quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

VITÓRIA MACEDO - Glória Maria sabia que racismo ia além de um cabelo liso ou black-power, FSP

 Vitória Macedo

SÃO PAULO

A atriz americana Viola Davis, uma das mais consagradas da sua geração, diz em seu livro "Em Busca de Mim" que só descobriu sua vocação ao ver pela primeira vez uma artista negra na tela da televisão. No Brasil, foi a imbatível Glória Maria quem assumiu esse papel de pioneirismo no jornalismo televisivo.

Glória Maria (repórter) é barrada no Othon Palace Hotel por causa da sua cor. Foto Otávio Magalhães / Agência O Globo - Neg : 80-8468

A apresentadora, morta nesta quinta-feira (2) vítima de um câncer, foi uma inspiração para inúmeras mulheres negras brasileiras que, como eu, encontraram nela um propósito. Enxergar a si mesma na televisão é mesmo transformador.

Glória foi a primeira pessoa negra a aparecer diante das câmeras no telejornalismo brasileiro. Uma mulher negra na maior emissora do país nos anos 1970. Sua estreia nas telas foi cobrindo o desabamento do viaduto Elevado Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro.

Não tem como não me lembrar da menina que, nas sextas-feiras à noite, acompanhava a jornalista no Globo Repórter, se aventurando em diferentes países e imaginando como seria ser como ela.

Isso aconteceu tendo como pano de fundo uma sociedade que, a partir do racismo, faz meninas negras odiarem sua pele, seu cabelo e todos os seus traços ancestrais. Uma sociedade que me fez escolher uma boneca branca no lugar de uma preta, por achar a outra muito mais bonita.

Mas crescer e ver Glória Maria na televisão, firme e enfrentando todos os assuntos possíveis, de Guerra à Copa do Mundo, foi um alento. Não é à toa que, ao entrar na faculdade de jornalismo, muitas mulheres negras a têm como espelho, assim como outros nomes, entre eles Maju Coutinho e Aline Midlej.

Durante 20 anos, Glória usou o cabelo natural, um black power baixo. Depois aderiu ao liso, sem deixar que seu cabelo a definisse ou, como disse, tornasse o racismo uma questão estética. O tema é muito mais profundo, e ela sabia disso.

Ela sabia de sua importância quando surpreendeu uma jovem repórter da periferia de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, que relatava os problemas de seu bairro e viralizou na internet em 2017. O brilho no olhar da jovem, que tinha um microfone feito com plástico reciclado, é o retrato da grandiosidade de Glória.

Ainda que tenha sido a primeira em muitas coisas, Glória não queria ser a única. Ela chegou a perguntar para esta jovem, que se chamava Mirella, se ela estaria disposta a substituí-la. O que Glória realmente queria era que outras Glórias surgissem, tão competentes quanto, para ocuparem os espaços nos quais esteve. Não queria estar lá sozinha. Depois de anos, não está.

Em entrevista ao programa Memória da Globo em 2010, a jornalista e apresentadora disse que não se achava uma mulher muito corajosa. Que todas as reportagens que fez e que a colocaram em perigo, no fim, era puro coração. Se não pulasse naquele momento, não faria nunca mais.

Foi o que disse em entrevista a este jornal em 2018. "Eu sempre penso no extremo. Tem duas opções. Se eu não pular, não vou saber como é. Se eu pular, o máximo que vai acontecer vai ser morrer. e pelo menos vou morrer em glória."

Mas Glória era, sim, corajosa. No fundo, sabia disso. A coragem está no simples ato de se levantar todos os dias e enfrentar o mundo, a sua profissão majoritariamente branca e masculina, de cabeça erguida. Foi preciso coragem para aparecer na televisão ao vivo pela primeira vez –e até ajuda de um psicólogo.

Por vezes, é preciso muito mais coragem para ser mulher negra jornalista do que para pular do maior bungee jump do mundo.

É preciso coragem para acreditar que neste mundo os nossos sonhos e os de nossos antepassados podem se tornar realidade. Foi essa coragem que Glória Maria precisou ter e que fez com que tantas outras, como eu, também tivessem após se enxergarem nela.

Por mais clichê e talvez esvaziada que essa frase possa soar, repito: representatividade importa. Glória é como uma semente plantada que germina e dá frutos. Hoje, no jornalismo, que ainda caminha a passos lentos em direção à diversidade, muitas seguirão se inspirando em Glória Maria.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Ministro de Lula usou orçamento secreto para beneficiar a própria fazenda no Maranhão, OESP

 


Juscelino Filho destinou R$ 50 milhões em emendas sigilosas; parte foi para prefeitura da irmã, que contratou empresário preso por corrupção e seu ‘conhecido’ de longa data

BRASÍLIA – O ministro das Comunicações do governo Lula, Juscelino Filho, direcionou R$ 5 milhões do orçamento secreto para asfaltar uma estrada de terra que passa em frente à sua fazenda, em Vitorino Freire (MA). A propriedade também abriga uma pista de pouso para seu avião particular e um heliponto. Faltava uma boa estrada para levar à Fazenda Alegria.

Estadão mapeou o caminho do dinheiro. Todo o percurso liga pessoas da intimidade do ministro. A pedido de Juscelino, os recursos foram parar na cidade que tem a irmã dele como prefeita. A empresa contratada pelo município para tocar a obra é de um amigo de longa data. E o engenheiro da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) que assinou o parecer autorizando o valor orçado para a pavimentação foi indicado por seu grupo político.

