segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Todo evangélico é fundamentalista? Um historiador diz que sim, Juliano Spyer -FSP

O que significa o termo "evangélico"? Como conectar os evangélicos ao longo dos séculos? E como três historiadores dificultaram a compreensão da relação entre cristianismo e extrema direita ao desvincular o evangelicalismo de seu contexto social?

Essas e outras questões são examinadas pelo historiador norte-americano Matthew Avery Sutton em seu artigo "Redefinindo a História e a Historiografia do Evangelicalismo Americano na Era da Direita Religiosa" ("Redefining the History and Historiography of American Evangelicalism in the Age of the Religious Right").

O artigo foi publicado recentemente no Journal of the American Academy of Religion.

Matthew Sutton apresenta duas premissas.

1) Nos anos 1980, líderes da direita religiosa alegavam que os Estados Unidos foram fundados como uma nação cristã, justificando o nacionalismo cristão.

2) Em resposta, os historiadores Mark Noll, Nathan Hatch e George Marsden desenvolveram uma historiografia positiva para proteger a reputação dos evangélicos.

Segundo Sutton, esses três historiadores definiram "evangélico" apenas com base em ideias teológicas, ignorando práticas, redes de relacionamento e posições sobre racismo e desigualdade de gênero e de classe.

Mesmo pertencendo a um grupo minoritário de protestantes do nordeste dos Estados Unidos e sem preparo para analisar o cristianismo em outras regiões, especialmente no sul escravista, esses historiadores celebraram "evangélicos" abolicionistas, pioneiros na educação, defensores dos direitos das mulheres, reformadores urbanos, ativistas trabalhistas e missionários que promoviam liberdade religiosa e direitos humanos globalmente.

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A Marcha para Jesus de 2024, em São Paulo - Bruno Santos - 30.mai.24/Folhapress

Sutton argumenta porém que essa abordagem minimizou o aspecto político da religião.
"Em vez de explicar como o evangelicalismo se tornou um aliado da direita republicana, alegaram a existência de um ‘verdadeiro’ evangelicalismo separado de suas manifestações políticas", escreveu o historiador.

Matthew Sutton sugere que, no século 20, cristãos fundamentalistas adotaram o termo "evangélico" para se apresentar como "guardiões da Reforma Protestante." Eles entendiam que "Deus tinha um plano específico para os Estados Unidos e que seu trabalho era garantir que os verdadeiros cristãos executassem fielmente esse plano."

Por isso, Sutton conclui que o termo "evangélico" deve descrever um movimento pós-Segunda Guerra Mundial que é "religioso, nacionalista, patriarcal e branco". Outras características existem, mas são específicas de certas denominações e de contextos específicos.

Sutton propõem em seu artigo uma reflexão acessível ao leitor não especialista no assunto sobre como a história pode produzir mitos.

E oferece um ponto de partida para historiadores brasileiros examinarem um fenômeno que, na próxima década, deve se tornar predominante aqui no Brasil.

spyer@uol.com.br

domingo, 1 de setembro de 2024

A constatação da morte encefálica, Eudes Quintino, APMP

 O homem, na história do universo, vive um singelo ciclo e quase sempre cumpre todas as etapas programadas pela biologia mas, em razão da evolução natural e da procura por um viver melhor, estabelece condições para que possa realizar todos os seus objetivos. A corporeidade – assim entendida como um princípio individualizante – tem por função imprimir ao homem sua realidade singular, revelando-o como pessoa articulada com as demais. Faz dele o detentor de um enorme latifúndio chamado corpo humano, que funciona como instrumento não só deambulatório, mas, também, com inúmeras funções para realizar seus objetivos e, ao mesmo tempo, abriga, em seu interior, as vidas psíquica, volitiva e inteligente.

Tanto é que, no regramento constitucional brasileiro, vêm explicitados os princípios da proteção à vida, dentre eles, com relevo, o da dignidade da pessoa humana, para que haja a efetiva proteção desde a vida intrauterina, infantil, adolescência, adulta e idosa, compreendendo, portanto, o orior (nascer) e o morior, (morrer) dos romanos. 

