Há um conflito entre a tosca visão econômica do candidato e o presumido viés liberal dos assessores
“Suponha que você tenha um galinheiro no fundo da tua casa e viva dele. Você vende todo dia ovos e algumas galinhas. Quando você vende aquilo e privatiza, você não vai ter a garantia no final de semana de comer um ovo cozido. Nós vamos deixar a energia na mão de terceiros? (...) Você vai deixar a nossa energia na mão do chinês?”
Foi com base nesse raciocínio sofisticado que Jair Bolsonaro negou a possibilidade de privatizar a geração de energia elétrica no país. Afinal de contas, “o chinês” pode vir aqui e mandar todas as nossas hidrelétricas para a China, presumivelmente com as respectivas bacias hidrográficas. Ou, sei lá, vender toda a nossa energia elétrica na Ásia, atravessando mares tempestuosos, em vez de atender o consumidor nacional.
O candidato diz que evoluiu de suas posições anteriores, mas a declaração acima ecoa a mesma visão expressa em 1999, quando afirmou que “barbaridade é privatizar a Vale do Rio Doce, é privatizar telecomunicações, é entregar nossas reservas petrolíferas para o capital externo”.
De lá para cá a Vale saltou de patamar, tornando-se uma competidora global. No campo das telecomunicações, o progresso foi igualmente notável. Antes das privatizações, telefones eram para poucos, tão escassos que linhas telefônicas faziam parte das declarações de bens e direitos para fins de Imposto de Renda. Hoje, em contraste, qualquer pessoa tem acesso a serviços impensáveis há meros 20 anos.
Não há motivo para crer que seria diferente no caso da energia, independentemente da nacionalidade do eventual comprador. No frigir dos ovos (perdão), quem investir no setor não terá apenas o objetivo de ganhar o máximo de dinheiro possível, motivação que esteve por trás da melhora de desempenho nos setores privatizados (bem como, com imenso sucesso, naqueles que nasceram privados), mas também terá que se submeter às leis e às normas locais.
Há um conflito óbvio entre a tosca visão econômica do candidato e o presumido viés liberal de sua equipe de assessores na área, cuja solução é bem menos fácil do que muitos parecem acreditar. Se o assessor tem carta branca para formular propostas, mas só pode “bater o martelo” depois de falar com o chefe, a noção de que o domador segurará o urso se torna ainda mais complicada do que soava uns meses atrás.
A verdade é que o mercado financeiro se ilude com a promessa de um programa econômico liberal (ou talvez apenas se faça de bobo enquanto for conveniente) contra evidências crescentes sobre a dificuldade política de avançar nessa frente.
Repisando um tema que me é particularmente caro, a discussão nas eleições passou longe das questões de fundo, mais recentemente se concentrando nos esforços de desconstrução dos adversários.
A verdade é que nenhum dos candidatos deixa claro para a população o que pretende fazer do ponto de vista de reformas, como fica aparente no contorcionismo do provável ministro da Casa Civil num governo Bolsonaro, Onyx Lorenzoni, sobre a vexatória questão do déficit da Previdência, para não falar do duplo mortal carpado que o PT tenta aplicar para se distanciar do programa proposto no primeiro turno, coordenado, vejam só, pelo próprio Fernando Haddad.
Vai ser difícil dar a real quando a bomba explodir. Parece que ninguém aprendeu com o fiasco formidável de Dilma Rousseff: nem os candidatos e certamente não os eleitores.
Alexandre Schwartsman
Consultor, ex-diretor do Banco Central (2003-2006). É doutor pela Universidade da Califórnia em
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