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um domingo ensolarado, 20 de agosto de 2000, recebi um telefonema pouco antes do aconchegante almoço em família. Na linha estava o meu chefe, Rodrigo Mesquita, diretor da Agência Estado, terceiro dos quatro filhos do patriarca da família, Ruy Mesquita, o venerável doutor Ruy, como ele é conhecido na empresa que tem como carro-chefe O Estado de S. Paulo. “Fizemos uma reunião na casa do meu pai e decidimos afastar o Pimenta por um tempo, vamos dar uma licença para ele tratar da saúde”, disse Rodrigo. Eles também haviam resolvido que eu deveria assumir o cargo de diretor de redação do jornal já no dia seguinte.
Não cheguei a me surpreender com a notícia. Dezenas de colegas sabiam que, em função de problemas pessoais, Antônio Marcos Pimenta Neves vinha tendo nos últimos tempos um comportamento errático e, às vezes, agressivo. Também não vibrei com a perspectiva de dirigir o Estadão. Como trabalhava na empresa há 34 anos, tinha ocupado diversos cargos e já havia sido cogitado para ser o diretor de redação, achei que era apenas uma nova tarefa, ainda que mais pesada e difícil que as outras.
O choque mesmo veio na tarde daquele domingo atipicamente quente. Num outro telefonema, fiquei sabendo que Pimenta, de 63 anos, assassinara sua namorada Sandra Gomide, de 32, no haras Setti, em Ibiúna, nos arredores de São Paulo. Na sexta-feira anterior, no entender da facção dos Mesquita que o havia nomeado diretor e o sustentava no cargo apesar das restrições das outras cinco alas da família que dividem o controle acionário da empresa, Pimenta havia passado dos limites. O diretor de redação demitira o repórter Carlos Franco porque ele arrumara um emprego, em outra empresa, para Sandra Gomide, que ele mandara embora do jornal por ciúme. Meses antes, Pimenta havia promovido a namorada a editora de economia, sem levar em conta a avaliação, praticamente unânime, de que ela não tinha condições para ocupar o cargo.
A gestão de Pimenta fora marcada por essa tumultuada relação amorosa e, também, pelos seus freqüentes conflitos com a área comercial, sob o comando de um sobrinho do doutor Ruy, Roberto Mesquita. Os conflitos profissionais tinham como razão declarada a defesa exacerbada que Pimenta fazia da separação entre Igreja e Estado (a divisão, em departamentos estanques, entre a redação e a área comercial). Mas como o diretor de redação fustigava sem parar a área comercial, havia a suspeita de que o motivo era, no fundo, um pretexto para uma ala dos Mesquita atacar a outra.
Amigo e discípulo de Cláudio Abramo, que reformara o Estado e a Folha nos anos 60 e 70, Pimenta havia sido um bem informado correspondente do jornal em Washington. Depois, foi trabalhar no Banco Mundial, pelo qual se aposentou, e voltou ao Brasil para dirigir a Gazeta Mercantil. Nos seus tempos áureos, antes da degringolada administrativa que a vitimou, a Gazeta era uma das admirações do doutor Ruy. Ele sempre a apontava como exemplo de jornal sóbrio, abrangente e confiável. Ao sair dali, Pimenta foi convidado a dirigir a redação do Estado, numa improvável divisão de comando com Aluízio Maranhão, que dirigira a sucursal do Rio. A direção dupla não funcionou, Maranhão saiu e Pimenta fez um jornal marcadamente voltado para a cobertura econômica.
Para amenizar a aridez da primeira página, Pimenta gostava de ilustrá-la, quando havia material disponível, com fotos de animais – pandas, cachorrinhos, gatos, cavalos. Achava que o leitor médio tinha fascínio por bichos e que isso vendia jornal. Chegou a criar um suplemento chamado Cavalos, de vida efêmera. Orgulhava-se de ter promovido Isabel Tanese a editora de esportes, e dizia que o Estadão era o único jornal brasileiro com uma mulher comandando a cobertura esportiva. Uma de suas performances prediletas era submeter aos editores executivos as opções de foto para ilustrar a primeira página. Como ele tinha a palavra final, infalivelmente escolhia a foto derrotada na votação. Brincava de poder assim.
Foi com a contratação de Sandra Gomide, a promoção dela a editora e sua abrupta demissão, que Pimenta, tido como um diretor de temperamento forte, e por vezes extravagante, deu sinais de que havia algo de muito errado com ele. Retrospectivamente, me parece que ninguém na redação tinha intimidade para alterar o rumo das atitudes de Pimenta, que acabaram o levando a matar Sandra. Que eu tenha percebido, nenhum sinal de alerta, suficientemente sério ou ruidoso, foi deflagrado, em qualquer instância. Se houve evidências sobre as suas intenções (alguém teria dito que o ouviu falar em intenção de matar, alguém teria dito que o viu exibindo armas de maneira ameaçadora), ninguém as denunciou. A minha visão, no entanto, é parcial, pois não estava na redação.
A sala de reuniões da redação do Estado transformou-se naquele domingo num gabinete de crise. Nela se discutiam as circunstâncias do crime, a reportagem que seria publicada nos dois jornais da casa, Estadão e Jornal da Tarde, a comunicação com as redações dos outros órgãos de imprensa, além das providências legais de relacionamento da empresa com um funcionário graduado que desaparecera, para evitar a prisão em flagrante. Fernão Mesquita, diretor do JT, segundo filho do doutor Ruy, tido na bolsa de apostas interna como seu delfim, assumiu o comando do gabinete. Ele acompanhou, de caneta na mão, a delicada redação da matéria que seria publicada no dia seguinte.
A decisão de transferir a direção do jornal para mim, que era diretor de informação da Agência Estado, foi adiada da manhã seguinte para uma data indefinida. Não se tratava mais de uma substituição temporária, e isso exigia outro ritual, como a aprovação formal da família e do conselho de administração. Os acionistas usaram a circunstância para fazer um pacote sucessório robusto: eu substituiria o Pimenta como diretor de redação e, prenunciando a futura sucessão do pai, Fernão Mesquita seria nomeado diretor de opinião do Estado, sem precisar abrir mão do comando do JT. Era um cargo novo, transitório e sem muito propósito imediato, já que o doutor Ruy continuaria a elaborar a opinião do jornal das primeiras às últimas crases dos editoriais.