Juridicamente é relevante estabelecer o momento da morte. Este, no entanto, é da competência exclusiva da medicina que, dentre os critérios existentes, irá apontar a causa e a forma pelo qual se deu o passamento. Um dos critérios que guarda relevante interesse para a área jurídica é o da constatação da morte encefálica. Pode até se ter a impressão de que se trata de uma faculdade discricionária outorgada ao médico para que possa declará-la de acordo com sua conveniência. Ocorre, no entanto, que há um rigoroso protocolo a ser seguido para atingir tal objetivo. 

A morte encefálica, resumidamente, é aquela que ocorre quando ausentes as funções neurológicas, com total irreversibilidade das funções do cérebro e do tronco cerebral. A sua constatação exige a realização de exames clínicos por dois médicos e a exibição de uma prova documental gráfica, em pelo menos duas oportunidades, com acentuado intervalo de horas, com a finalidade de constatar a ausência dos reflexos cerebrais. Recomenda-se, também, a realização de outros exames, como, por exemplo, o eletroencefalograma, a cintilografia de perfusão cerebral, arteriografia, doppler, etc. 

O tronco cerebral, que faz parte do encéfalo, responsável por todas as estruturas nervosas do corpo humano e de suas funções vitais, como o batimento cardíaco, respiração, sentimento, pressão arterial, pode ser considerado o administrador do grande latifúndio chamado corpo humano. Tanto é que, feito o diagnóstico de morte encefálica, apesar do paciente continuar com os órgãos viáveis, é considerado legalmente morto, oportunidade em que é possível a retirada de órgãos para transplante, se autorizado pelos familiares. 

A definição na legislação brasileira vem consubstanciada no artigo 3º da Lei nº 9.434/97, in verbis: “A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina”.

Tal definição orientou o Supremo Tribunal Federal, na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54), quando decidiu, por maioria de votos, pela autorização de aborto de feto anencefálico, aquele desprovido de encéfalo e calota craniana. É interessante destacar, nesta oportunidade, que foi afastada a pretensão de doação de órgãos de fetos anencéfalos, isto porque seria um contrassenso obrigar a mulher a manter a gravidez para viabilizar a doação de órgãos.

Tamanha a importância de definição do momento da morte que, se após a decretação médica da falência encefálica, alguém praticar algum ato contra o paciente com a intenção de matá-lo, esbarrará no crime impossível e responderá, se for o caso, pelo crime de vilipêndio a cadáver.

Assim, a tão próxima e desconhecida morte ocorre pelos seus inenarráveis desígnios ou até mesmo, em algumas circunstâncias especiais, é reconhecida pela lei do homem. Em qualquer caso, é de se considerar que ela faz parte da própria vida. É o seu protocolo final. Cabe aqui a pureza e a intensidade da prece que o inconfundível poeta popular Patativa do Assaré dirigiu à morte: “Morte, você é valente/ o seu poder é profundo/ quando cheguei neste mundo/ você já matava gente. / Eu guardei na minha mente/ este seu grande rigor/ porém lhe peço um favor/ para ir ao campo santo/ não me faça sofrer tanto/ morte, me mate sem dor”.

Mário Quintana, por sua vez, conhecido como o poeta das coisas simples e encantado pela vida, com a intenção de afugentar a morte e eliminar o pensamento a respeito do cadáver, mandou escrever na lápide de seu túmulo: “Eu não estou aqui”.


Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado.


23 milhões de brasileiros convivem com facções e milícias no próprio bairro, aponta Datafolha, FSP

 Tulio Kruse

SÃO PAULO

Facções criminosas e grupos milicianos estiveram na vizinhança de 14% da população brasileira nos últimos 12 meses. A estimativa é de uma pesquisa Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pela Folha.

Embora a maioria dos entrevistados afirme que não conviveu com o crime organizado no próprio bairro nesse período, os números dão uma ideia do tamanho do contingente populacional que está sujeito ao controle de grupos criminosos. Ele corresponde a mais de 23 milhões de pessoas em todo o país.

Ao todo, 2.508 pessoas com mais de 16 anos foram entrevistadas em todas as regiões do Brasil, em cidades de diferentes tamanhos, entre os dias 11 e 17 de junho. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos.

