quarta-feira, 23 de abril de 2025

De santo 'cassado' a guerreiro que vive na Lua: as histórias de São Jorge, FSP

 Edison Veiga

Bled (Eslovênia) | BBC News Brasil

Ele está presente na tradição popular, em sambas, no futebol e na toponímia–é considerado o padroeiro do Corinthians e do Rio de Janeiro. Graças ao sincretismo presente no Brasil, acabou sendo também uma das figuras mais importantes da umbanda. Personagem de inúmeras lendas, acabou sendo removido do santoral católico em 1969–mas sua veneração segue firme e forte.

São Jorge é costumeiramente representado como um guerreiro romano em um imponente cavalo branco. Com sua lança, trucida um dragão. São confusas e imprecisas as informações sobre sua vida, se é que ele existiu de fato.

"São inúmeras as narrações fantasiosas que nasceram em torno da figura de São Jorge", afirma texto do próprio Vaticano. "Um dos seus episódios mais conhecidos é o do dragão e a jovem, salva pelo santo, que remonta ao período das Cruzadas. Narra-se que na cidade de Selém, Líbia, havia um grande pântano, onde vivia um terrível dragão. Para aplacá-lo, os habitantes ofereciam-lhe dois cabritos por dia e, vez por outra, um cabrito e um jovem tirado à sorte. Certa vez, a sorte coube à filha do rei. Enquanto a princesa se dirigia ao pântano, Jorge passou por ali e matou o dragão com a sua espada. Este seu gesto tornou-se símbolo da fé que triunfa sobre o mal."

A imagem retrata São Miguel Arcanjo montado em um cavalo branco. Ele está vestido com uma armadura negra e uma capa vermelha, segurando uma espada vermelha. Ao fundo, há uma paisagem rochosa e uma figura angelical à direita, com vestes douradas e uma aura luminosa. O céu é claro, com tons suaves.
São Jorge, em pintura do francês Gustave Moreau - Domínio Público

De concreto sobre sua provável existência, há um documento chamado de 'Passio Georgii' (em português, 'A Paixão de Jorge'), reconhecido por um decreto da Igreja datado de 496. "Muitas das informações contidas nesse texto foram criando raízes e se fixando na tradição e no imaginário em torno a São Jorge", afirma à BBC News Brasil o pesquisador Thiago Maerki, membro associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.

"Como muitos desses santos dos primeiros séculos cristão, é muito difícil reconstituir sua vida verdadeira. O que temos são algumas informações colhidas de algumas fontes hagiográficas", comenta ele, salientando que a própria 'Passio', "classificada como apócrifa, não podia ser considerada uma fonte fidedigna".

A versão afirma que Jorge teria nascido na Capadócia, atual Turquia, por volta do ano de 280, educado em uma família de tradição cristã. Mais tarde, mudou-se para a Palestina, onde acabou se alistando no exército do imperador romano Diocleciano (243-312).

"Ele era considerado um soldado extremamente competente, a ponto de passar a integrar a guarda pessoal do imperador. Este é um dado significativo, porque para fazer parte dessa guarda devia ser alguém de muita confiança, não podia ser qualquer um", acrescenta Maerki. "Isso mostra que ele era extremamente importante e reconhecido por Diocleciano."

Ele existiu ou não?

"Segundo a tradição, Jorge teria sido um destemido e famoso tribuno da guarda romana, admirado por todos, inclusive pelo imperador", completa o escritor e teólogo J. Alves, autor do livro 'Os Santos de Cada Dia', em resposta a perguntas formuladas pela reportagem.

No ano de 303, o imperador publicou um edito considerado o marco da mais sangrenta perseguição aos cristãos. Jorge teria então doado todos os seus bens aos pobres e, apresentado-se a Diocleciano. Ali declarou sua fé em Cristo, rasgando o decreto. Acabaria torturado e morto por decapitação, segundo o texto do Vaticano.

