segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Haddad precisa mudar para evitar catástrofe, escreve Ruy Fausto, Ilustríssima. FSP




Autor critica petistas por decisões estratégicas que podem facilitar vitória de Bolsonaro


    Ruy Fausto
    [RESUMO] Autor, um dos primeiros a defender Fernando Haddad como candidato do PT, cobra mudanças na estratégia da esquerda e critica petistas por decisões equivocadas e falta de autocrítica, falhas que podem facilitar vitória de Bolsonaro.

    Escrevo na manhã de terça-feira, 2 de outubro. Os resultados da última pesquisa do Ibope indicam um progresso considerável da candidatura de Jair Bolsonaro (PSL), que vai a 31% [32% na pesquisa divulgada nesta quarta, 3], e uma estagnação dos votos do seu provável adversário de esquerda no segundo turno, Fernando Haddad. Sem dúvida, ainda teremos muitas peripécias, mas uma coisa é segura: o candidato neofascista Bolsonaro pode ganhar, e se não ganhar terá certamente uma votação muito expressiva.
    Alguns dirão que agora é hora de cerrar fileiras em torno de Haddad, e evitar as discussões no interior da esquerda. Sem dúvida, é preciso evitar um tom excessivamente agressivo nessas discussões, mas o debate não é somente válido mas —estou convencido— essencial, porque o que o candidato de esquerda dirá e fará nos próximos dias, antes e depois do primeiro turno, é de importância decisiva para o desfecho do processo. Antecipando o argumento: ou Haddad modifica em alguma medida o tom da sua campanha, ou corremos o risco de caminhar para uma catástrofe.
    Permito-me dar um certo recuo a essas reflexões. Na minha opinião, que exprimi em várias ocasiões através de artigos e entrevistas, a melhor política para a esquerda não teria sido o lançamento da candidatura Lula, mas, a meu ver, a apresentação desde cedo de um candidato de renovação, e Fernando Haddad, como eu disse também há muito tempo, era o melhor dos nomes. 
    Isso não significaria abandonar Lula às feras, mas lutar pela sua liberdade e pela revisão do processo, o que não implicava entretanto que ele fosse candidato.
    A candidatura Lula tinha, certo, a vantagem de mobilizar um eleitorado que se identificava muito com a figura do ex-presidente, mas levava ao mesmo tempo um, ou talvez dois, inconvenientes. Se o apoio a Lula atingia mais de um terço do eleitorado, a sua rejeição era mais ou menos da mesma ordem. E, de um modo mais geral, insistir no nome de Lula era dar ênfase à continuidade e não à renovação. Caso, entretanto, o PT não abrisse mão da candidatura Lula, o que de fato aconteceu, seria o caso de logo lançar um nome alternativo. 
    Creio que fui um dos primeiros a lançar a ideia de uma candidatura de Haddad a vice-presidente —o que fiz numa entrevista a uma rádio da Bahia—, mas então seria preciso enveredar o mais cedo possível por esse caminho, apresentando desde logo o candidato, evitando prolongar demasiado a expectativa da substituição de nomes, e, sobretudo, insistindo na autonomia política e pessoal do candidato. E, num plano mais geral: como muitos disseram desde há muito, o PT teria de se dispor a fazer uma autocrítica.
    De fato, se o processo do apartamento do Guarujá é mais do que duvidoso, se o sentido político das intervenções do juiz Moro é evidente e escandaloso, não é menos verdade que houve sim corrupção durante os governos do PT. Houve muita. 
    O que não quer dizer que não tivesse havido também sob outros governos, mas essa circunstância não altera a situação. Pelo menos no sentido de que o PT tem de reconhecer que, durante o período em que governou, houve uma lamentável promiscuidade entre o poder econômico (parte dele) e o poder político, o que é grave tanto do ponto de vista dos princípios como no que se refere aos interesses pragmáticos da esquerda, no plano eleitoral. 
