terça-feira, 4 de abril de 2023

Natura quer rejuvenescer The Body Shop e não pretende vender Avon International, FSP

 

SÃO PAULO

A marca britânica The Body Shop, que já foi ícone de cosméticos sustentáveis, com uma postura ativista sobre o consumo de produtos de beleza, envelheceu e precisa ser repaginada. Esta é a análise feita pela Natura, a multinacional brasileira dona da marca, segundo o presidente da companhia, Fabio Barbosa.

Criada por Anita Roddick nos anos 1970, a The Body Shop foi uma das primeiras empresas do setor a abolir o teste de ingredientes em animais e a promover o comércio justo com comunidades fornecedoras de matérias-primas naturais –como as castanhas extraídas pelos índios caiapós, na Amazônia.

"É preciso revitalizar a marca", disse Barbosa, que participou de teleconferência com jornalistas na manhã desta terça-feira (4), para comentar a venda da australiana Aesop para a francesa L'Oréal, anunciada na segunda (3). "A The Body Shop deixou de atrair o público jovem, vamos diminuir o número de SKUs [itens], tornar as lojas mais clean, mais acolhedoras", afirmou, ressaltando que o trabalho na The Body Shop é fundamentalmente de marketing de reposicionamento.

Jovem testa produto para a pele diante de um espelho
Jovem testa cosmético em loja da The Body Shop, em São Paulo. - Gabriel Cabral/Folhapress

"Eu trabalhei por 12 anos na Nestlé e sei que, quando a marca é boa, não faz sentido oferecer promoções como 'compre 3 e leve 4'", disse. "Esse tipo de ação até pode acontecer em alguns momentos, mas não o tempo todo, como vem ocorrendo com a The Body Shop."

Curiosamente, a The Body Shop, que passou às mãos da L'Oréal em 2006, foi vendida para a Natura em 2017. Agora, a L'Oréal comprou a Aesop da brasileira por US$ 2,53 bilhões (R$ 12,7 bilhões). Segundo Barbosa, o negócio teve o objetivo de "desalavancar" a companhia, que estava com alto nível de endividamento.

A Natura encerrou 2022 com uma dívida líquida de R$ 7,4 bilhões, cerca de 7,8 vezes o seu Ebitda (lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização).

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De acordo com Barbosa, a Aesop está em um momento de expansão no mercado oriental e era preciso fazer maiores investimentos, mas a Natura não tinha capital disponível. Com a venda da operação, o panorama mudou. "Mas não é porque temos dinheiro em caixa agora que temos que gastar", afirmou o executivo.

Convocado na metade do ano passado para fazer a Natura voltar ao lucro, Barbosa tem no currículo a presidência do Santander Brasil e da Febraban (Federação Brasileira de Bancos).

"Não vou passar de marca em marca perguntando: 'De quanto vocês precisam neste momento'", disse. "Vou perguntar quais os negócios cada uma tem para investir neste momento que tragam um bom retorno", afirmou.

SEM POTES DE PLÁSTICO NA AVON

Além da The Body Shop e da própria Natura, a empresa é dona da Avon –aquisição anunciada em 2019 e concluída em janeiro de 2020, que deu origem ao quarto maior conglomerado de beleza do mundo, depois de L'Oréal, P&G e Unilever.

Analistas ouvidos pela Folha apontaram a necessidade de a Natura se voltar para o mercado latino-americano, o seu principal consumidor, e possivelmente vender as operações de Avon International, onde estão reunidas as operações de Avon fora da América Latina.

Fabio Barbosa descartou essa possibilidade.

"A venda da Avon International não está na mesa", disse. "Existe uma sinergia a ser explorada pela marca Avon e Natura na América Latina. Nos demais países, vamos analisar mercado a mercado e ver quais as opções". No ano passado, a empresa deixou de operar na Albânia, no leste europeu, e também deixou a Índia, onde passou a operar a marca com um parceiro estratégico.

"Vamos permanecer nos países que apresentem melhor retorno financeiro", afirmou Barbosa.

Além disso, segundo o executivo, a marca Avon vai se concentrar em cosméticos e deixar de investir na venda de produtos de casa, como potes de plástico, por exemplo.

"São produtos que não fazem parte do principal negócio da companhia e não fazem sentido dentro da nossa estratégia."

Repertório de Clara Nunes causaria escândalo nos dias de hoje, FSP

 "Iansã, cadê Ogum? Foi pro mar / Iansã, cadê Ogum? Foi pro mar..."