Tinha 6 anos de idade quando me envolvi com o jornalismo, como leitor. Eu morava em Lima, no Peru, e meu pai, que saíra de Mantova, no norte da Itália, por problemas políticos no pós-guerra, me trazia todos os dias um exemplar do El Comercio. Aprendi a ler nele, antes de ir à escola. Mudamos para La Paz, na Bolívia, onde estudei numa escola de jesuítas e nas páginas de uma certa Última Hora. Meu pai veio para o Brasil, para achar trabalho e depois chamar o resto da família. Ele mandava cartas, dizendo que no Brasil tinha um jornal enorme, que saía com mais de cem páginas aos domingos, e que eu ia adorar. Era o Estadão.
Mudamos, em 1954, para o Brasil, e nos estabelecemos em Jundiaí, no interior paulista. Nunca estudei jornalismo, mas não podia me imaginar noutra profissão. Tinha fascínio por notícias e achava que tinha que viver no meio delas. Comecei a trabalhar como repórter sindical no Diário de Jundiaí. Em pouco tempo, virei redator-chefe, ainda que não tivesse chefiados: o dono era o dono, e a redação era eu. Um dia, me contaram que o Estadão lançaria uma edição vespertina. Escrevi uma carta a Marcelino Ritter. Não sabia quem era, mas era o nome dele que aparecia no expediente como editor-chefe do Estado. Ignorava que o Jornal da Tarde estava sendo criado por outra equipe. A carta chegou às mãos de alguém dessa equipe e um dia recebi um telefonema de Ulysses Alves de Souza, chefe de reportagem, me convidando para uma entrevista.
Cheguei ao JT em dezembro de 1965, vinte dias antes de o jornal ir às bancas. Como teste, Ulysses me mandou fazer uma matéria qualquer sobre a CMTC, a popularíssima Companhia Municipal de Transportes Coletivos, que operava os ônibus paulistanos. “Onde fica?”, perguntei. “Na rua Martins Fontes”, respondeu ele, com a carranca típica daqueles jornalistas de filme americano, de viseira na cabeça e liga no braço, segurando a manga da camisa. Com medo de passar vergonha, não perguntei mais nada. Zanzei pelas imediações do jornal uma boa meia hora, até descobrir que estava na rua Martins Fontes, esquina com Major Quedinho, rua do jornal… A CMTC não rendeu uma mísera linha.
Minha primeira reportagem de verdade foi sobre uma jovem nissei de Bastos, no interior de São Paulo, terra do ovo, que havia ganho um concurso de poesias em homenagem ao imperador japonês. Depois, cobri, entre outras notícias, a fracassada guerrilha de Caparaó, mas a reportagem mais aventurosa foi sobre a invasão das recém-decretadas 200 milhas marítimas brasileiras por pesqueiros russos, no litoral gaúcho. O fotógrafo Amilton Vieira e eu convencemos um piloto de aeroclube a nos levar mar adentro em seu monomotor e saímos à caça de navios russos. Quando Amilton fotografou um grande pesqueiro com a foice e o martelo na chaminé, foi uma festa. Além de se afastar da costa mais que ordenavam a prudência e as regras para aviões de pequeno porte, o piloto deu vôos rasantes e acrobáticos sobre o pesqueiro russo. A incursão rendeu uma boa foto na primeira página, uma grande matéria e o brevê do piloto cassado pelas autoridades.
Minha carreira de repórter foi curta. Com a saída do diretor de redação Mino Carta e da sua turma para fazer a Veja, subitamente faltaram redatores, subeditores, editores, chefes em geral. Houve promoções em massa, virei redator e, sucessivamente, subeditor e editor de várias áreas.
Deixei o Jornal da Tarde, em 1984, para participar da criação do semanário Afinal. A revista não deu certo e, quatro anos depois, a convite de Rodrigo Mesquita, fui para a Agência Estado, que ele queria reestruturar. Nos 37 anos de Grupo Estado, e quatro de Afinal, nunca deixei de morar em Jundiaí, a 50 quilômetros de São Paulo. Grosso modo, foram 9 000 dias de trabalho – e 900 000 quilômetros de estrada.
No 1º de outubro de 2000, Fernão e eu fomos apresentados à redação numa reunião com os editores. O período Pimenta, com seu desfecho brutal, tinha sido um trauma. Eu vinha da Agência Estado e, nos últimos dez anos, as duas redações não dividiam as mesmas mesas de churrasco. A partilha da empresa em sesmarias de acionistas, com visões e interesses diferentes, tinha erguido muros virtuais e aberto feridas. Dos seis grupos acionários que dividiam o controle da empresa, três eram considerados de ‘jornalistas’ – o do doutor Ruy e seus filhos, o do casal de filhos de Julio Mesquita Neto e o da maior herdeira individual, a filha de Luiz Carlos Mesquita, o Carlão. Os outros três eram grupos de ‘empresários’, ou ‘administradores’. Cada um deles tinha seus subgrupos, alas e facções, que combatiam as suas próprias guerras do Paraguai.
Em 1988, Rodrigo Mesquita deixara o Jornal da Tarde, onde havia sido desde redator até diretor. Ele queria duas coisas: tentar carreira solo, criando um novo negócio; afastar-se da pressão familiar sobre os rumos editoriais do JT e o modelo de gestão implantado por ele, que seus parentes acusavam de populista. Se tivesse sucesso, poderia se credenciar à liderança da nova geração. Rodrigo resolveu descascar um abacaxi, a Agência Estado, que ficava numa sala escondida, na qual onze redatores reescreviam telegramas. Ela faturava 400 000 reais por ano, dos quais a metade não entrava em caixa, por inadimplência dos clientes. Em poucos anos, virou uma empresa dinâmica e lucrativa, com mais de 300 funcionários e faturamento de 100 milhões de reais ao ano. Entre outras novidades, ela inaugurou a cobertura do mercado financeiro em tempo real.
Conflitivo, talentoso e passional, Rodrigo alardeava a explosão da internet antes que alguém na empresa se desse conta de sua existência. Tentava doutrinar pai, irmãos, primos e acionistas sobre as mudanças orgânicas que estavam em curso no negócio da comunicação. Falava em ‘sociedade das redes’ com entusiasmo de cruzado – e não faltava quem o visse como lunático, ou um obcecado pelo poder. Com isso, tentando se impor como líder da nova geração, Rodrigo abriu um novo centro de poder dentro da empresa.