Cinco meses após a assinatura do contrato, em julho de 2022, o empresário Eduardo José Barros Costa, conhecido como Eduardo Imperador, foi preso pela Polícia Federal, acusado de pagar propina a servidores federais para obter obras na cidade e de ser sócio oculto da Construservice. O engenheiro da Codevasf, estatal controlada pelo União Brasil, partido do ministro, foi afastado sob suspeita de receber R$ 250 mil em propina de Imperador. Juscelino admite que ele e o empresário beneficiado com recursos de sua emenda secreta são “conhecidos há mais de 20 anos”.

Escolhido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para comandar uma das principais pastas do governo, com orçamento de R$ 3 bilhões, Juscelino era até o ano passado um deputado federal do baixo clero, eleito para o terceiro mandato. Nunca teve influência nas discussões nacionais, muito menos no setor de radiodifusão. Tinha, porém, força no Centrão, o bloco de partidos que dá as cartas do poder. Nos últimos quatro anos, apresentou seis projetos de lei, entre eles o que estabelece o Dia Nacional do Cavalo, animal criado em suas terras.

A proximidade com o grupo que apoiou o então presidente Jair Bolsonaro, em troca do orçamento secreto, não só alçou Juscelino à condição daqueles políticos que mais manejaram recursos do esquema como o levou ao primeiro escalão de Lula.

Lula nomeou Juscelino Filho como ministro das Comunicações.
Lula nomeou Juscelino Filho como ministro das Comunicações. Foto: Reprodução

Estadão conseguiu identificar R$ 50 milhões. Destes, o deputado despachou R$ 16 milhões para Vitorino Freire, onde sua família costuma revezar o poder com aliados, desde os anos 1970.

Foi nessa época que Vinícius Aurélio Rezende, avô de Juscelino, iniciou a dinastia no município. Juscelino Rezende, pai do ministro, também comandou a prefeitura por dois mandatos. Sua família tem dezenas de fazendas, e ao menos oito foram beneficiadas pela estrada que ele mandou asfaltar com verba pública.

Empresário conhecido como 'Eduardo Imperador' foi preso pela Polícia Federal acusado de fraudar licitações no Maranhão
Empresário conhecido como 'Eduardo Imperador' foi preso pela Polícia Federal acusado de fraudar licitações no Maranhão Foto: Reprodução

Esquema

Vitorino Freire é uma cidade pobre, com 31 mil habitantes, na zona rural do Maranhão, com saneamento básico precário e onde 42% da população não tem calçamento na frente de casa. Metade dos moradores vive com meio salário mínimo. A prioridade do ministro, porém, foi usar o orçamento secreto para pavimentar a estrada que atende suas propriedades e de sua família.

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Juscelino Filho e Eduardo Imperador
Juscelino Filho e Eduardo Imperador Foto: Reprodução

A obra foi orçada em R$ 7,5 milhões, dos quais R$ 5 milhões são para fazer um trecho de 19 km em frente às suas terras e o restante atende 11 ruas em povoados da cidade. Juscelino indicou a verba do orçamento secreto para fazer a estrada em 2020, quando era deputado federal. Às vésperas da eleição, no ano passado, mais R$ 1,5 milhão foi liberado.

Na campanha, Lula disse que o orçamento secreto era o maior esquema de “bandidagem” da República.

O Orçamento é chamado de secreto porque o destino desses recursos é mantido em segredo. Mas todo mundo sabe para onde esse dinheiro vai: fraudes e desvios de verbas.

Lula, durante a campanha eleitoral

Lula nomeou Juscelino Filho como ministro das Comunicações após acordo com o União Brasil.
Lula nomeou Juscelino Filho como ministro das Comunicações após acordo com o União Brasil.  Foto: Ricardo Stuckert/PR

Então governador do Maranhão, o atual ministro da Justiça, Flávio Dino, classificou a prática como “o momento de maior corrupção da história política”. O Supremo Tribunal Federal (STF) condenou o orçamento secreto, revelado pelo Estadão, e mandou pôr fim à distribuição de recursos sem critérios.

Antes disso, no entanto, a Corte determinou aos deputados e senadores que se beneficiaram do esquema que informassem quanto de verba haviam direcionado. Juscelino, agora ministro de Estado, omitiu as informações do STF. O Estadão encontrou suas digitais na nota de empenho dos R$ 7,5 milhões.

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Nota de empenho liberando recursos para estrada em Vitorino Freire (MA) traz o nome de Juscelino Filho como padrinho da emenda secreta.
Nota de empenho liberando recursos para estrada em Vitorino Freire (MA) traz o nome de Juscelino Filho como padrinho da emenda secreta.  Foto: Reprodução

Fiança

A empresa Construservice, contratada pela prefeitura para fazer o asfalto, pertence a Eduardo Imperador. Ele chegou a ficar quatro dias preso e foi solto após pagamento de fiança. Na investigação, a Polícia Federal indicou que Imperador usou os nomes de Rodrigo Gomes Casanova Junior e Adilton da Silva Costa como laranjas. Não foi a primeira vez que recursos direcionados pelo ministro foram para a Construservice. O valor totaliza R$ 9 milhões.

Quando se reelegeu deputado federal, em outubro, Juscelino informou ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) um patrimônio de R$ 4,4 milhões. Entre seus bens estão um avião Piper PA-34-220T Seneca V no valor de R$ 550 mil. O ministro divide a propriedade do avião com um tio, o ex-deputado estadual Stênio dos Santos Rezende.

De 2019 a 2022, pediu à Câmara reembolso de R$ 122 mil em combustível de aviação. O Congresso permite esse tipo de despesa, desde que a viagem esteja ligada ao mandato.