De acordo com a tradição, ele teria sido sepultado em Lida, na época capital da Palestina, atualmente uma cidade israelense localizada perto de Telaviv. No local foi erguida uma igreja em sua honra–hoje restam ruínas.

Maerki recorda outra narrativa sobre o martírio de Jorge, segundo a qual o imperador Diocleciano teria convocado um conselho de reis, com 72 nobres de diversas localidades, para decidir estratégias para perseguir e matar cristão. "São Jorge havia se declarado cristão. E acabou convidado pelo imperador a oferecer sacrifícios aos deuses pagãos", narra o hagiólogo. "Ele teria se recusado a fazer isso e, então, acabou espancado, dilacerado e jogado na prisão."

"Segundo consta, depois, no cárcere, ele teria tido uma visão divina em que Deus lhe previa seis anos de tormento e também uma espécie de ressurreição após a morte. O que, segundo a lenda, se concretizaria", prossegue Maerki.

Mas ele existiu de fato? "Como muitos santos católicos dos primeiros séculos da era cristã, não há comprovação científica para sua existência histórica, enquanto pessoa real situada no tempo e no espaço", comenta Alves. "A memória de São Jorge chegou até nossos tempos por meio de múltiplas narrativas edificantes, feitas em épocas e circunstâncias diferentes, colhendo e agregando à figura do santo o ethos de cada época."

Ele atribui a isso a existência de tantas "lendas e histórias fantasiosas" acerca do santo, "de vertente míticas, religiosas e socioculturais". "Tudo isso, ressignificado à luz da fé católica", enfatiza. "Essas contínuas releituras e reescritas se fundiram aos dados mais primitivos da tradição oral, resultando em uma imagem multifacetada e cativante que torna São Jorge um santo universal que protege a todos, independente de sua crença", argumenta.

Alves defende, contudo, que "é consenso de muitos hagiógrafos" que, mesmo com tantas versões e reinterpretações, "são fortes os indícios e evidências" de que ele existiu como figura histórica. "Um dos principais argumentos de sua historicidade está na antiguidade e continuidade do seu culto, já evidenciado no século 4, que perpassa não só a baixa e alta Idade Média, mas também a era moderna, permanecendo em evidência até os dias de hoje", diz ele.

O Vaticano atesta que "entre os documentos mais antigos" que indicam "a existência de São Jorge" está uma epígrafe grega do ano de 368 que menciona "casa ou igreja dos santos e triunfantes mártires, Jorge e companheiros".

"Outra evidência são as inscrições encontradas em ruínas de antigas igrejas a ele dedicadas, na Síria, na Mesopotâmia, no Egito e Tessalônica, também datadas do século 4", aponta Alves.

A pintura retrata a cena da crucificação de Cristo, com várias figuras ao redor dele. Cristo está no centro, com um olhar sereno, enquanto é cercado por soldados e outras figuras que expressam diferentes emoções. O fundo é dramático, com uma iluminação intensa que destaca as figuras principais. Há uma sensação de movimento e tensão na composição, com detalhes ricos nas vestimentas e expressões dos personagens.
O martírio de São Jorge, em pintura de Cornelis Schut - Domínio Público

Sincretismo

Para as religiões de matriz africana, Ogum é o orixá do ferro, da guerra, da caça e da agricultura. No processo de sincretismo ocorrido no Brasil, os escravizados praticantes de religiosidades como o candomblé acabaram elegendo São Jorge para representar o orixá.

"O sincretismo com santos católicos foi uma estratégia de sobrevivência dos africanos e seus decendentes, uma tentativa de recriação de suas práticas em um contexto em que não tinham a liberdade", explica à BBC News Brasil o historiador Guilherme Watanabe, pai de santo do terreiro Urubatão da Guia, em São Paulo, e membro fundador do Coletivo Navalha.