Depois da reunião de apresentação com os editores, comentei com algum amigo que eles pareciam um grupo de colegiais assustados. Eu tinha na cabeça, antes de um projeto editorial minucioso, a idéia de restaurar um pouco da tranqüilidade perdida, e espantar o clima de pânico reprimido, que parecia instalado no subconsciente dos quase 500 profissionais da redação, dos editores aos contínuos. Antes de reformar, era preciso consertar o estrago. A gestão que terminava em tragédia passional era também um pandemônio administrativo.
A editoria de economia, por exemplo, estava destruída. Ela havia caído na mão de um prestigioso repórter financeiro, mas com experiência zero de edição. Quando assumi a direção, o jornal estava no meio de uma desastrada cobertura de uma reunião do FMI na Ásia. Chamei o editor para falar sobre a cobertura e a edição. E para dizer-lhe, por dever de lealdade, que eu tinha muita confiança nele como profissional, mas não achava que aquele fosse o melhor lugar para ele. Ele, que não estava à vontade no cargo, concordou, agradeceu muito – e saiu da sala, pegou discretamente as suas coisas e foi embora para nunca mais voltar. E eu achava que estava inaugurando, com grande habilidade, um período de sinceridade e transparência…
Um editor executivo dizia, com ironia e propriedade, que um dos grandes problemas da redação do Estadão era “o Mesquitinha que existe dentro da cabeça de cada um de nós”. Ele queria dizer que, pelo hábito de pensar com a cabeça dos patrões, a redação reprimia a ousadia e tendia para a autocensura. Eu não queria a desmesquitização, pois ninguém contestava a base de valores históricos da empresa. Advogava, isso sim, a profissionalização, a adoção de padrões jornalísticos consagrados, sem medo de ser fulminado pela aplicação de critérios subjetivos.
O medo mais evidente era o de errar, que atingia cumes doentios. O lema da redação parecia ser in dubio, pro nada. Em vez de títulos afirmativos, categoricamente noticiosos, o jornal cultivava a imprecisão, a dubiedade e a empolação. Para resumir: em vez de “eleição” escreva “pleito”, isso é o Estadão. Ninguém determinava nem pedia nem defendia essa vaguidão. Ela estava introjetada na alma das pessoas. Duas manchetes históricas do Estadão, em épocas de guerra, ilustram essa opção pela prática de esconder a notícia: “Ho Chi Min reafirma sua conhecida posição” na guerra do Vietnã; ou, às vésperas de uma batalha na guerra árabe-israelense, “Tensão persiste; nada”.
Internamente, a cultura da ambigüidade era conhecida como “ficar atrás da duna”. A expressão foi criada pelo bem humorado Aluízio Maranhão, um jornalista extremamente habilidoso, no período em que se equilibrou na direção da redação junto com Pimenta Neves. Maranhão era habilidoso, mas não era mágico. Num conflito de ordens entre Julio César Mesquita e seu tio, o doutor Ruy, ele acatou uma das ordens (a de Julio César) em detrimento da outra. Assim que botou a cabeça fora da duna, foi alvejado.
Na linguagem rococó, na apuração às vezes preguiçosa e incompleta, na editorialização dos textos (houve época em que o jornal chamava Leonel Brizola de “caudilho” não apenas nos editoriais, mas nos títulos de notícias), na ausência de vida real nas reportagens, na edição burocrática e cartorial estavam, no meu entender, os defeitos mais visíveis do jornal.
Coloquei um editor de texto ágil e esperto, Sergio Vaz, para percorrer todas as páginas do jornal durante a fase de fechamento, com a missão de patrulhar títulos, aberturas de matérias e tantos textos quantos conseguisse, para dar-lhes elegância, correção e, quando possível, alguma graça. Era quase um trabalho de Sísifo, mas pelo menos algumas pedras não rolavam de volta. Aos poucos, o jornal foi ficando menos sorumbático.
Ao longo do tempo, prudentemente, para evitar traumas, todos os editores foram trocados.
Em sua elegante cabana de caçador, ornada por espécimes da sua coleção de rifles, montada no quintal de uma bela casa nos Jardins, bairro nobre de São Paulo, Fernão Mesquita lia de manhã os jornais da casa e a concorrência. E de lá disparava dois tipos de torpedo. De viva voz, dizia aos editorialistas do Jornal da Tarde, detalhadamente, o que pensava dos temas em pauta e o que queria ver escrito no jornal do dia seguinte. Em textos, detalhados e pontilhados de opiniões e juízos de valor, dizia ao Estadão como deveriam ser tratados os temas do dia.
A reunião de pauta era às 10 da manhã, hora marcada para a decolagem do Boeing, como gostava de dizer um colega, mas os bilhetes de Fernão chegavam entre meio-dia e 1 hora da tarde. Os fusos diferentes provocavam ruídos no sistema de comunicação da aeronave. O Boeing partia numa direção e recebia da tenda contra-ordens, conflitantes e aflitas, em pleno vôo.
O doutor Ruy tinha outro estilo. Fazia suas observações a posteriori, geralmente depois das 2 horas da tarde. Chegava ao jornal, religiosamente, ao meio-dia e meia. Reunia os editorialistas, discutia os temas do dia e depois andava pela sua sala. Terminada a caminhada, se fosse o caso, fazia desabar sobre a cabeça do diretor de redação, com maior ou menor virulência, as suas iras do dia. Às vezes, a ira podia ser tão grande que ele não esperava. Ligava de casa mesmo e falava do que não havia gostado. Uma de suas maiores zangas se deu quando o jornal publicou, na primeira página, uma série de fotos de Marta Suplicy, prefeita de São Paulo, sendo atingida por um ovo durante um ato público. Achou a publicação deselegante e sentenciou: “Não se faz isso com uma senhora”.
O primeiro grande frisson jornalístico que apareceu pela frente foi o 11 de setembro de 2001. O doutor Ruy chegou na hora de sempre, porém mais sombrio que o normal. Parecia pessoalmente atingido pelo ataque às torres gêmeas, como se naquele momento ele personificasse a própria civilização ocidental dilacerada. “Jamais pensei que viveria para ver uma barbaridade como essa”, disse, soturno. Não emitiu qualquer ordem especial. Apenas disse que queria ver a concepção da primeira página e participar da escolha da manchete e da foto.
