Cenas de gente simulando defuntos e caixões são chocantes
Como muitos brasileiros, fiquei chocado com a cena de um restaurante em Gramado (RS), curiosamente chamado “Divino”, no qual um cliente e três garçons se exibiram dançando o meme do caixão, conforme noticiou a Folha na terça-feira (12). Também impressionou ver, nas manifestações pró-governo, gente simulando defuntos para brincar com a morte, obviamente, alheia. E jamais imaginei que uma atriz famosa, hoje secretária nacional de Cultura, se recusaria a prantear os colegas artistas mortos e, pensando só em si mesma, diria que está “leve, viva!”.
Por que este choque ante o prazer (ou descaso) com a morte do outro, choque que tantos sentimos e felizmente, mostrando que ainda há sentimentos de humanidade entre nós, despertam reações de repúdio? (Um guia de viagem prontamente retirou o estabelecimento de Gramado (RS) de seu site e acrescentou: “Pedimos desculpas aos leitores por já termos indicado este restaurante algum dia”).
Como muitas pessoas, aprendi, adolescente, que não se fala mal de quem acabou de morrer —mesmo das pessoas detestadas ou detestáveis. Passados os anos, até podemos criticá-las. Mas a hora da morte exige respeito aos familiares do falecido e ao próprio mistério do fim da vida. Aí está – ou estava?— um traço essencial da boa educação: respeitar a morte. Esse respeito sinaliza que nossas divisões e mesmo ódios precisam ter limites. É isso, a civilização. Sabe-se que, na Primeira Guerra Mundial, em vários fronts da Europa tropas inimigas celebraram o Natal de 1914 juntas! Os soldados estavam se matando, mas, no dia sagrado do cristianismo, se abraçaram. (Talvez seja esse o verdadeiro significado de “Deus acima de tudo”: a paz, algum tipo de paz, de amor).
Ou pensemos no Brasil: Getúlio Vargas, o mais impopular dos brasileiros em 23 de agosto de 1954, no dia seguinte, após sua morte, era o mais querido de nossos compatriotas. E isso apesar de ter se suicidado, o que, para o catolicismo, então a religião de mais de 95% dos brasileiros, constitui pecado mortal.
Podemos também lembrar a ficção: tomemos Don Juan, o conquistador frio que coleciona mulheres, seduzindo-as e abandonando-as. Ele não teve existência real, é um personagem da literatura. Pois de seu criador, Tirso de Molina (1579-1648), até Mozart (1756-1791), que fez a ópera mais célebre sobre ele, Don Juan é condenado ao inferno, mas não devido a suas aventuras amorosas —e sim porque zombou de um morto, o Comendador, convidando-o, zombeteiramente, para um jantar.
Lamentavelmente, esse desrespeito não deveria nos espantar. Afinal, temos um presidente que, em 1999, lastimava que a ditadura não tivesse matado 30 mil brasileiros (“Se vão morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente”, disse, na ocasião) e no ano passado afirmava friamente, a propósito do contestável excludente de ilicitude, que “os caras vão morrer na rua igual barata, pô”.
Até o século 18, a morte dos outros podia ser um espetáculo prazeroso. As execuções eram públicas, ofereciam um entretenimento barato e frequente, às vezes incrementado por tormentos demorados. Mas, com a democracia e os direitos humanos, o prazer ante a morte alheia se tornou obsceno. Rir do sofrimento das pessoas é hoje marca segura de desumanidade.
A banalização do mal, mostrou Hannah Arendt em seu livro sobre o carrasco nazista Eichmann, é uma segura porta de entrada para a destruição do humano em nós. Precisamos assegurar nossas conquistas civilizatórias. Uma das principais é o respeito pela dor e pela morte alheias.
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