quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Marinha decide afundar casco de porta-aviões mesmo com proposta de R$ 30 mi, FSP

 

BRASÍLIA

O Ministério da Defesa decidiu afundar o casco do porta-aviões São Paulo. Um grupo saudita havia oferecido R$ 30 milhões pelo equipamento, mas o governo emitiu uma nota para informar que vai despejar o navio na costa brasileira.

O texto afirma que, diante da "deterioração das condições de flutuabilidade" e da "inevitabilidade de afundamento espontâneo", não seria possível adotar outra conduta "que não o alijamento do casco".

O NAe São Paulo (A-12) é um porta-aviões da classe Clemenceau, que esteve a serviço da Marinha do Brasil entre 2000 e 2014, tendo sido descomissionado em 2020 - Rob Schleiffert - 23.dez.13/Wikimedia

A proposta foi feita na última segunda-feira (30), após a Folha revelar que a Marinha planejava afundar a embarcação diante do avançado grau de degradação do antigo aeródromo.

Os sauditas haviam oferecido um valor três vezes maior que o feito pelo estaleiro turco Sök Denizcilik and Ticaret Limited. A companhia chegou a assinar o contrato de aquisição com a Marinha, mas decidiu devolver o porta-aviões após a Turquia vetar a entrada da embarcação em seu território.

Nesta quarta-feira (1º), o Ministério da Defesa, a Marinha e a AGU (Advocacia-Geral da União) emitiram uma nota conjunta para informar que o trem de reboque do casco "foi direcionado para área marítima mais afastada, dentro das Águas Jurisdicionais Brasileiras (AJB), a 350 km da costa brasileira e com profundidade aproximada de 5 mil metros".

"A referida área, selecionada com base em estudo conduzido pelo Centro de Hidrografia da Marinha, foi considerada a mais segura para as condições de severa degradação do casco", diz o texto.

E prosseguiu com a explicação: "Em face do exposto, não sobrou alternativa ao Estado brasileiro a não ser considerar o bem como perdido, nos termos da Lei nº 7.542/1986, e assumir o controle administrativo do casco, de modo a evitar danos ao meio ambiente e preservar a segurança da navegação. Cabe ressaltar que a SÖK não deixou de ter responsabilidade pelo bem".

O porta-aviões São Paulo tem 266 metros de comprimento. Seu armamento era composto de três lançadores duplos de mísseis e metralhadoras de grosso calibre.

Inutilizado há décadas, o navio passou por um desmanche na França. Na década de 1990, ele chegou a passar por um processo de desamintação, que retirou 55 toneladas do produto tóxico.

Mesmo assim, o amianto ainda está presente nas paredes do porta-aviões —a substância era usada como isolante térmico e acústico, para reduzir o barulho da decolagem das aeronaves para a tripulação.

O porta-aviões foi vendido pela Marinha ao estaleiro turco especializado em desmanche de navios. O veículo deixou o Brasil no dia 4 de agosto, em viagem que gerou protestos pelo mundo e foi monitorada em tempo real pelo Greenpeace.

A Marinha diz que, após a decisão de desmobilizar o porta-aviões, optou pela venda do casco para "desmanche verde", um processo de reciclagem segura para o qual o estaleiro turco Sök é credenciado e certificado.

Mas, diante de denúncias sobre a exportação ilegal de amianto, o governo turco revogou autorização para entrada da embarcação no dia 26 de agosto, quando o navio se aproximava do Estreito de Gilbraltar, em viagem feita com o auxílio de um rebocador.

Análises feitas pela ONG Shipbreaking em um porta-aviões gêmeo ao São Paulo identificou 760 toneladas de amianto na embarcação. Diante disso, a organização passou a questionar se, de fato, o casco enviado pelo Brasil teria as 10 toneladas da substância tóxica como previsto no inventário.

O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) suspendeu a licença de exportação e determinou o retorno do navio ao Brasil.

O estranho caso da hemoglobina, Sergio Rodrigues - FSP

 Foi um dos momentos inesquecíveis das férias, ainda que o esquecimento, no caso, fosse uma bênção. Mas como esquecer que um dia me serviram picanha com farofa de ovo e jargão médico?

Não vi o evento traumático se aproximar. Recém-inaugurada, a churrascaria era recomendada por muita gente na cidadezinha pitoresca da serra da Mantiqueira, no suculento trecho de filé de costela de montanhas que Minas Gerais divide com São Paulo.

A Heloisa é uma carnívora bem menos empolgada do que eu, mas naquele dia o pêndulo do programa conjugal estava do meu lado. O lugar era bonito e amplo, talvez amplo demais: poucas mesas ocupadas. Não atribuí maior importância àquilo. Só mais tarde me ocorreria uma possível relação entre a clientela escassa e a indigestão linguística servida ali.