A cabana de Fernão, que numa ocasião como essa seria um frenético centro de emissão de caudalosas ordens de cobertura, de enfoques, de angulações, de conjecturas, permaneceu silenciosa. Ele se fez ouvir num telefonema distante e entrecortado, direto da ilha de Capri, na Itália, onde curtia o verão. Fernão tentou, por três ou quatro vezes – a linha insistia em cair – sublinhar a importância do momento histórico que a humanidade vivia e da minha responsabilidade na tarefa de retratá-lo direito.
Com serenidade, a edição foi arquitetada ao longo do dia. Montamos uma sala, para onde todas as páginas que ficavam prontas iam sendo revisadas, para evitar contradições, repetições de títulos, de fotos, coerência de enfoques. Ao fim, foram 37 páginas de uma cobertura rica, sóbria, sem deixar de ser emocionante. Até o parcimonioso doutor Ruy se permitiu um lapidar “fomos bem”. A redação, finalmente, botava a cabeça fora da duna.
Não havia duna, porém, que pudesse servir de abrigo para o terremoto que se aproximava. Por pressão dos bancos credores, preocupados com a solvência da empresa, e com as conseqüências que um eventual calote teria em seus balanços, foi planejada uma operação de “reengenharia” – ou qualquer outro nome que se queira dar – cujo objetivo era resgatar a dívida a médio prazo. Na prática, a reengenharia significava afastar a família controladora dos cargos executivos (havia nove Mesquitas trabalhando na empresa) e, para cortar custos, demitir algumas centenas de funcionários.
Até as rotativas da gráfica sabiam que a empresa sofria os efeitos de um investimento malsucedido na telefonia celular, na euforia da privatização, quando recorreu a um empréstimo no exterior para associar-se ao banco Safra na compra da operadora BCP. Além disso, um consultor financeiro da empresa, contratado para ajudar no trabalho de reestruturação da dívida, diagnosticava, num de seus relatórios confidenciais, que a quarta geração da família Mesquita “perdeu-se em rixas banais e hostilidades fúteis”. E dizia que “os credores têm grande relutância em aceitar que a liquidação de seus créditos fique entregue à mesma administração sob a qual eles se tornaram impagáveis e preferem cobrar os resultados de tais medidas de uma administração independente”.
O comitê dos bancos credores optou pela contratação de uma consultoria, a Galeazzi & Associados, que tinha no mercado uma reputação de sangrenta eficiência. A consultoria proclamava, entre outros feitos, ter dado um jeito nas Lojas Americanas, transformando-as, conforme afirmava o seu portfólio, num primor de eficiência e lucratividade.
Foi feito um acerto no sentido de que Claudio Galeazzi, um sessentão de cabelos brancos, controlador da consultoria, assumisse a superintendência do grupo. Mas, na véspera da posse, ele se desentendeu com Francisco Mesquita, o superintendente. Depois da troca de alguns palavrões, a situação acomodou-se assim: ele assumiria o processo de reestruturação, mas como consultor, sem cargo executivo.
Claudio Galeazzi formou um comitê executivo misto, com gente dele e executivos do grupo. Nessa última categoria estávamos eu e Elói Gertel, que assumiu a direção da Agência Estado no lugar de Rodrigo Mesquita, o qual, como os demais executivos da família, foi afastado da empresa. Só dois Mesquitas mantiveram seus cargos na nova ordem: o doutor Ruy, que passou de diretor-responsável a diretor de opinião, e dona Maria Cecilia, diretora do Suplemento Feminino. Antes de aceitar a empreitada, Elói e eu consultamos a parte da família à qual devíamos nossa indicação para os cargos. Só aceitamos depois de receber o OK deles, o que não evitou que, mais à frente, houvesse episódios de crispação e hostilidade, e até acusações de traição.
Galeazzi, o interventor, chegou com um receituário recheado de clichês, que iam do “orçamento base zero” ao turnaround (que, conforme o Oxford Dictionary, significa a complete change in a situation or a trend, especially from bad to good). As metas fixadas pelo comitê de credores eram três: a suspensão de investimentos, a eliminação dos negócios deficitários ou pouco rentáveis e a melhoria da margem dos negócios remanescentes.
O interventor mirou primeiro no Jornal da Tarde. Lançado há quarenta anos, o vespertino revolucionou a estagnada imprensa paulista. Foi, de início, um grande sucesso de crítica e de público, sem, no entanto, conseguir o equivalente desempenho empresarial. Tornou-se, com isso, um ponto de discórdia entre acionistas, mas discórdia tratada à moda deles – veladamente, sottovoce. Murilo Felisberto, um profissional intelectualmente refinado, de apurado gosto estético, foi a primeira vítima do downgrade feito pela consultoria. Para sobreviver, o jornal precisaria ser mais popular e barato. Murilo, que ficara afastado do jornal por vinte anos, período em que construiu uma sólida carreira de publicitário, fora convidado por Fernão Mesquita para voltar e restituir ao jornal o antigo brilho. Com os cortes, não pôde fazer o que queria e foi demitido. Depois de algum tempo o Jornal da Tarde saiu do vermelho. Mas é um jornal sem brilho. Murilo Felisberto morreu em maio passado.
Para ganhar a adesão de chefes, gerentes e subgerentes para o seu programa de cortes, a Galeazzi desenvolveu, ou adaptou, uma metodologia de treinamento que oscilava entre o fervor evangélico e a mise-en-scène circense. O treinamento consistia em juntar as pessoas que tinham algum poder de decisão num convescote, durante um final de semana, num hotel campestre em Atibaia, em São Paulo. Ali, se promovia uma tentativa de lavagem cerebral com jogos, testes, exercícios coletivos e gincanas infantilóides. Tudo para preparar a alma dos protagonistas a cortarem a cabeça uns dos outros, ou de terceiros, se necessário fosse. Os jornalistas (metidos, segundo uns, ou com espírito crítico um pouco mais aguçado, segundo nós) se insurgiram contra o método, que comportava performances grotescas como rolar no chão, sobre colchonetes, e tocar harpas imaginárias. O máximo que conseguiram foi amenizar alguns dos itens mais estapafúrdios.