"Os escravizados eram proibidos de celebrarem seus cultos e suas tradições, então eles acabavam adotando alguns santos para continuar exercendo suas crenças, suas festividades", contextualiza Maerki. "Eles criavam seus altares e colocavam as estátuas dos santos católicos neles, mas guardavam as representações, as imagens de suas divindades, escondidas por detrás dos santos católicos. Assim começou o sincretismo: na aparência, eles estavam celebrando os santos cristãos, mas muitas vezes estavam celebrando a divindade deles."

Watanabe analisa que, historicamente, contudo, o destaque para a figura do santo em detrimento a do orixá contribui para "um movimento de embranquecimento, uma tentativa de esvaziamento, de silenciamento e morte da cultura negra". E que, portanto, desde os anos 1980, há um esforço interno por muitas das lideranças de umbanda e candomblé para tentar desassociar essa relação sincrética com figuras originalmente católicas.

"Como historiador posso afirmar que esse culto aos santos católicos [por parte de religiões africanas] é anterior à própria diáspora. Alguns reinos da África Central foram reinos católicos que incorporaram a religião cristã, e nessa incorporação existiu algum tipo de ligação [de orixás] com santos católicos", exemplifica ele.

Watanabe ressalta que o "encontro de São Jorge com Ogum" não foi obra do acaso ou um capricho aleatório. "Isso transformou o santo católico em algo que seja outra coisa. Existiu uma escolha. Jorge, de fato, está caçando, está com arma em punho, pronto para espetar o dragão, levar para casa. Aí liga ao orixá Ogum, que é o primeiro caçador. Ao mesmo tempo a gente pode ter a ideia de que Ogum está guerreando, e São Jorge está guerreando com o dragão...", diz.

Ele lembra que Ogum tem uma importância muito grande– e por isso pode explicar por que São Jorge se tornou uma figura tão associada à cultura afrobrasileira. "Os orixás extremamente ligados à guerra são os orixás mais famosos do Brasil, justamente porque eles foram muito cultuados onde o sistema escravista cerceava, matava, estuprava, condenava as pessoas africanas à morte material e simbólica", pontua o historiador.

E no caso da umbanda, "uma religião afrodiaspórica de base de entendimento de mundo centro-africano", há um outro ingrediente a ser considerado: o fato de Ogum ser ferreiro. Segundo Watanabe, na cultura iorubá, era uma profissão vista como da realeza. "Acho que isso é primordial, explica porque Ogum é considerado o rei da umbanda", conclui.

A imagem retrata a cena de São Jorge lutando contra um dragão. Ele está montado em um cavalo branco, vestido com uma armadura negra e segurando uma lança. O dragão, de cor escura, está no chão, sendo atacado por São Jorge. Ao fundo, há uma cidade com torres e uma figura feminina vestida de rosa, observando a cena. O ambiente é de um cenário medieval, com elementos de fantasia.
São Jorge e o dragão, em pintura de Bernat Martorell - Domínio Público

No mundo da lua

Desse sincretismo nasceu, no Brasil, uma das lendas mais bonitas ligadas a São Jorge. Como Ogum é o orixá da força masculina, ele precisaria buscar a feminilidade na lua, para garantir seu equilíbrio. O folclore se encarregou de criar a imagem do santo guerreiro cavalgando pelo terreno lunar–e as manchas que podem ser vistas no astro seriam rastros do próprio montado em cavalo branco.

"A figura de Jorge está viva, presente e perene no imaginário do povo, na religiosidade popular, no folclore, no esporte, na cultura e na geografia", comenta Alves. "Desde pequenos, nossos pais e avós apontavam para a lua cheia e nos mostravam São Jorge montando em seu cavalo branco, espada em punho, em luta contra o dragão."

"A lenda do santo que mora na lua tem sua origem na história do dragão que, depois de devorar todos os animais e os jovens de um certo reino, só lhe restava devorar a filha do rei", conta o escritor. "Prestes a ser sacrificada, ela foi libertada por um corajoso cavaleiro que conseguiu ferir o dragão com sua espada."