    Só reconhecendo o que se passou de ruim no seu governo (o que não elimina o que ele fez de bom), poderá o PT e —o que nos interessa— a esquerda, enfrentar com sucesso os seus adversários de direita e de extrema direita. Sim, porque a chamada opinião pública é muito sensível ao problema da corrupção.
    E não se diga que tudo se reduz ao impacto negativo da mídia: é um progresso que não se aceite mais, de barato, a política do “rouba, mas faz”. Sem uma “explicação” desse ponto, o partido hegemônico (ou ex-hegemônico) da esquerda, e a própria esquerda (que é o que nos interessa) não poderá chegar a um resultado plenamente favorável no embate eleitoral.
    Além da questão da corrupção, a direita e a extrema direita batem muito no tema da recusa dos governos autoritários. Pensar que um governo Haddad involuiria para uma espécie de poder venezuelano é puro delírio, se pensarmos nos compromissos do candidato e na sua orientação, que sempre foi claramente democrática. Entretanto, declarações pró-Venezuela por parte de autoridades do partido, que foram reiteradas ainda há alguns dias, oferecem à direita e à extrema direita uma munição formidável.
    Quem hoje simpatiza com Maduro, Ortega ou Chávez? Como se não bastassem essas tomadas de posição desastrosas, um ex-dirigente bem conhecido (embora, é verdade, no contexto da discussão de uma hipótese), fala na certeza de que o partido “virá a tomar o poder”. Diante de declarações desse tipo —que ele tentou corrigir, porém o mal já está feito— a gente se pergunta: que pretende essa gente com esse tipo de comportamento?
    Na realidade, temos a impressão de que os dirigentes do partido estão muito mais preocupados com o futuro do partido do que com o futuro da esquerda ou do país. Eles se dispõem a aceitar o risco de um governo neofascista, cujas consequências são impossíveis de subestimar nas condições atuais. Tem-se a impressão que eles lidam com o candidato Bolsonaro como um adversário qualquer, não muito diferente dos outros. Erro grave.
    A vitória de Bolsonaro iniciaria um período de trevas para a esquerda, para os trabalhadores e intelectuais, e para todo o país. É preciso enfrentar o problema com responsabilidade, com a consciência de que há coisas mais importantes do que o destino político dos dirigentes de um partido, quaisquer que sejam os méritos deste (ele os teve, mas também carregou consigo deformações políticas graves).
    E agora? Se Haddad chegar de fato ao segundo turno, como parece que chegará, seria preciso:
    1) Alterar o tom e o teor da campanha. Mesmo tardiamente, seria preciso admitir que houve muitos erros (não “vagos” erros, como ele está  pronto a admitir) durante os governos Lula e Dilma. Haddad deveria se declarar herdeiro do PT naquilo que ele teve ou tem de bom, mas não no que tem de ruim. O discurso “cimento armado” que impuseram a Haddad não serve, não.
    2) É preciso constituir uma ampla frente única, em primeiro lugar com Ciro Gomes. (A propósito, se o PT tivesse topado lançar uma chapa Ciro/Haddad, isso teria sido possível, e a dupla provavelmente venceria, embora se possa discutir se esse teria sido o melhor caminho.) Há que corrigir as gafes do PT em relação a Ciro: a campanha pela neutralização da sua candidatura, as declarações de Gleisi a seu respeito etc. O apoio de Ciro é essencial à vitória. Além dele, há que tentar o apoio de Marina, difícil nas circunstâncias atuais, mas não impossível. Uma ala do PSDB, a cardosista, parece disposta a votar em Haddad no segundo turno. Não se deve recusar esse apoio. Soma-se a isso, evidentemente, o apoio das forças de esquerda, em geral, a começar pelo PSOL e Boulos.
    3) Haddad deveria desconstruir a teoria absurda de que ele é “candidato dos extremos” (e nisso comparável a Bolsonaro!). Deixar claro quais são as suas simpatias em matéria de política internacional, o que aliás ele já fez, mas insuficientemente, em algumas das entrevistas que deu ultimamente.