Durante o diktat da consultoria, eu, como membro do comitê executivo e daquilo que Claudio Galeazzi, com extremo mau gosto, chamava de “guarda pretoriana” do projeto de reestruturação, dividia meu tempo entre a redação e as mais aborrecidas reuniões das quais já participara na vida. Depois de pouco mais de um ano, e uns 500 demitidos, com a família controladora fora dos postos executivos, a Galeazzi & Associados entregou aos bancos a sua obra: uma empresa em condições de pagar a sua dívida, que foi refinanciada.
Nessas condições difíceis, eu insistia com os editores executivos: não podemos nos contentar com um jornal correto, temos que perseguir o ideal de um jornal brilhante. Eleno Mendonça, que tinha ficado como editor-chefe, era um profissional correto, leal e prestativo. Mas tinha herdado cacoetes um tanto autoritários, que me fizeram pensar em substituí-lo por alguém mais afinado com os métodos que eu pretendia disseminar na redação, mais de persuasão e convencimento que de ordem unida espartana. Flávio Pinheiro, que trabalhara na Veja e na boa fase do Jornal do Brasil, tinha o perfil mais adequado ao projeto e veio substituir Eleno.
O passo seguinte seria mudar a cara do jornal. Seu característico ar de sobriedade já tinha passado do ponto da elegância para entrar no campo da obsolescência. Uma pesquisa chamada Perceptor, feita pela primeira vez no final dos anos 90, e repetida em 2003 e 2004, mostrava que o jornal tinha perdido a liderança de circulação. Entre outras razões, isso acontecera porque ele era percebido como pesado, de difícil leitura, pouco plural, indiferente às mulheres e antipático aos jovens. Entre a primeira e a segunda pesquisas, a situação piorou, e a tendência era que a deterioração continuaria, se nada fosse feito. O jornal, no entanto, continuava inabalavelmente forte na sua credibilidade e respeitabilidade. Ou seja: os valores vitais estavam preservados.
Uma rejuvenescida gráfica teria que ser acompanhada de algum aggiornamento editorial, para não reduzir a reforma a uma maquiagem superficial e sem conseqüências. Havia, portanto, muito a fazer: modernizar a linguagem, deseditorializar a edição, abordar temas contemporâneos, incentivar um pouco mais o contraditório, dar espaço a opiniões divergentes, ao pluralismo (o sonho inconfesso de alguns acionistas era repetir a postura da Folha de S. Paulo, achando que aí residia o segredo de seu rumoroso sucesso de marketing e sua escalada até a liderança de circulação).
Começamos a fazer, meio na surdina, experiências de redesenho. Trouxemos um desenhista da nova geração, da consultoria da Universidade de Navarra, onde nascera a Inovación Periodistica, de Juan Antonio Giner (que mais tarde se desligou da universidade mantida pela Opus Dei e se tornou uma empresa independente, com sede nos Estados Unidos e várias filiais pelo mundo), mas não achamos o tom que nos convinha. Em Istambul, durante o Congresso da Associação Mundial de Jornais, a WAN, em 2003, conversei bastante com Francisco Amaral, sócio brasileiro da consultoria catalã I Cases. Acabamos acertando os princípios de um projeto de redesenho, inaugurado, afinal, em outubro de 2004.
Enquanto Amaral fazia a mudança gráfica, a redação trabalhava na criação de novos cadernos e suplementos. Foram feitos o Lazer & TV, Link (que substituiu o velho caderno de Informática), Casa& (de decoração) e o Aliás (com a intenção de ser uma resenha refletida dos temas da semana). Aprofundou-se a cobertura de negócios no caderno de economia, reestruturou-se a área de cidades e se acabou com a editoria de Geral, que era um cemitério de assuntos sem guarida, para transformá-la em Vida&.
Houve fôlego, ainda, para criar um caderno semanal de gastronomia chamado Paladar e um caderno tablóide de decoração e idéias para morar bem chamado Casa&.
Se não me engano, os jornalistas se sentiram mais motivados. Tanto que, em ocasiões especiais, como final de Copa do Mundo, as eleições presidenciais e os atentados aos trens na Espanha e ao metrô de Londres, vários colegas começaram a aparecer voluntariamente na redação, fora de seus horários de trabalho, para ajudar no mutirão de apuração e fechamento.
Tudo isso foi feito sem nenhuma contratação adicional de jornalistas. Bem ao contrário, aliás, já que o processo histórico caminhou no sentido oposto. Quando entrei na empresa, que funcionava na rua Major Quedinho, no centro da cidade, onde hoje está o Diário de São Paulo, havia mil funcionários, e mais da metade era formada por jornalistas. O pagamento, quinzenal, era feito em dinheiro vivo, na boca do caixa, pelo tesoureiro Alexandre. Os envelopes engordavam com a inflação. Ao longo das décadas, as redações emagreceram. No início deste 2007, a redação do Estado, que já teve cerca de 600 jornalistas, não passava de 400. Antes, o jornal tinha sucursais em Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador e Recife, além de Santos, Campinas e o ABC. Agora, só restam as do Rio e Brasília. Nas outras há apenas correspondentes, a maioria deles free-lancers.
Logo depois da saída do furacão Galeazzi da empresa, os acionistas criaram um organismo chamado Comitê de Supervisão Estratégica, o CSE. Integrado por um representante de cada um dos seis grupos familiares, o Comitê se reunia uma vez por semana, para discutir os rumos operacionais da empresa e expressar as diferenças de seus membros por meio da troca de farpas, expressões de enfado e ironias. Os representantes das seis facções aprovaram, paulatinamente, as provas do novo desenho gráfico e dos cadernos que lhes iam sendo apresentados. Mas o doutor Ruy, que não participava do CSE, onde era representado pelo seu filho Fernão, via tudo aquilo com ceticismo. Ele achava que o jornal era aquilo que era, que esse era o motivo de sua longevidade, do respeito do público, de sua tradição. No final, à Tomasi di Lampedusa em O Leopardo, se convenceu a escrever um artigo assinado e a autorizar um editorial dizendo que o jornal mudava para continuar o mesmo.
No dia em que o Estadão foi às bancas de cara nova houve uma festa na redação, com salgados e champanhe. Roberto Gazzi, o editor executivo, fez um brinde com lágrimas nos olhos, que resumiam silenciosamente o sentimento de um grupo de jornalistas satisfeito com o resultado de tanto trabalho. O jornal saiu num domingo, 17 de outubro de 2005. Havia uma edição que ficava pronta às 2 horas da tarde do sábado, destinada às bancas 24 horas. Era essa edição que o doutor Ruy recebia em sua casa. Só fomos conhecer seu veredito quase quarenta e oito horas depois, quando ele me ligou, na segunda-feira, para dizer, com economia de palavras e de entusiasmo, que “o jornal ficou melhor do que eu pensava”. E ponto final.