Ferido, o dragão fugiu para a lua. "Em árdua batalha, o valente guerreiro o perseguiu por terra e pelo ar até a lua, onde ocorreu o embate final. Imensas crateras marcam o campo da batalha e da morte do dragão", narra ele.

"Reza a lenda que São Jorge decidiu morar na lua para proteger a humanidade de todos os perigos e maldades", diz Alves.

A imagem retrata um ícone religioso de São Jorge montado em um cavalo negro. Ele está vestido com uma armadura e uma capa vermelha, segurando uma lança. O fundo é decorado com elementos que sugerem um ambiente celestial, incluindo nuvens e uma figura no canto superior direito. Abaixo do cavalo, há uma representação de um dragão ou serpente, simbolizando a luta de São Jorge contra o mal.
São Jorge em gravura russa do século 14 de autor desconhecido - Domínio Público

'Cassação' pela Igreja

Embora seja celebrado no 23 de abril, São Jorge desde 9 de maio de 1969 não integra mais o santoral oficial da Igreja Católica. Isso não significa que ele tenha deixado de ser reconhecido como santo, ou que sua celebração seja proibida–mas já houve confusão nesse sentido.

De acordo com o Vaticano, São Jorge segue considerado o "padroeiro dos cavaleiros, soldados, escoteiros, esgrimistas e arqueiros". E é um santo que costuma ser invocado "contra a peste, a lepra e as serpentes venenosas". Contudo, "na falta de notícias sobre a sua vida, em 1969, a Igreja mudou sua celebração: de festa litúrgica, passou a ser memória facultativa, sem, porém, alterar seu culto".

Foi um movimento capitaneado pelo papa Paulo 6º (1897-1978), na esteira do Concílio Vaticano 2º–na época, foram retirados do santoral muitos personagens que careciam de comprovação histórica, mas em respeito às tradições, principalmente nas localidades em que tais figuras têm uma devoção popular mais forte, a memória e as celebrações se tornaram facultativas.

Segundo Alves, a revisão deixou "em evidência os santos de comprovada historicidade e que exerceram grande influência na propagação da fé e na vida da Igreja por meio de sua ação missionária e apostólica". "Embora o nome de São Jorge não conste no santoral da Igreja, seu culto e festas permanecem vivos, não apenas nas localidades e entidades que levam seu nome o cultuam como patrono, mas também seu nome é lembrado em âmbito da Igreja universal", salienta o escrito.

São Jorge segue, portanto, um santo do catolicismo. Mas essa exclusão do calendário oficial da época suscitou confusões–e muitos interpretaram que o santo havia sido "cassado" pela Igreja.

Também houve quem entendesse essa exclusão do santo no rol daqueles que mereciam celebração oficial como uma tentativa da Igreja de minimizar a importância de uma figura que havia se tornado tão forte para as religiões de matriz africanas.

O padre Eugênio Ferreira de Lima contou à BBC News Brasil que, naquela época, alguns sacerdotes católicos, "talvez por uma compreensão equivocada" da decisão do Vaticano, "promoveram a retirada de imagens [do santo] das igrejas". "Muitas foram levadas pelos católicos para suas casas. Por onde passei [ao longo da carreira], recuperamos algumas dessas imagens [que foram reinstaladas nos altares]", diz Lima, que como pároco já atuou em cinco cidades.

"Alguns santos não tinham dados históricos seguros e não se promoveu mais o seu culto. Mas já estavam no imaginário do povo, e isso não se tira por decreto", explica ele. "Como vivíamos aqui no Brasil a ditadura militar, com muitas cassações de políticos, se dizia que os santos foram cassados. Espalharam boatos sobre a cassação de São Jorge, mas isso não houve."

Para não deixar dúvidas, São Jorge foi um dos tantos santos enaltecidos pelo papa João Paulo 2º (1920-2005) nas celebrações do Jubileu em 2000–e isso foi visto por observadores como uma espécie de reabilitação oficial da figura.

