quarta-feira, 13 de outubro de 2021

SENTIR E PENSAR - José Benjamim de Lima . do site da APMP

 Num de seus belos poemas, Fernando Pessoa escreve: “o que em mim sente está pensando”. O

poema, sem título, identificado pelo primeiro verso, “Ela canta, pobre ceifeira”, trata de um

tema que sempre perseguiu o poeta, uma desolada percepção de que pensamento e sentimento

são irremediavelmente incompatíveis entre si.

Para Pessoa, a grande tragédia de uma parcela dos seres humanos parece estar no fato de serem

entes de razão, seres pensantes, que, ao pensarem, perdem o melhor da vida, que é a

espontaneidade do próprio viver, do sentir. O poema faz um contraponto entre a pobre ceifeira

que canta e o “eu lírico” do poeta que a inveja, por não ter a mesma espontaneidade.

No entender dele, o pensamento destrói o sentimento. Pensar o sentimento é perdê-lo. Incapaz

de ser apenas puro e espontâneo sentimento, seu sonho é ser como a ceifeira, mas sem abrir

mão da consciência: “Ah, poder ser tu, sendo eu! / Ter a tua alegre inconsciência,/ E a

consciência disso! Ó céu!”

O poeta jamais renuncia ao pensar e gostaria de conciliar pensamento e sentimento, o que se

mostra impossível, na medida em que separa radicalmente essas duas faculdades humanas. Daí,

lamentar sua incapacidade de harmonizá-las, incapacidade da qual advém sua angústia e

sofrimento. Enquanto isso, a pobre ceifeira é feliz, porque apenas canta, sem pensar que seu

ato tenha qualquer sentido além dele próprio.

Também no seu mais conhecido poema “Tabacaria”, escrito pelo heterônimo Álvaro de Campos,

o conflito entre sentir e pensar se manifesta: “Come chocolates, pequena: / Come chocolates!

[....]/Come, pequena suja, come!/ Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com

que comes!/ Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, /Deito tudo

para o chão, como tenho deitado a vida.” Tanto a criança como a ceifeira seriam mais felizes

que ele, porque não têm consciência da vida; limitar-se-iam apenas a viver. “O guardador de

rebanhos”, composto pelo seu heterônimo Alberto Caeiro, é um manual poético da negação do

pensar em favor da simplicidade do sentir, do existir, do viver.

A neurobiologia atual vem mostrando que a pessoa só atinge um padrão satisfatório de saúde

física e mental quando consegue ser capaz de um pensar e um sentir integrados. O neurologista

António Damásio, no livro “Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos”, nos

diz: “[....] quando temos a experiência de um sentimento positivo, a mente representa mais do

que bem-estar, a mente representa também bem-pensar. [...] sentir a tristeza não diz respeito

apenas ao mal-estar. Diz respeito também a um modo ineficiente de pensar, concentrado em

torno de um número limitado de ideias de perda”.

Ou seja, na perspectiva da ciência, Pessoa está equivocado. Não é que a pobre ceifeira não

pense. O que ocorre é que, nela, pensamento e sentimento estão indissoluvelmente

conectados. Não existe sentimento feliz sem pensamento feliz. Não há separação entre pensar

e sentir. O seu cantar feliz é indissociável do seu pensar feliz, assim como o pensamento infeliz

do poeta não lhe permite senão o sentimento também infeliz. Ao se deixar dominar por um

pensamento que se desgarra do sentimento, o “eu lírico” Fernando Pessoa se condena à

infelicidade. Esse “modo ineficiente de pensar” é causa de sofrimento para o poeta; mas é, 

também, responsável pela criação dos belíssimos poemas, com os quais brindou a humanidade!

Bom para nós, seus leitores... (limajb@gmail.com) 

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