    4) Sem desmerecer o que houve de positivo na trajetória de Lula —a última decisão do ex-presidente, não esqueçamos, foi a de se empenhar, contra o partido, na candidatura de Haddad—, o candidato tem de se mostrar independente e autônomo e deixar claro que a teoria do “pau mandado” e do “poste” é completamente falsa, apesar das aparências (e também do esforço de alguns, dentro da esquerda, para que isso seja verdade).
    5) É preciso dar um peso específico, no final da campanha, à luta contra a grande criminalidade, essa espécie de Estado dentro do Estado, que existe no Brasil. Tratar desse tema com seriedade é essencial.
    6) Nos ataques a Bolsonaro (finalmente se lembraram disso!), sem abandonar o tema do antifascismo (lembrando a ditadura de 1964), é preciso insistir no horror econômico. Que os eventuais eleitores pobres de Bolsonaro saibam desde já o que um governo do triste capitão representaria: ameaças ao salário mínimo, ao Bolsa Família, ao 13º salário, aos direitos trabalhistas (ver a famigerada carteira de trabalho verde e amarela!).
    Uma atitude desse tipo não representaria nenhuma “virada à direita” por parte do candidato. Nem mesmo maiores concessões ao centro. Declarar-se alérgico a Maduro e Ortega não significa abandonar posições de esquerda. Pelo contrário, é uma exigência do melhor pensamento e da melhor política de esquerda. 
    A bandeira da esquerda não é só de igualdade, é também de liberdade, sem o que algumas das figuras mais sinistras da política do século 20 teriam sido representativas do pensamento progressista. Nesse plano, a esquerda brasileira ainda tem um longo caminho a percorrer. Mas é urgente que dê mais uns passos. 
    A mesma coisa no que toca à recusa do patrimonialismo. Só uma sociologia sem rigor e sem responsabilidade acha que o problema é artificial ou não tem importância.
    Evidentemente, é preciso juntar forças dentro da esquerda, e por isso não me demoro demais na crítica à política petista. Mas é evidente que, por trás da aparente e tão decantada “habilidade” de que teria dado prova a direção do partido, sua trajetória nesse ano foi eivada de erros. Em outra ocasião, voltarei à história da candidatura Haddad (a meu ver, o melhor candidato que o partido poderia apresentar) e a atitude que teve o PT em relação a ela. 
    De qualquer modo, se for para o segundo turno, Haddad não será mais o candidato do PT, mas de toda a esquerda. Mais do que isso: do conjunto da democracia brasileira, porque é a democracia que está ameaçada.
    Nada disso nos deve fazer esquecer a atitude altamente parcial da mídia (isso foi dito muitas vezes, mas agora, pelo menos, é uma evidência): a grande manifestação contra Bolsonaro mereceu uma atenção mínima por parte da TV. Como observou um jornalista, deu-se muito mais tempo à ex-mulher de Bolsonaro, que tentava “apagar” as declarações muito duras que havia feito contra ele. E não se tentou sequer calcular o número de manifestantes. 
    A mesma coisa, com a ofensiva de Moro contra Lula. Quando o locutor se refere à acusação de que é objeto alguém que atualmente trabalha com Haddad, mostra-se não só o personagem, mas também Haddad em campanha... A parcialidade do noticiário, para dizer pouco, é evidente. 
    E, voltando às manifestações: celebra-se o espírito democrático do povo brasileiro, que foi à rua apoiar ou rejeitar um candidato, sem que se registrassem incidentes violentos. Dupla falsificação: por um lado, a magnitude das manifestações anti-Bolsonaro foi esmagadoramente maior do que a das que se fizeram a favor dele. Por outro lado, se o equilíbrio entre elas fosse verdadeiro, seria uma estranha prova de democracia: mil pessoas a favor do hitlerzinho e mil contra...
    Uma palavra final sobre o método desse texto, ou antes sobre a atitude geral diante da política que tem aquele que o redigiu. Há quem diga que não importa argumentar, que o combate político se faz no plano dos afetos (que teriam de ser “desconstruídos”) e não no da discussão racional.
