.com)
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