sexta-feira, 26 de outubro de 2018

De tão bajuladora dos militares, minha escola envergonharia até o Geisel. FSP

Tínhamos 'figurinhas' dos heróis da nação e cantávamos o 'Hino', com letra maiúscula

    Cresci na Upper Aclimação, também conhecida como SoCam – South of Cambuci. Uma zona anônima na quádrupla fronteira de Ipiranga, Vila Mariana, Aclimação e Cambuci, ao longo da avenida Lins de Vasconcelos.
    Minha casa ficava a dez minutos de ônibus da avenida Paulista. Na virada dos 1970 para os 80, a região era tão cosmopolita quanto a fronteira agrícola mais remota do Mato Grosso.
    Mas meus pais capricharam. Puseram-me numa escola que envergonharia o vetusto Ernesto Geisel, de tão bajuladora que era do regime militar.
    A professora de estudos sociais, disciplina que juntava história e geografia numa patriotada, pedia trabalhos de colagem com os heróis da nação. Era só comprar, na papelaria mais próxima, os adesivos dos “vultos históricos”.
    Eu curtia. Parecia coleção de figurinhas. “Troca meu Duque de Caxias pelo seu Raposo Tavares?” “Não, mas posso negociar um Castelo Branco.”  
    Ensaiávamos num coro de crianças —ou orfeão, como se dizia na época. Um hino composto pelas professoras de música começava assim: “Trinta e um de março, data gloriosa / que deu nova vida e esperanças mil...”.
    Havia também o "Hino" com letra maiúscula. O Hino Nacional. Toda sexta (Segunda? Quarta? Não lembro) tínhamos uma cerimônia em louvor à bandeira no pátio, uma quadra mequetrefe com um muro mais ou menos alto que nos separava de um terreno baldio cheio de mamonas —algo raro, hoje em dia, nesta cidade.
    A garotada se alinhava como uma legião romana. O professor de educação física, algo bonachão, nos ensinava duas posições: sentido e descansar. Moleza.
    Juro que eu me esforçava para honrar a pátria, mas teve um dia em que a minha perna coçou muito. Bastardo que sou, não hesitei em me agachar e arranhar a pele.
    Fui levado à diretoria para esclarecimentos. Não entendi na hora. Ainda não entendo.
    Ilustração da coluna Selva de Pedra
    Fabrízio Lenci
    Marcos Nogueira
    Jornalista, autor do blog Cozinha Bruta e da coluna Selva de Pedra, da revista sãopaulo, que aborda com bom humor temas do passado que ajudam a contar a história da maior cidade do país.

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