quinta-feira, 14 de maio de 2020

RENATO JANINE RIBEIRO A civilização exige respeito pela morte, FSP


Cenas de gente simulando defuntos e caixões são chocantes



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Como muitos brasileiros, fiquei chocado com a cena de um restaurante em Gramado (RS), curiosamente chamado “Divino”, no qual um cliente e três garçons se exibiram dançando o meme do caixão, conforme noticiou a Folha na terça-feira (12). Também impressionou ver, nas manifestações pró-governo, gente simulando defuntos para brincar com a morte, obviamente, alheia. E jamais imaginei que uma atriz famosa, hoje secretária nacional de Cultura, se recusaria a prantear os colegas artistas mortos e, pensando só em si mesma, diria que está “leve, viva!”.
Por que este choque ante o prazer (ou descaso) com a morte do outro, choque que tantos sentimos e felizmente, mostrando que ainda há sentimentos de humanidade entre nós, despertam reações de repúdio? (Um guia de viagem prontamente retirou o estabelecimento de Gramado (RS) de seu site e acrescentou: “Pedimos desculpas aos leitores por já termos indicado este restaurante algum dia”).

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O professor e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro - Mathilde Missioneiro - 4.fev.20/Folhapress
Como muitas pessoas, aprendi, adolescente, que não se fala mal de quem acabou de morrer —mesmo das pessoas detestadas ou detestáveis. Passados os anos, até podemos criticá-las. Mas a hora da morte exige respeito aos familiares do falecido e ao próprio mistério do fim da vida. Aí está – ou estava?— um traço essencial da boa educação: respeitar a morte. Esse respeito sinaliza que nossas divisões e mesmo ódios precisam ter limites. É isso, a civilização. Sabe-se que, na Primeira Guerra Mundial, em vários fronts da Europa tropas inimigas celebraram o Natal de 1914 juntas! Os soldados estavam se matando, mas, no dia sagrado do cristianismo, se abraçaram. (Talvez seja esse o verdadeiro significado de “Deus acima de tudo”: a paz, algum tipo de paz, de amor).
Ou pensemos no Brasil: Getúlio Vargas, o mais impopular dos brasileiros em 23 de agosto de 1954, no dia seguinte, após sua morte, era o mais querido de nossos compatriotas. E isso apesar de ter se suicidado, o que, para o catolicismo, então a religião de mais de 95% dos brasileiros, constitui pecado mortal.
Podemos também lembrar a ficção: tomemos Don Juan, o conquistador frio que coleciona mulheres, seduzindo-as e abandonando-as. Ele não teve existência real, é um personagem da literatura. Pois de seu criador, Tirso de Molina (1579-1648), até Mozart (1756-1791), que fez a ópera mais célebre sobre ele, Don Juan é condenado ao inferno, mas não devido a suas aventuras amorosas —e sim porque zombou de um morto, o Comendador, convidando-o, zombeteiramente, para um jantar.
Lamentavelmente, esse desrespeito não deveria nos espantar. Afinal, temos um presidente que, em 1999, lastimava que a ditadura não tivesse matado 30 mil brasileiros (“Se vão morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente”, disse, na ocasião) e no ano passado afirmava friamente, a propósito do contestável excludente de ilicitude, que “os caras vão morrer na rua igual barata, pô”.
Até o século 18, a morte dos outros podia ser um espetáculo prazeroso. As execuções eram públicas, ofereciam um entretenimento barato e frequente, às vezes incrementado por tormentos demorados. Mas, com a democracia e os direitos humanos, o prazer ante a morte alheia se tornou obsceno. Rir do sofrimento das pessoas é hoje marca segura de desumanidade.
A banalização do mal, mostrou Hannah Arendt em seu livro sobre o carrasco nazista Eichmann, é uma segura porta de entrada para a destruição do humano em nós. Precisamos assegurar nossas conquistas civilizatórias. Uma das principais é o respeito pela dor e pela morte alheias.
Renato Janine Ribeiro
Ex-ministro da Educação (2015, governo Dilma), professor de filosofia (USP e Unifesp) e autor de 'A Pátria Educadora em Colapso' (ed. Três Estrelas)

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