"São Jorge é reconhecido como o santo que nos inspira e ajuda na luta contra os dragões de cada dia. É padroeiro de muitas paróquias e comunidades por esse Brasil, padroeiro dos corintianos, do estado do Rio de Janeiro e da Inglaterra", cita padre Lima. E, lembrando sua apropriação pelas religiões de matriz africana, ele pede "que São Jorge nos ajude a vencer os dragões da intolerância religiosa, do racismo e da violência".

Este texto foi publicado originalmente aqui.

Ruy Castro - O bom humor de Francisco, FSP

 "O senso de humor é um certificado de sanidade", disse há tempos o papa Francisco. "Há mais de 40 anos rezo para pedir senso de humor. [Peço a] São Thomas More [1478-1535, humanista do Renascimento, autor da "Utopia", executado por Henrique 8º por sua fidelidade à Igreja Católica e canonizado como mártir], um grande homem. Coloquei essa oração na nota 101 de ‘Gaudete et Exsultate’ [‘Alegrai-vos e Exultai’, de 2018, exortação apostólica de Francisco pela santidade no mundo atual], caso alguém queira vê-la. Nela, pedimos ao Senhor a capacidade de sorrir, de rir. De ver o lado ridículo das coisas e [também] o não ridículo, para aprender que a vida sempre tem algo para se sorrir."

"A oração", continuou Francisco, "começa muito bonita: ‘Dá-me, Senhor, uma boa digestão e algo para digerir’ [risos]. Já começa com senso de humor, e gosto disso. O senso de humor humaniza. Humaniza muito. Pessoas que não têm senso de humor são chatas, chatas até consigo mesmas [risos]. Aconteceu comigo, no meu trabalho sacerdotal, de certa vez aconselhar a alguém: ‘Olhe-se no espelho e ria de si mesmo’. Mas foi muito difícil para ele, porque lhe faltava essa capacidade de humor. Veja bem, o que estou dizendo não é muito dogmático. É um pouco de sabedoria de vida que me ensinaram, e tento ajudar os outros com isso".

Foi uma entrevista de Francisco à repórter Bernarda Llorente, da agência argentina de notícias Télam. A Télam foi fechada em 2024 por Javier Milei, mas o vídeo está disponível no app da TV Brasil.

Rosto, gestos e palavras de Francisco transpiravam humor. Com todo respeito, sempre o achei fisicamente parecido com Stan Laurel, o Magro da dupla O Gordo e o Magro, um dos cômicos mais humanos do cinema —sujeito às maldades do Gordo, Oliver Hardy, mas sempre vencedor no fim, por sua resistência pacífica.

Assim como Milei, também Trump e Bolsonaro nunca acharam graça em Francisco. Ele os irritava, porque enxergava neles o não ridículo —o insano, o desumano, o não cristão.

Diogo Corrêa - Crescimento de evangélicos na classe A desafia pesquisadores, FSP

 Diogo Corrêa

é sociólogo, professor da Univ. de Vila Velha e profº da École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris (FRA)

Durante muito tempo, predominou na academia a ideia de que o crescimento dos evangélicos no Brasil estaria ligado diretamente ao déficit econômico, à baixa escolaridade e à precariedade das condições sociais dos adeptos. Recentemente, porém, fenômenos como a criação de áreas VIP para celebridades na Igreja Lagoinha, localizada em Alphaville —bairro conhecido por condomínios de luxo— desafiam essa interpretação clássica. Como explicar essa mudança?

Tradicionalmente, as igrejas evangélicas prosperavam oferecendo suporte emocional e social justamente aos setores mais vulneráveis? Autores pioneiros como Fernando Cartaxo Rolim e Cecília Mariz defenderam essa interpretação inicial, apontando que igrejas evangélicas —especialmente as de tradição pentecostal e neopentecostal— cresciam principalmente em regiões pobres e periféricas por suprirem a ausência ou insuficiência do Estado, a falta de serviços básicos, o desemprego estrutural e a precarização das relações sociais.

