Desde 2000, não há melhora substancial nos indicadores de acesso à água e ao saneamento básico, direitos humanos fundamentais que deveriam ser garantidos pelo Estado
O leitor que se deparou com o título deste artigo pode ter imaginado, num primeiro relance, que trataria da economia brasileira. É um pensamento de certa forma intuitivo, dada nossa completa falta de rumo nesse campo e os recentes e ainda presentes impactos da covid-19.
Não, caro leitor. O assunto aqui é saneamento básico. Algo tão ou mais dramático do que a economia propriamente, que afeta de forma profunda a saúde pública, a qualidade de vida e a dignidade das pessoas, e que também impacta diretamente a economia.
A justificativa da constatação explicitada no título é simples: no dia 15 de dezembro de 2020, o governo federal publicou os diagnósticos referentes a 2019 para água e esgoto, manejo de resíduos sólidos urbanos e drenagem e manejo das águas pluviais urbanas no SNIS (Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento). A fotografia da realidade nacional é tão ruim que merece ser minuciosamente descrita e analisada, destacando que o foco deste artigo é em água e esgoto.
Compreender a nossa situação atual é o primeiro passo para vislumbrar alguma melhora futura. Vejamos se ao menos essa primeira etapa nós conseguimos cumprir. Uma vez que o noticiário está tomado por outros assuntos, que vão desde o plano nacional de vacinação até a aprovação dos orçamentos públicos para 2021, este breve texto busca jogar luz para a situação do saneamento básico no Brasil.
Começando pelo começo e talvez por um dos elementos mais simbólicos do lançamento desses dados: eles são de 2019! Somente após transcorridos 349 dias, o Brasil é capaz de publicar seu diagnóstico oficial do setor. Será que não somos capazes de gerar esse registro de forma mais ágil, que permita que nossa sociedade e nossos tomadores de decisão tenham uma dimensão mais assertiva da realidade, que permita, inclusive, corrigir rotas? Demandamos das empresas relatórios financeiros minuciosos a cada trimestre. As tecnologias permitem identificar alertas de desmatamentos a partir de imagens de satélite praticamente ‘just in time’ (de forma instantânea). O atraso na publicação dos dados de saneamento são fruto de dificuldades tecnológicas, de gestão ou de interesse e vontade política?
Observemos os dados estáticos de 2019. Temos, no Brasil, em pleno século 21, 39,2 milhões de pessoas sem acesso à água potável. Nosso índice de perdas na distribuição de água é de 39,2% na média nacional. O que significa dizer que, por conta de tubulações antigas, malfeitas e com vazamentos, a cada 100 litros de água captada e tratada — ou seja, a um custo operacional que todos nós pagamos —, 39 litros são perdidos e não chegam ao seu destino final.
E mais, 99,7 milhões de brasileiros não têm sequer coleta de esgoto, o que corresponde a cerca de 48% de nossos compatriotas. Ainda segundo os dados do governo federal, é possível calcular o assustador volume de esgoto que jogamos in natura, sem nenhum tratamento, em nossos rios: 24 bilhões de litros diários de esgoto!
O DRAMA VIVIDO DIARIAMENTE POR PARTE SIGNIFICATIVA DA POPULAÇÃO BRASILEIRA ENCONTRA-SE EXPRESSO NESSES INDICADORES. NÃO SE TRATAM DE DADOS FRIOS, MERAS ESTATÍSTICAS
O raio-x estatístico por si só já comunica o tamanho desse drama nacional. Especialmente porque, vale lembrar, estamos falando de dois direitos humanos fundamentais. Acesso à água e ao esgoto estão diretamente relacionados à própria existência humana, à prevenção da veiculação de doenças, à qualidade de vida, a condições dignas de moradia, entre tantos outros aspectos. Além disso, a ciência aponta que a ausência de saneamento aumenta drasticamente o risco de malformação cerebral em nossas crianças. Ou seja, a universalização não nos prejudica somente no presente, mas também mata nosso futuro.
A perspectiva do direito humano nos exige também compreender a realidade a partir de um esforço ao longo do tempo. Na verdade, reconhecer esses dois serviços como direitos humanos significa que o Estado em sua concepção mais ampla, em todos os níveis de governo e inclusive a partir de suas agências reguladoras, tem a obrigação de garantir a melhoria progressiva das condições de acesso, disponibilizando todos os esforços e recursos disponíveis.
Notem: “melhoria progressiva” e “esforços e recursos disponíveis”.
A ideia de aprimoramento ao longo do tempo é central. Vejamos, então, o que nos aponta o SNIS 2019. O gráfico abaixo ilustra como o Brasil vem desempenhando em quatro principais indicadores do setor.
A primeira constatação que chama a atenção, de cara, é exatamente a estagnação dos indicadores. Não há melhora substancial ao longo desse período de 20 anos!
Ao compararmos 2018 com 2019, é possível notar o resultado ínfimo ao longo desses 365 dias. O atendimento de água foi de 83,6% para 83,7%. Mero 0,1% de avanço! Em coleta de esgoto, saímos de 58%, em 2018, para somente 59,4%. O índice de tratamento de esgoto subiu de 46,2% para 49,1%. E o único indicador que nós desejamos que abaixe, aumentou: as perdas subiram de 38,4% para 39,2%, ou seja, um manancial extremamente valioso extravasa pelas nossas tubulações.
Os dados absolutos observados nessa perspectiva temporal tampouco são animadores, especialmente em se tratando de uma das dez maiores economias do mundo. No esforço entre 2018 e 2019, diminuímos em apenas 200 mil pessoas a população sem acesso à água (eram 39,4 milhões, passou para 39,2 milhões). Em termos de coleta de esgoto a queda foi de 1,3 milhão de brasileiros que deixaram de compor o dado dos “sem coleta”. Por outro lado, aumentamos em 300 milhões os litros diários de esgoto jogados todos os dias na natureza sem nenhum tratamento.
O drama vivido diariamente por parte significativa da população brasileira encontra-se expresso nesses indicadores. Não se tratam, portanto, de dados frios, meras estatísticas. Eles ilustram e registram algo da vida real e merecem atenção.
Não se trata simplesmente de apontar as dificuldades do Brasil. A ciência e a prática indicam que o passo inicial para uma transformação é conhecer com profundidade e com a cautela necessária o registro histórico do passado e analisar o presente. Reconhecer nossas fraquezas é uma etapa fundamental para o avanço civilizatório do país nessa agenda.
Lembram-se do conceito do direito humano e da obrigação do Estado de disponibilizar “todos os esforços e recursos disponíveis”!? Pois esse é um aspecto fundamental caso a sociedade brasileira queira de fato alcançar a universalização do acesso ao saneamento básico. Imaginar que os investimentos virão apenas da iniciativa privada, a partir da aprovação do novo marco legal do setor, é mera ilusão ou conto de fadas. Nenhuma experiência internacional demonstra a possibilidade de não haver uma participação efetiva do Estado, inclusive sob a ótica dos investimentos, para alcançar essa meta.
É necessário ter um debate sério e profundo na sociedade brasileira, construindo um novo acordo social que priorize esse setor.
Guilherme B. Checco é mestre em ciência ambiental pela USP (Universidade de São Paulo). Coordenador de pesquisas do IDS (Instituto Democracia e Sustentabilidade).
Colaborou Caroline Souza com o gráfico.
Nenhum comentário:
Postar um comentário