O doutor Ruy continuou, não obstante, a defender os pontos que lhe eram caros. O jornal, insistia ele, tem suas convicções centenárias, se tornou poderoso graças a elas, e é suicídio afrontá-las. Pequenos artigos de opinião espalhados pelo jornal, tentando elucidar fatos do cotidiano, ou polemizar sobre eles, o incomodavam. Sobretudo quando colidiam com a opinião expressa com clareza e veemência na página 3, no sagrado espaço dos editoriais – referência histórica da imprensa, altar do pensamento liberal-conservador – respeitados e temidos até por quem os odeia. Num evento público em que foi homenageado, o doutor Ruy cunhou o neologismo murdoquização, referência ao magnata australiano da imprensa, que ainda nem havia comprado o Wall Street Journal da família Bancroft. A murdoquização, segundo ele, era sinônimo do que considerava a vulgarização dos jornais, com a ascendência do marketing sobre a qualidade editorial.
“Vocês agora querem espalhar editoriais pelo jornal inteiro e daqui a pouco, desse jeito, não vamos precisar mais da página de editoriais”, ele me disse. Esse “vocês” ele usava com freqüência, quando queria referir-se a ações ou atos, que considerava mais ou menos desatinados, de uma indistinta e vaga massa redacional cujo rosto apenas imagina, e a respeito da qual nem sempre tem um juízo lisonjeiro.
Um dos alvos prediletos de suas ironias eram as reportagens publicadas na seção Bem-Estar, publicada uma vez por semana na editoria de Vida&, que tinha a piedosa intenção de agregar leitores ao jornal. Matérias de comportamento, modo de vida, dietas, ginásticas, exercícios, essas coisas que, segundo dizem, melhoram a existência das pessoas. Era algo parecido com o do caderno Equilíbrio, da Folha, mas totalmente fora de lugar, no final do primeiro caderno, logo depois das grandes tramas, guerras e tragédias do noticiário internacional, uma das marcas do Estadão.
Um belo dia, a Bem-Estar não resistiu à própria irrelevância e desapareceu do jornal, sem um mísero e-mail de protesto ou aplauso.
O principal desafeto do doutor Ruy no jornal reformado foi o caderno Aliás. Isso ocorreu um pouco pelos temas aos quais ele é desafeiçoado, um pouco pelos personagens das entrevistas (“esse não é santo de minha devoção”, costumava dizer, quando não simpatizava com o tipo). O fato é que algumas das mais desgastantes batalhas das segundas-feiras, quando ele vinha com as edições do fim-de-semana anotadas, se travaram em torno do conteúdo do Aliás. Leitor voraz de Alexis de Tocqueville, admirador das instituições democráticas americanas, ele tem particular implicância com os críticos do governo Bush que, a seu ver, embaralham as restrições que possam ter ao atual presidente com má vontade genérica com relação à sociedade americana. Definitivamente, tipos como Gore Vidal ou Noam Chomsky não são santos de sua devoção. Suponho que o Aliás sobreviva pelo seu sucesso de público e de crítica, e pelo apoio da maioria dos acionistas.
Odoutor Ruy chegava ao jornal, no bairro do Limão, dirigindo seu próprio Vectra. Ia até o elevador auxiliado por uma bengala (teve paralisia infantil na perna esquerda), caminhava pelos corredores do sexto andar, onde estão os sorumbáticos retratos de seus ancestrais e de vultos republicanos, e se instalava na sua ampla sala, onde uma grande janela sem cortinas lhe oferece uma esfumaçada visão panorâmica do rio Tietê e suas entrevadas marginais. Senta-se de costas para aquele pedaço de turbulenta e árida paisagem paulistana. Na sua mesa, empilham-se os jornais do dia, provas de editoriais, livros e papéis. À sua direita, uma estante de livros toma toda a parede. Fotos de família, páginas históricas e caricaturas enfeitam as paredes. Uma televisão, que ele liga só em clássicos de futebol ou grandes momentos de CPI, está à sua frente. Um rádio toca as músicas clássicas que acompanham seu incessante trabalho de mexer e remexer, de emendar e remendar os editoriais, que foram escritos sob sua estrita orientação. Retifica os editoriais à mão, com sua indecifrável caligrafia, que só poucos especialistas conseguem traduzir. Lida com as palavras com obsessão perfeccionista.
A sala tem um jogo do sofás onde ele recebe as visitas, às vezes por honra da casa, às vezes para cumprir o protocolo, e só raríssimas vezes pelo prazer de trocar idéias com alguém que disponha delas. A maioria dos políticos que visita o jornal, seja para almoçar, seja para conversar com jornalistas, quer acabar o périplo na sala do doutor Ruy. Ele nunca demonstrará fastio na frente da visita que concordar em receber. Só o fará a quem tiver a curiosidade de perguntar sua opinião sobre quem acabou de sair.
A jornada de trabalho do doutor Ruy, no entanto, começa na verdade por volta das 4 horas da manhã, quando ele vai para a banheira e lê os jornais do dia. Ainda de manhã, em casa, troca idéias com jornalistas que lhe prestam uma espécie de assessoria em assuntos específicos. Há os que o aconselham em assuntos políticos, ou jurídicos, ou de administração pública. Com isso, ele zela para que os editoriais sejam absolutamente corretos nos aspectos factual, técnico e conceitual. Quando sai da sua sala, entre 5 e meia e 6 horas da tarde, pode tomar um uísque, com muito gelo, na copa da diretoria. Segue então para um drinque no Clube Nacional, no bairro do Pacaembu, onde mora, ou direto para casa, já sabendo qual a manchete planejada para a edição do jornal no dia seguinte.