A imagem mostra uma rua urbana com um carro vermelho estacionado à esquerda. Ao fundo, há uma parede coberta de grafites em tinta preta, com palavras e frases escritas. Uma pessoa está de costas, próxima à parede, aparentemente observando os grafites. O ambiente é ensolarado e há uma estrutura de edifício visível ao fundo.
Criança passa por inscrição do crime organizado na porta da comunidade Gardênia Azul, na zona oeste do Rio de Janeiro; esquisa Datafolha mostra que 23 milhões de brasileiros vivem em áreas com presença de facções e milícias - Eduardo Anizelli/Folhapress

Os entrevistados que respondem que o local onde moram "sofreu com a presença explícita de facções criminosas ou milícias" estão concentrados nas grandes cidades, capitais e regiões metropolitanas.

O Brasil tem ao menos 88 facções criminosas no país, segundo um mapeamento da Senappen (Secretaria Nacional de Políticas Penais) concluído neste ano. Esse levantamento é feito nos presídios estaduais e federais de todo o país e reflete a atuação de grupos criminosos dentro e fora das prisões.

"Essas são facções que estão interagindo com as duas maiores, PCC e Comando Vermelho", diz o diretor-presidente do Fórum, Renato Sérgio de Lima, que participou da coordenação da pesquisa Datafolha. "Em 2017, a guerra entre essas facções mostrou que, para o crime, importa controlar o território, mas não todo e qualquer território. Elas dominam locais estratégicos para o armazenamento e o fluxo de distribuição das drogas."

Segundo o levantamento da Senappen, tanto o PCC (que tem origem em São Paulo) quanto o Comando Vermelho (criado no Rio) estão presentes em mais de 20 estados.

Ao Datafolha, dois em cada dez entrevistados que moram em capitais afirmam que seus bairros sofreram com a presença do crime organizado. Em municípios que compõem as periferias de regiões metropolitanas, a proporção também é mais alta que a média: 17%. Em contraste, 11% dos moradores de cidades do interior relatam a mesma situação.

Pretos e pardos também são mais afetados pela presença ostensiva do crime organizado, em comparação com a população branca. Além disso, pessoas mais jovens relatam a presença de facções e milícias no lugar onde moram com mais frequência do que os entrevistados mais velhos.

A mesma pesquisa perguntou aos entrevistados se há cemitérios clandestinos nas suas cidades e se conhecem pessoas desaparecidas. A proporção de respostas afirmativas nesses casos é menor (8% afirmam conhecer cemitérios clandestinos e 6% alguma pessoa desaparecida), mas o perfil de quem responde "sim" é semelhante.

Os casos são mais comuns nas grandes cidades, e são relatados com mais frequência entre jovens e pretos. Para Lima, esse padrão é indício do comportamento do crime organizado e de homicídios que não são contabilizados nas estatísticas oficiais.

"As mesmas pessoas que reconhecem a facção atuando no seu bairro estão reconhecendo cemitérios clandestinos. Ou seja, uma das formas de atuação é matar e esconder o corpo", ele afirma. Na cidade de São Paulo, o domínio do crime organizado sobre territórios da periferia e a presença de cemitérios clandestinos são assuntos conhecidos pela população.

Uma moradora da região do Capão Redondo, na zona sul da capital, disse à reportagem que esses locais são usados para desovar corpos de moradores que têm sentenças de morte decretadas por tribunais do crime —conselhos de integrantes do PCC que regulam desentendimentos na comunidade—, e que normalmente a pena capital é aplicada a quem também comete homicídio. Ela falou sob condição de anonimato por questões de segurança.

A mulher, que tem por volta de 30 anos, diz que pessoas desconhecidas da comunidade que não souberem explicar o motivo para estarem ali também podem ser mortas. Um cemitério clandestino no Jardim das Rosas, onde ela mora, foi encontrado pela GCM (Guarda Civil Metropolitana) em 2020.

De fato, em junho o Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas) e o Fórum divulgaram uma pesquisa que estimou em quase 6.000 o número de homicídios que não entraram nas estatísticas oficiais de 2022.

O cálculo do Atlas da Violência é baseado no índice de mortes violentas cujas causas não foram definidas, mas que têm as mesmas características de casos que foram registrados como homicídios —dados como o local da morte, instrumento usado na morte, tipo de ferimento, idade e sexo da vítima.

"Esse modus operandi do crime está impondo terror à população no território e, ao mesmo tempo, afetando a qualidade dos dados públicos, que está apontando uma queda no número de homicídios que pode não ser tão grande assim", diz Lima.