    Quando os que defendem essa postura falam da possibilidade de um golpe militar puro e simples, insistindo no papel que teria nesse projeto uma efetivação plena de uma política econômica neoliberal no país, eu não deixo de lhes dar razão. Mas discordo de todo o resto. 
    A ideia de que a esquerda foi racional demais e que é preciso introduzir uma dose maior de irracionalismo é completamente equivocada. A realidade é quase o inverso: o populismo e o patrimonialismo apelam essencialmente para os afetos. O que mostra aliás que o apelo aos afetos não tem nada de novo, como pretendem alguns, é velho como o mundo: foi o cerne da política populista que data das primeiras décadas do século 20. Além de ser praticado por certa extrema esquerda europeia (Georges Sorel), que não por acaso acabou aderindo ao fascismo.
    A política não se faz com argumentos racionais? Sem dúvida não só com argumentos racionais, mas é preciso partir daí, e, mais ainda, acho que é o que está faltando. Isso não exclui a maior flexibilidade tática no plano prático. 
    Não se derrota o adversário com argumentos racionais? Mas os argumentos não se dirigem aos adversários. Eles se dirigem a nós mesmos, à nossa gente, que hesita, se confunde, pode se perder. E se dirige também, e sobretudo, a uma enorme massa que não sabe bem para onde vai, e tem necessidade de discussão e esclarecimento. 
    Insistir no caráter negativo da discussão racional, em proveito da “alimentação” em bons afetos e da desconstrução dos maus, implica, por exemplo (apesar das intenções subjetivas de quem defende essas teses), em perder de vista pontos essenciais, como precisamente o da necessidade de autocrítica e do posicionamento inquestionável em favor da democracia.
    A política dos afetos parece ser a mais concreta. Mas não é. É a mais abstrata. Ela faz abstração do que é hoje a esquerda no mundo e no Brasil, faz abstração da sua história. Propõe o enfrentamento e a radicalização: se a esquerda reagir, sem fazer concessões legalistas —dizem eles— ela vencerá... Nada mais ambíguo, simplista e perigoso. 
    Que quer dizer ser radical? Para dar um exemplo fora do quadro brasileiro, seria recomendável a perspectiva e o estilo de Jean-Luc Mélenchon na França, que não hesita em elogiar o castrismo, o poder chinês, e de vez em quando até Putin? 
    Os mesmos propõem a ruptura da legalidade, sob a alegação de que as leis são feitas pelas classes dominantes (há pelo menos muita ambiguidade em certos discursos, quanto à atitude diante da legalidade); mas se há bastante verdade na tese de que as leis são feitas pelos dominantes, ela não justifica entretanto o caminho da violência (que caminho poderia ser o da ruptura da legalidade?), uma ilusão enorme pela qual já pagamos muito caro.
    Em resumo, o que está em questão não é a necessidade de um enfrentamento “radical”. O problema é o de definir esse radicalismo. Expresso na linguagem pseudoconcreta das “paixões”, banhada num anti-intelectualismo não muito distante do populismo (o que, paradoxalmente, atrai muitos intelectuais), a politica dos “afetos” pode levar a resultados desastrosos.
    Saber o que somos, que vitórias obtivemos (mas também que derrotas sofremos, e que pseudoderrotas), definir racionalmente os termos de uma nova politica para a esquerda são exigências que nenhum imediatismo política e teoricamente tosco, apesar das aparências, poderá por em xeque. E essas exigências não são só teóricas, mas também imediatamente pragmáticas. 
    Só se as satisfizermos, no tempo escasso que nos resta, será possível ir ao segundo turno, não com a certeza —que não há certezas em política—, mas com a convicção realista de que a extrema direita será derrotada.
    É o futuro da esquerda e do país que está ameaçado. Nada menos do que isso. Ainda há tempo para evitar a catástrofe, mas sem muita lucidez não conseguiremos evitá-la.

    Ruy Fausto é professor emérito do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e autor de “Caminhos da Esquerda” (Companhia das Letras).

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