O doutor Ruy vê com impotente resignação as mudanças da indústria jornalística, a evolução dos novos meios eletrônicos, a perda progressiva de influência dos jornais de papel, a profissionalização das empresas, antes controladas por famílias, cada vez mais transformadas em apêndices de conglomerados financeiros. Ele gostava de chamar o jornal de “indústria do desperdício”, porque exige investimentos altíssimos, em recursos materiais e humanos, para produzir dez vezes mais conteúdo do que seria capaz de publicar. A produção abundante cria opções e, com alternativas, é mais fácil optar pela qualidade, ele defende, para desespero dos gestores, para quem abundância é custo. Sempre lutou, nas trincheiras a seu alcance, contra cortes indiscriminados nas redações, porque aos poucos eles minam a qualidade do jornal. Mas, como a divisão clássica da família entre jornalistas e gestores não lhe deixava espaço, nem paciência, nem habilidade para prestar muita atenção em questões de custos e de administração, as reduções cíclicas acabaram acontecendo sem que ele lhes dedicasse mais que algumas horas de aborrecimento e azedume.
No ano passado, ele me mandou uma reportagem do New York Times relatando uma crise vivida pelo Los Angeles Times. O editor do jornal era pressionado pelos novos proprietários a fazer um corte de custos e ameaçava pedir demissão, ou comandar uma greve, se fosse mesmo obrigado a demitir gente. Com sua Bic, o doutor Ruy escreveu, com humor cáustico, sobre o cabeçalho da matéria: ‘Por que você não segue o exemplo dele?” (O corte foi mesmo feito, o editor John S. Carroll deixou o jornal, e o Los Angeles Times continua com o prestígio em baixa.)
O doutor Ruy desconfia que a sua geração seja a última a liderar um jornal familiar – construído e cultuado como uma instituição moral, política e social – para virar uma empresa como as outras, que ou produz lucros compatíveis com a rentabilidade do mercado, ou se passa adiante, como uma pastelaria ou uma siderúrgica. Aos 81 anos, vendo os filhos sendo forçados a abandonar o projeto de condottieri de uma instituição para se transformar em meros acionistas, ele vê o futuro opaco. “No que vai dar isso, eu não sei. Não vejo outra maneira de fazer um jornal bem feito a não ser com a dedicação total e absoluta que só pode ter quem é proprietário”, disse ele numa entrevista à Eldorado, a rádio do grupo.
A despeito do ceticismo do doutor Ruy, a reforma feita no jornal conseguiu atingir o primeiro de seus objetivos, que era o de deter a lenta e irrefreável queda de circulação. Mas aquilo que os administradores chamam de management, principalmente na área de circulação e de assinaturas, continuou a ser uma dor de cabeça. O jornal mal é visto fora de São Paulo, nas capitais, e sobretudo em Brasília e no Rio de Janeiro. Sua circulação, com uma média de 250 000 exemplares durante a semana e 360 000 aos domingos, se concentra na área metropolitana de São Paulo, onde é líder. Isso aconteceu porque, desde o final dos anos 80, venceu a tese de que circulação é custo. O interior de São Paulo, mercado tradicional do jornal, foi praticamente abandonado.
Desde a célebre série de reportagens sobre as mordomias da República, coordenadas por Ricardo Kotscho, em 1976, o Estadão, seja por vocação (“não somos um jornal de escândalos ou de denúncias”, repetia o doutor Ruy), seja por excesso de zelo dos jornalistas, sempre tangenciou a cobertura de episódios malcheirosos e retumbantes da política nacional. Preferia repercutir denúncias de terceiros a dedicar-se a esforços de apuração própria. Por isso, houve espanto com a matéria que, em 13 de março do ano passado, com o depoimento do caseiro Francenildo dos Santos, mostrava a participação ativa do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, na vida agitada da famosa casa onde se instalou a chamada República de Ribeirão Preto, em Brasília.
A repórter Rosa Costa, da sucursal de Brasília, trabalhou na apuração da matéria durante uma semana e preparou o texto para ser publicado na segunda-feira, dia 13 de janeiro passado. A informação da existência da matéria, na qual o caseiro confirmava a presença de Palocci na casa, chegou até o ministro. Ele acionou seu assessor de imprensa, Marcelo Neto, para tentar diminuir o estrago que a publicação provocaria na sua imagem. O assessor falou com João Bosco Rabello, chefe da sucursal, e depois comigo, pedindo para “pensar bem” no problemaço que a publicação da matéria provocaria. Como o Estado defendia nos editoriais a política econômica de Palocci, a insinuação implícita de Marcelo Neto era que essa política poderia ser baleada junto com o ministro que a sustentava.
O próprio Palocci, no domingo, ligou para meu celular e para a casa do doutor Ruy, e pediu cautela com a matéria, que ele atribuía a uma armação de inimigos, que desejariam vê-lo longe da gestão da política econômica. Pedi a João Bosco que me mandasse a matéria. Nela havia algumas imperfeições, que pedi ao próprio Bosco que corrigisse, para não deixar margem a dúvidas. Combinamos que a matéria seria adiada por um dia, para que pudéssemos trabalhar melhor nela, e comuniquei a decisão ao doutor Ruy. Ele disse que queria ler a matéria na segunda-feira.
Palocci voltou a ligar, repetindo o pedido de cautela. Disse-lhe que a matéria não entraria em detalhes de sua vida pessoal, que trataríamos o assunto com a sobriedade de sempre, e que não deixaríamos de publicá-la, por considerá-la relevante. Falei-lhe também que estávamos à disposição para publicar a sua versão dos fatos. Ele repetiu a tese de que tudo era uma armação de seus inimigos e parou por aí. Levei a versão final ao patrão. Ele só perguntou se estava tudo bem apurado, se não havia detalhes sórdidos sobre a vida pessoal de alguém, e disse: “então tá“. A matéria saiu. Nos dias seguintes, o sigilo bancário do caseiro foi quebrado ilegalmente e Palocci caiu.
Foi esse, talvez, o último feito marcante da minha gestão à frente do Estado. As dificuldades se acumulavam. Em julho de 2005, criou-se uma crise por causa de uma viagem minha à Argentina. Fui convidado a participar de um seminário comemorativo dos 60 anos do jornal Clarín, no qual estariam também diretores do Le Monde, do El País, do Guardian e do Independent, além de outros representantes de jornais importantes. O jornal argentino, cortesmente, levou os convidados para o final da semana em El Calafate, na Patagônia argentina.
Num sábado à tarde, o doutor Ruy ligou para a redação, como costumava fazer nos finais de semana, e queria saber algum detalhe sobre a cobertura da crise do mensalão. O plantonista, um repórter especial, não soube responder satisfatoriamente à indagação. O chefe então perguntou onde eu estava, e o plantonista disse que eu tinha ido à Patagônia, a convite do Clarín. O doutor Ruy disse que não tinha cabimento o diretor de redação ir “passear na Patagônia” em plena crise política e desligou o telefone, deixando o repórter atônito.