Essa abordagem enfatizava ainda um paradoxo incômodo: enquanto líderes religiosos enriqueciam e erguiam templos suntuosos, muitos fiéis permaneciam na pobreza. A ostentação presente em certas igrejas era frequentemente denunciada como uma forma de exploração econômica da fé. Contudo, diante do cenário atual, em que um número crescente de fiéis pertence a setores sociais mais ricos, escolarizados e com significativo poder aquisitivo, torna-se necessário rever criticamente essas interpretações clássicas.

A imagem mostra um grupo de pessoas em um ambiente natural, possivelmente durante uma competição ou evento ao ar livre. Um homem sem camisa está em primeiro plano, com o corpo sujo de terra ou lama, enquanto outras pessoas ao fundo parecem estar animadas e participando do evento. Algumas pessoas estão vestindo camisetas de cores vibrantes, e há uma atmosfera de celebração e camaradagem.
O empresário Pablo Marçal foi a uma edição do Legendários na Flórida (EUA); o movimento é voltado ao público masculino evangélico e que atrai celebridades, políticos e empresários influentes - @pablomarcal1 no Instagram/Reprodução

Hoje, os evangélicos correspondem a aproximadamente 31% da população brasileira, o que representa cerca de 65 milhões de pessoas. Esse dado evidencia uma heterogeneidade social notável, abrangendo indivíduos das mais diversas classes sociais, níveis educacionais e áreas profissionais. Não estamos mais diante apenas de um fenômeno religioso restrito às camadas populares ou marginalizadas, mas sim de uma realidade transversal que inclui representantes das elites sociais, econômicas e culturais.

Uma recente controvérsia envolvendo um templo evangélico em Florianópolis, Santa Catarina, ilustra esse fenômeno. A igreja denominada Get Church viralizou nas redes sociais por suas instalações luxuosas, uso ostensivo da língua inglesa e estrutura comercial comparável a um shopping center ou a grandes empresas.

A notícia repercutiu a partir de uma postagem da influenciadora Tâmara Thaynne. Ao entrar no local, ela manifestou um questionamento comum sobre igrejas suntuosas: "Pra que gastar tanto dinheiro num templo?". Contudo, após ouvir a explicação do pastor —que justificava o luxo como forma de "honrar a Deus com excelência"—, ela relatou ter alterado sua perspectiva inicial.

Essa situação traz à tona uma questão: como compreender a expansão dos evangélicos em segmentos sociais privilegiados e altamente escolarizados? Trata-se de um fenômeno que desafia diretamente a explicação tradicional baseada apenas em déficits materiais e educacionais.

Em uma análise mais recente sobre essa temática, pesquisadores têm destacado como as percepções sociais sobre os evangélicos se transformaram ao longo das últimas décadas.

Exemplos dessa nova realidade não faltam, como demonstra o movimento Legendários, voltado ao público masculino evangélico e que atrai celebridades, políticos e empresários influentes, simbolizando essa crescente inserção evangélica entre setores sociais privilegiados. O universo evangélico brasileiro contemporâneo não pode mais ser interpretado unicamente como um refúgio para populações vulneráveis ou carentes.

Uma primeira hipótese seria que estamos testemunhando um deslocamento progressivo dessa interpretação clássica, centrada nas vulnerabilidades econômicas e sociais, para outra fundamentada na adesão e afirmação de valores morais conservadores. Não é mais apenas a ausência material ou educacional que atrai indivíduos às igrejas evangélicas, mas uma forte afinidade ideológica com um projeto moral e cultural conservador.

Seria essa nova configuração explicada exclusivamente pela adesão a um conservadorismo moral e cultural? Por enquanto, basta dizer que estamos diante não apenas de um fenômeno religioso específico, mas de uma transformação social de ampla escala no país. É preciso entender essa mudança para compreender, efetivamente, os rumos da sociedade brasileira contemporânea.