Assim começa "A Deusa dos Orixás", um dos muitos sucessos da carreira de Clara Nunes. Também era uma das várias canções de seu repertório com letras fortemente influenciadas pelo candomblé e pela umbanda, que essa mineira de Paraopeba (atual Caetanópolis) conheceu depois que se mudou para o Rio de Janeiro.


Elementos das religiões de matriz africana são citados explicitamente em faixas como "Banho de Manjericão", "Ijexá", "Tributo aos Orixás" e "As Forças da Natureza". Embora mais mundanas, canções como "Conto de Areia" e "O Mar Serenou" também ostentam o mesmo DNA.

Não era só no repertório que Clara Nunes evocava o candomblé. O visual comportado do início de sua trajetória, nos anos 1960, foi evoluindo a ponto de, no final da década seguinte, Clara ter praticamente se transformado numa sacerdotisa do samba, sempre vestida de branco e com adereços nos cabelos que lhe davam um ar de entidade mística.

Foto em preto e branco mostra mulher em desfile de carnaval  com as mãos para cima, sorriso aberto e coroa de conchas na cabeçala
Clara Nunes desfila pela Portela em 1983 - Arquivo pessoal

A cantora morreu no dia 2 de abril de 1983, depois de permanecer em coma por 28 dias, devido a complicações de uma banal cirurgia para a retirada de varizes. O Brasil entrou num choque só comparável ao causado pela morte de Elis Regina, ocorrida um ano antes. Ambas eram grandes estrelas da nossa música, ambas se foram jovens demais.

As quatro décadas sem Clara Nunes vêm sendo marcadas por reportagens na imprensa. A Folha publicou uma matéria abrangente sobre sua carreira. No Fantástico deste domingo (2), o cirurgião Antônio Vieira de Melo contou detalhes sobre a desproporcional reação que a artista apresentou à anestesia, que acabou levando ao seu falecimento.

Clara Nunes era praticamente uma unanimidade no Brasil de 40 anos atrás. Hoje seria polarizadora, por causa do repertório impregnado de umbanda e candomblé. Não duvido que viesse a ser alvo de boicotes e ataques se insistisse em cantar a glória dos orixás.

Convém lembrar que não era só ela. A música brasileira da década de 1970 mergulhou sem medo nas tradições africanas, numa época em que as igrejas evangélicas tinham uma fração do poder que têm hoje.

Maria Bethânia e Gal Costa celebravam Mãe Menininha do Gantois, uma das mais célebres ialorixás da Bahia. Em parceria com Baden Powell, Vinicius de Moraes compôs uma série de chamados "afrosambas", como "Canto de Ossanha". Até mesmo Ronnie Von seguiu por essa trilha, abalando sua imagem de príncipe da Jovem Guarda com o hit "Cavaleiro de Aruanda".

Isso não quer dizer que as religiões de matriz africana fossem plenamente aceitas naquela época. Não havia notícias de atentados a terreiros, tão comuns hoje em dia, mas a ignorância e o preconceito impediam que elas fossem totalmente integradas ao "mainstream" da cultura brasileira.

Mesmo assim, a presença do candomblé e da umbanda na mídia era maior do que atualmente e ainda não existiam vereadores histéricos querendo remover estátuas de Iemanjá de espaços públicos.

O fato é que, com o avanço do neopentecostalismo, o Brasil encaretou. O pior é que também ficou muito mais intolerante com a diversidade, quando não escancaradamente racista.

Clara Nunes, que cantava a fé em deuses negros e celebrava a união das três raças que formaram o Brasil –um conceito não muito acurado do ponto de vista científico, mas de fácil compreensão–, talvez não fosse hoje a superstar que foi há 40 anos. O que seria uma pena, dada sua simpatia, seu carisma e a extensão de sua voz.

O Brasil de 2023 convive numa boa com a pornografia de MC Pipokinha, mas não suporta a liberdade religiosa. Vamos ver se o Ministério da Cultura, agora comandado pela cantora Margareth Menezes, ajudará a reverter esta situação.

Foto de Tony Goes

tony goes

Tony Goes tem 62 anos. Nasceu no Rio de Janeiro, mas vive em São Paulo desde pequeno. Já escreveu para várias séries de humor e programas de variedades, além de alguns longas-metragens. E atualiza diariamente o blog que leva seu nome: tonygoes.com.br

Uma sociedade decente pode exigir a infelicidade da sua maioria,João Pereira Coutinho _FSP

 Andei pensando: serei mais Kant ou mais Bentham? Serei mais deontologista ou mais consequencialista? A culpa dessas perguntas angustiantes é de Álvaro Machado Dias e Hélio Schwartsman, que conceberam um estudo notável sobre a ética dos brasileiros.

