Vive num delírio de ternura falsa e indiferença bruta, de sedução e batatada, de beijinho e choque elétrico
Como nunca fui de assistir a novela, não tenho muito a dizer sobre a atuação profissional de Regina Duarte. E também não quero ser repetitivo ao criticar os pontos mais desastrosos de sua entrevista à CNN.
A questão, que me causa tanto pena quanto repulsa, vai além do conteúdo lamentável de suas declarações.
A entrevista sugere a presença de um distúrbio de personalidade —ou, se quisermos, um distúrbio de falta de personalidade.
Acho que isso acontece com algumas pessoas famosas.
Penso em Marilyn Monroe, talvez Madonna, não sei se Pelé. São casos em que uma imagem pública é tão forte, e tão invariável, que o indivíduo já não sabe mais quem é realmente.
Sou do tempo em que Regina Duarte era a “namoradinha do Brasil”. Esse tempo passou, é claro. Mas ela não se desvencilhou da própria imagem.
Vejo sua entrevista na íntegra.
O momento do “chilique” talvez seja o mais suportável. O que vem antes me incomoda mais.
São os momentos de doçura; a cabecinha que se inclina para o lado; os suspirozinhos de sinceridade; os sorrisos de puro amor.
São os momentos de doçura; a cabecinha que se inclina para o lado; os suspirozinhos de sinceridade; os sorrisos de puro amor.
É um negócio enjoativo e aterrorizante ao mesmo tempo.
Uma das primeiras perguntas foi sobre as desavenças de Regina com um olavista do governo.
Ela faz uma cara de incompreensão, de dúvida, um pouco como se acordasse de um pesadelo e perguntasse “onde estou?”.
Que farsa. Ela olha para algum lugar vazio nas primeiras filas da plateia, fingindo incredulidade. As coisas são tão distorcidas, diz, que ela já “nem sabe” se o fulano é seu inimigo. Tudo se perde numa fumaça de incompreensão.
É o papel da menininha, pega no meio de alguma fofoca. Nossa, gente… juuuro que eu não sei do que vocês estão falando...
E sobre Olavo de Carvalho, o que Regina tem a dizer?
Leu dois livros dele. Respeita-o. Mas, quando foi ler o terceiro, ai, geeente… Tinha muito palavrão. Muito “nome feio”.
“Não gosto”. Ah, não gosto mesmo. Fico de mal.
“Nome feio”: a terminologia, mais uma vez, é a da aluninha de escola. Regina Duarte se infantiliza quase que por automatismo.
Na dúvida, diante de qualquer ameaça, sua saída é piscar os olhinhos e mostrar que criança adorável ela é.
Ela insiste na regressividade, na má-fé, na clássica aposta noveleira —o público é burro e gosta da gente.
A cartada do Amor e da Verdade Pessoal aparece nas perguntas mais difíceis.
Por que a Secretaria da Cultura não manifestou pesar diante da morte de Aldir Blanc, Moraes Moreira, Flávio Migliaccio?
Regina diz que preferiu escrever para as famílias. “Diretamente”, orgulha-se.
Tudo fica “pessoal”. Antes de ser alguém com um cargo no governo, ela é “a Regina”, essa moça simples e adorável que todos conhecem.
Na hora do “chilique”, quando Maitê Proença aparece numa gravação cobrando medidas do governo, Regina diz que a colega deveria ter ligado, falado com ela pessoalmente.
É como se a política, o Estado, o cargo público não existissem. Da carta de pêsames ao problema dos artistas na miséria, tudo se resolveria pela intimidade melosa do contato pessoal.
Estamos na esfera da telenovela, evidentemente: o mundo privado das birras, dos beijos, dos beicinhos e reconciliações se transfere obscenamente ao público.
A Regina secretária é a mesma Regina que nós amamos, que é a Regina das novelas; e a própria Regina já não sabe mais quem é.
Vem então a pergunta sobre os mortos e os torturados da ditadura.
Ela não vai se preocupar, por várias razões. Uma é “filosófica”: morte e vida sempre andam lado a lado.
Outra é “histórica”: Hitler e Stálin mataram e torturaram. Seria bom perguntar se ela participaria de um governo de admiradores de Hitler.
Outra é “histórica”: Hitler e Stálin mataram e torturaram. Seria bom perguntar se ela participaria de um governo de admiradores de Hitler.
A terceira razão é clássica: “Não vamos olhar para trás”.
Eis a Regina que afirma a vida, a alegria e o amor. Para insistir no ponto, e numa espécie de sedução desesperada com o repórter, ela começa a cantar a marchinha do “Pra frente, Brasil, salve a seleção”.
Sorri: “Não era bom quando a gente cantava isso?”.
Sorri: “Não era bom quando a gente cantava isso?”.
Puxa, pensei, mas ela justamente dizia que não queria olhar para o retrovisor… Deu uma vasta trombada, é claro.
Ela quer recuperar, doidamente, a época em que “Regina Duarte” era uma unanimidade nacional. Vive num delírio de ternura falsa e indiferença bruta, de sedução e batatada, de beijinho e choque elétrico, sem nem saber de fato quem é. Não quer saber; não aguentaria se soubesse.
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