Tão loura quanto jovem, a garçonete pareceu estranhar quando pedi minha carne "ao ponto pra mal", como sempre faço. Nada de especial, apenas o "medium rare" da língua inglesa. Normalmente se entende logo, mas a moça precisava ser convencida.

"O senhor quer dizer com um pouco de hemoglobina?", perguntou na lata. Seus olhos muito azuis nem piscaram, parecendo indiferentes ao vocábulo bioquímico que, uma vez pronunciado, passou a emitir guinchos e a se contorcer no centro da mesa.

Carne assada em cima de uma tábua de madeira
Carne 'ao ponto pra mal' - Unsplash

Naquele momento eu devia ter me levantado e ido procurar um sushi. Ou uma feijoada. Horas mais tarde, com a presença de espírito atrasada que os franceses chamam de "l’esprit de l’escalier", me arrependi de não ter dobrado a aposta: "Só hemoglobina não, e os leucócitos? Não vai me dizer que vocês trabalham com bois leucopênicos!".

Como a vida não é esquete, me limitei a balbuciar algo como "preferia que você não tivesse usado essa palavra, mas é isso mesmo". Assim que a garçonete se afastou, a Heloisa levantou a possibilidade –que logo adotei como certeza– de que ela fosse uma agente vegetariana infiltrada, radical e treinada nas técnicas mais avançadas do terrorismo vocabular.

Não funcionou comigo. Terrorista ou não, a palavra absurdamente fora de contexto, traidora de séculos de cultura gastronômica eufemística, passou longe de abalar minhas convicções carnívoras.

A picanha que logo chegou à mesa, passada um pouco além da encomenda ("cadê a hemoglobina que você me prometeu?", mais uma frase que eu não disse), só não foi fagocitada com mais prazer porque ficava bem aquém da reputação da casa.

Nada disso quer dizer que meu carnivorismo seja inabalável. Habito meu tempo e tenho visto a velha paz de espírito associada ao ato de comer bichos cambalear, acossada de todos os lados por argumentos éticos, ambientais e afetivos (tenho uma filha vegetariana, experiência que recomendo a todos).

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Parrilla uruguaia - Divulgação

O caso é que, se os argumentos racionais contra a predação de espécies indefesas abundam, o breve relance de pesadelo linguístico vivido na Mantiqueira não está entre eles. O efeito que aquilo teve foi o oposto —fortalecer minha resistência à medicalização da vida que é uma tendência do século 21.

As intenções podem ser boas, mas reduzir gestos sociais ricos de sentidos culturais à sua dimensão biológica é um atentado contra o espírito humano. Escolhas vocabulares têm consequências.

Começamos chamando carne, frango e peixe de "proteína", acabamos normalizando uma hemoglobina na mesa do almoço. Que tal abrir o olho antes que uma cantada como "vamos lá em casa liberar uma ocitocina no sistema" se torne aceitável?


Ruy Castro - É Flórida, FSP

 Jair Bolsonaro continua na Flórida, abanando-se com o formulário em que pediu visto de turista às autoridades americanas já que seu passaporte "diplomático" caducou. Há dias, um dos zeros, indagado sobre quando seu pai pretendia voltar, respondeu: "Não sei. Pode ser amanhã, pode ser daqui a seis meses, pode não voltar nunca. Ele está desopilando".

Desopilando? Olha a corrida ao dicionário. Segundo o Houaiss, desopilar é "desobstruir, aliviar, desentupir, descarregar". Opilar, por sua vez, significa "obstruir um conduto natural". Logo, Bolsonaro está com um conduto natural obstruído e precisa desentupi-lo, daí seu turismo na Flórida. A imagem é repulsiva para ser lida no café da manhã, mas, pelo menos, Bolsonaro está fazendo isso longe. E, se uma de suas opções é não voltar nunca, imagine o grau da obstrução que o acomete.

Desopilar é também "alegrar-se, desanuviar, espairecer, rejubilar-se". Mas o que haverá de tão alegre hoje na Flórida para Bolsonaro? Não será a companhia de seu amigo Donald Trump, já que, para Trump, Bolsonaro vale agora menos que o papel amassado da embalagem do seu chiclete. E não que Bolsonaro esteja precisando de dinheiro, mas a possibilidade de fazer "palestras para empresários", a R$ 50 mil por palestra, também se frustrou —como turista nos EUA, ele não pode prestar serviço remunerado. Por que então Bolsonaro não as faz de graça, para desopilar?

E como imaginar Bolsonaro entregando-se a outra acepção da palavra, "rejubilar-se"? Ele não tem muitas razões para se rejubilar. Os americanos veem com asco a sua presença no país. Anguillara Vêneta, a cidade da Itália que o tornou cidadão honorário, quer apagar essa mancha de sua história. E até sua mulher, Michelle, já o deixou para trás e voltou. Só lhe resta armar um cercadinho e falar para os pacóvios brasileiros na Disney.

Bolsonaro não tem escolha. É Flórida.