Quando voltei, Flávio Pinheiro me relatou o episódio. Junto com ele e os editores executivos, relatei o caso ao presidente do Conselho, Roberto Mesquita. Disse-lhe que o episódio representava uma quebra de confiança no comando da redação e na hierarquia do jornal. Não só porque o doutor Ruy se dirigira a um subordinado para reclamar, como pelo fato de que eu não tinha viajado a passeio, e sim a trabalho, para participar de um seminário importante, de um jornal importante, com jornalistas importantes, e que o final de semana na Patagônia era um gesto cortês dos anfitriões, que não havia sentido recusar. Roberto Mesquita transmitiu a reclamação ao tio que, como fazia com razoável freqüência, se retratou, pediu desculpas e disse que não era sua intenção ofender ninguém.
As dificuldades não vinham apenas da área editorial. Quando passa um pouco da metade do ano, é hora de começar a pensar no orçamento do ano seguinte. É a hora em que o conselho e os acionistas fixam as metas para o futuro exercício. A hora em que é preciso pensar em cortar custos, porque é preciso gerar resultado suficiente para cumprir os compromissos da dívida e pagar dividendos aos acionistas. Para evitar mais uma lista linear de cortes, a diretoria executiva, com a ajuda engenhosa do gerente de recursos humanos, apresentou um plano. Ele previa um rejuvenescimento do quadro de funcionários da empresa, por meio de aposentadorias incentivadas, e uma redução na média salarial, principalmente da área jornalística. Resolvi aproveitar a oportunidade.
A idéia, gestada com Célio Virgínio e Elói Gertel, era, depois de sua implantação do plano, dar por encerrada a nossa trajetória na empresa. Missão cumprida, estresse, um pouco de fadiga de materiais de parte a parte. Célio e Elói, com a minha concordância, montaram uma proposta de negociação de saída com uma espécie de prêmio por serviços prestados. A empresa aceitou a proposta, mas não fixou uma data para a nossa saída.
A vida na redação seguiu normalmente. Vinha a eleição presidencial, com uma campanha sem sobressaltos nem grandes emoções. Na fase da discussão de programas entre os candidatos principais, o presidente Lula e Geraldo Alckmin, o tédio e a falta de propostas aguçaram o senso de humor do doutor Ruy, que se saiu com essa boutade: “A segunda pior coisa que pode acontecer ao Brasil é o Lula ganhar no primeiro turno e sair muito forte; e a primeira pior coisa que pode acontecer é o Alckmin ganhar”. A frase, ainda que dita em tom de piada, pode parecer inverossímil para o tropel militante que freqüenta a constelação de blogs da internet, tecendo fabulosas teorias conspiratórias sobre a “grande mídia golpista e neoliberal” contra o Lula.
Esse tropel é o mesmo que acredita que os jornais e a rede Globo esconderam o acidente do vôo 1907, da Gol, para dar mais destaque à foto da pilha de dinheiro encontrada com os “aloprados” que queriam comprar um dossiê contra José Serra e foram presos pela Polícia Federal. Lembro bem daquela noite. Estava na mesa de edição da primeira página quando, faltando alguns minutos para o primeiro fechamento, das 20 horas e 30 minutos, alguém disse que um avião tinha sumido lá pela Amazônia. A primeira edição foi fechada com o avião sumido, sem confirmação da queda. A segunda foi fechada com a confirmação da queda e do número de passageiros, mas sem mais informações, em função da distância e da inexistência de uma cobertura local. Os principais jornais usaram a mesma fórmula para a primeira página: um quadro no alto, com as informações disponíveis sobre o acidente, e a manchete tradicional, com o noticiário sobre a compra do dossiê e a foto do dinheiro, vazada por um delegado da Polícia Federal. Mais tarde, o tropel tentou ideologizar a escolha dos jornais e também o fato de que o Jornal Nacional teria dado mais destaque ao dossiê que ao acidente. Só a ignorância sobre o processo de produção jornalística, aliada à má-fé ideológica, poderia produzir esse tipo de fantasia política.
No intervalo entre o primeiro e o segundo turnos da eleição, soube que a sucessão minha e do Elói já estavam decididas – sem a delicadeza de uma comunicação formal ou uma consulta, ou de um convite para participar de uma transição, que seria tranqüila e sem traumas. Soube também, por vias indiretas, que o escolhido para me suceder foi Ricardo Gandour, um profissional sério, jovial e de boa reputação, com quem havia convivido no congresso da WAN em Istambul, e a quem gostaria de ter recebido com a cordialidade merecida. O processo de escolha foi entregue pelos Mesquita ao professor Carlos Alberto Di Franco, que dá aulas e escreve sobre ética no jornalismo, um inabalável cavalheiro que representa no Brasil a Universidade de Navarra, pertencente à prelazia da Opus Dei. Sempre tive com ele excelentes relações, até por que fui eu quem o indicou para chefiar uma espécie informal de conselho editorial, criado para analisar o conteúdo do jornal em reuniões semanais. Dias antes do anúncio do sucessor, tentei conversar com o professor Di Franco por telefone, para tratar de assuntos de interesse comum. Contrariando seus hábitos, o professor não atendeu à ligação nem me deu retorno.
Na nossa saída, eu e Elói assinamos um comunicado, dirigido ao público interno, enumerando os fatos mais significativos de nossa gestão, desde a reforma do jornal, passando pelo reequilíbrio financeiro. Em 2005 e 2006, a empresa registrou os melhores números de sua história, gerando caixa suficiente para honrar o serviço da dívida e distribuir dividendos aos acionistas, além de pagar, pela primeira vez na sua existência, salários extras aos profissionais, a título de participação nos resultados. De quebra, o jornal ganhou 36 prêmios.
No dia seguinte ao da minha saída, encontrei uma mensagem do doutor Ruy, com palavras simpáticas, na caixa postal do meu celular.
Como era uma gravação, não pude responder ao vivo. Mas eu queria dizer a ele que espero que todo aquele trabalho não tenha sido apenas para que os Bancroft paulistanos, os Mesquita, possam se instalar com conforto na janela do Estadão, aguardando ansiosos a chegada de um senhor Murdoch e da murdoquização.
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