Se eu fosse brasileiro, teria sérias probabilidades de ser deontologista. Aliás, mais que a média: é entre os 41 e os 50 anos, purgatório em que me encontro, que o pessoal se revela fã dos "princípios". Como explicar?

Crise da meia-idade, suspeito. Quando chegamos a essa fase, somos como náufragos, procurando certezas no meio da tempestade.

Ou talvez não. Se fosse confrontado com as perguntas de Dias e Schwartsman, o mais provável seria responder com novas perguntas. Não posso ser ambos? E, já agora, não posso incluir, por especial favor, alguma ética da virtude?

A primeira pergunta é fruto da experiência. A ideia de que somos eticamente consistentes, aderindo e cumprindo uma só teoria, não sobrevive a uma vida examinada.

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Sou kantiano e utilitarista consoante as circunstâncias: às vezes os princípios, às vezes as consequências. E, consoante as circunstâncias, abandono Kant e os utilitaristas por discordar de ambos.

Agir segundo uma máxima que eu desejaria que se tornasse universal (o imperativo categórico de Kant) é fascinante à primeira vista. Poupa trabalho, sobretudo perante as agonias da vida.

Mas depois...

Dois livros abertos em pé, um de cabeça pra baixo em relação ao outro são vistos por detrás de uma trama de cubos vermelhos transparentes, uma rede geométrica semelhante a uma grade ou uma colmeia.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 3 de abril de 2023 - Angelo Abu

Sim, depois as agonias não desaparecem. Acontece quando somos confrontados com dois deveres igualmente universalizáveis (e igualmente inescapáveis) e somos obrigados a escolher um.

Kant não ajuda. Aliás, nada ajuda: é esse o significado de incomensurabilidade. Não existe uma fórmula que possa resolver, a priori, a paralisia em que mergulhamos. Devo sempre dizer a verdade? Mesmo que dizer a verdade provoque a morte de inocentes?

Nunca fui confrontado com tragédias desse tipo. Mas, na vida comum, acredito cada vez mais na nobreza da mentira piedosa.

Com os utilitaristas só vou até certo ponto. A ideia de que a maximização da felicidade para o maior número deve presidir as nossas escolhas morais implica saber primeiro o que traz felicidade para o maior número.

A perseguição de minorias?

A aplicação da pena de morte?

A amputação de membros para criminosos?

Uma sociedade decente pode exigir a infelicidade do maior número. Cada vez mais acredito nisso: como mostrou Freud há cem anos, a civilização constrói-se sobre alicerces de descontentamento.

Se abandono Kant e os utilitaristas com a mesma facilidade com que os abraço, confesso minha simpatia crescente com a ética da virtude. Os autores do estudo não incluíram essa terceira via, talvez porque ela seja mais sutil nas discussões filosóficas.

Por outras palavras: a ética da virtude só atrapalha a sociedade "prêt-a-porter" em que vivemos. Seguir princípios ou pensar nas consequências tem bom marketing.

O caráter não tem –e é de caráter que a ética da virtude nos fala. É conversa antiga, que vem de Aristóteles, e que conheceu uma ressurreição espantosa no século 20 com Elizabeth Anscombe. O que é o caráter?

É o resultado de viver de uma determinada forma. Você quer ser justo? Então pratique a justiça. Quer ser corajoso? Então pratique a coragem. Todos os dias, nas pequenas e grandes coisas, como se fosse um atleta treinando os seus músculos.

A possibilidade de escolhas justas, de escolhas corajosas, de escolhas sábias, aumenta drasticamente quando o seu caráter foi esculpido por tais virtudes.

Falei em Aristóteles, falei em Anscombe –mas Clint Eastwood também serve. Dias atrás, assistindo pela milésima vez ao seu "Menina de Ouro", encontrei um dos tratados mais brilhantes sobre a ética da virtude.

Clint Eastwood e Hillary Swank em cena de 'Menina de Ouro' - Warner Bros/via Reuters

Pergunta acadêmica: a eutanásia é legítima?

Os kantianos darão uma resposta, os utilitaristas outra. Mas o personagem de Clint Eastwood, o técnico de boxe Frankie Dunn, oferece uma resposta que confunde ambos.

Por um lado, viola a injunção kantiana (e bíblica) do "não matarás".

Por outro, só por piada vemos em Frankie a encarnação da felicidade final. Pelo contrário: como um condenado eterno, ele desaparece da paisagem comum.

Porém o seu gesto só pode ser entendido à luz de um caráter. É um gesto terrível e profundo, pleno de amor e coragem, que não se encontra em nenhum manual de filosofia, em nenhum "cálculo hedônico".

É uma decisão de vida que só pode ser explicada, e justificada, pela vida daquele homem.