segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Procurador em férias, folga e ‘sindicalista’ poderá receber até R$ 11 mil por ‘excesso de trabalho’, OESP

 Criado sob a alegação de excesso de trabalho, um penduricalho do Ministério Público vai beneficiar com até R$ 11 mil por mês procuradores em férias, licença ou recesso e aqueles afastados para atuar em associações de classe. Similares a sindicatos, as entidades defendem interesses particulares dos filiados. Na prática, mesmo sem dar expediente, integrantes dessas carreiras que já têm 60 dias de férias por ano poderão ganhar adicional de 33% e receber acima do teto constitucional – hoje, o vencimento de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) é de R$ 39,3 mil.

Em julho do ano passado, como mostrou o Estadão, o procurador-geral da República e presidente do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Augusto Aras, havia publicado uma recomendação para que o penduricalho já existente para juízes fosse estendido a todo o MP. Na época, o conselho afirmou que se tratava de “uma orientação”. Agora, o órgão define regras para a concessão do benefício por meio de uma resolução aprovada em dezembro e publicada na sexta-feira, 27.

Conselho Nacional do Ministério Público editou resolução com regras do novo penduricalho e resolução, assinada por Augusto Aras, foi publicada na sexta, 27
Conselho Nacional do Ministério Público editou resolução com regras do novo penduricalho e resolução, assinada por Augusto Aras, foi publicada na sexta, 27 Foto: Gabriela Biló / Estadão

Assim como a recomendação, o novo texto não limita o penduricalho por “acúmulo de acervo processual, procedimental ou administrativo” ao chamado abate-teto. Presente nas regras da magistratura, a trava chegou a constar de uma minuta de recomendação do CNMP, mas foi retirada na versão final do texto, como também revelou o Estadão. Além disso, no caso dos juízes, o bônus é pago àqueles que acumulam varas e processos nas férias de colegas e o direito foi obtido por meio de lei aprovada no Congresso.

As regras mais recentes do CNMP, que visam espelhar o penduricalho da magistratura, valem para o Ministério Público da União, que abrange o Ministério Público Federal; do Trabalho; Militar; e do Distrito Federal e dos Territórios. Caberá ao conselho superior de cada ramo, em 90 dias, definir a quantidade de processos que dará direito ao benefício, o que, para ministros e magistrados que já atuaram em conselhos ouvidos sob reserva, abre margem para o pagamento de forma ampla.

Na época da recomendação, o Estadão mostrou, por exemplo, que o Ministério Público do Paraná já havia estabelecido que promotores com mais de 200 ações criminais tinham o direito a um extra. Segundo os dados mais recentes, de 2021, o MPU tem 2.319 integrantes – dos quais 1.144, no MPF; 760, no MPT; 48, no MPM; e 367, no MPDFT. Um procurador da República tem salário de R$ 33,7 mil. Questionado, o CNMP não informou estimativas de gastos com o novo adicional. Esse mesmo benefício concedido a juízes é alvo de apuração no Tribunal de Contas da União (TCU) justamente por ter se tornado, no dia a dia, universal.

As novas normas do CNMP preveem, ainda, um dia de licença a cada três dias de trabalho ou o pagamento do penduricalho. “Observada a disponibilidade financeira e orçamentária, os ramos do Ministério Público da União, por ato do respectivo procurador-geral, poderão indenizar os dias de licença”, diz a resolução, o que, na visão de ministros e juízes que atuaram em conselhos, fará do pagamento uma prioridade.

A matéria versada na resolução recém-promulgada deveria, por sua importância e reflexos, ser editada expressamente em lei. (...) Quanto ao aspecto jurídico, sem dúvida, o ato é questionável

Manoel Gonçalves Ferreira Filho, professor emérito de Direito Constitucional da USP

Segundo o gerente de Inteligência Técnica do Centro de Liderança Pública (CLP), Daniel Duque, essa brecha terá impacto fiscal e o novo penduricalho chega em um momento delicado do País, além de se tratar de uma indenização, que fica fora do teto, não uma remuneração, sujeita ao teto e a impostos. “Vai haver aumento de gastos de uma carreira que já é a que tem o maior nível de gasto proporcional em relação ao resto do mundo. Isso é um problema, tendo em vista principalmente que há um desafio do governo para solucionar as contas públicas”, disse. Quando a recomendação veio a público, o diretor-presidente do CLP, Tadeu Barros, afirmou se tratar de um estímulo à “incompetência”.

Reunião do Conselho Nacional do Ministério Público presidida por Augusto Aras em outubro de 2021.
Reunião do Conselho Nacional do Ministério Público presidida por Augusto Aras em outubro de 2021. Foto: Divulgação/CNMP

Lista

A lista prévia dos beneficiários é longa. Pelo texto do CNMP, já terão direito ao benefício: presidente e membros de conselhos superiores; corregedor-geral; secretário-geral ou diretor-geral; chefes de gabinete de procuradores-gerais; coordenador-geral, coordenador nacional, assessor-chefe, além de secretários, diretores ou coordenadores titulares de órgãos administrativos das Procuradorias-Gerais. Quem participar de comissões – como as de combate ao trabalho escravo ou trabalho infantil –, grupos de trabalho e até grupos de estudo também terá “acúmulo de processo”.

De acordo com a resolução do CNMP, também será beneficiado quem exercer a chamada “função relevante singular”. É neste caso que entram os procuradores afastados para atuar nas associações de classe. Por lei, os membros do MPU com “mandatos classistas” tiram licença remunerada e até três integrantes por entidade são liberados de suas funções. Agora, o valor extra por excesso de trabalho poderá ser recebido enquanto um procurador atua em favor dos colegas, longe do cotidiano das demandas judiciais. Hoje, associações como ANPR (MPF), ANPT (MPT) e ANMPM (MPM) representam a categoria.

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Esses artifícios todos costumam partir de uma operação marota de embutir na remuneração benefícios indenizatórios. Indenização não conta no teto nem paga tributo. O problema é que a maioria das coisas que se coloca na categoria de indenização simplesmente não poderia estar

Conrado Hübner Mendes, professor de Direito Constitucional da USP

Sem paralelo na iniciativa privada

Na iniciativa privada, o empregado regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) tem 30 dias de férias, recebe hora extra ou banco de horas e, ao atuar em comissão interna de prevenção de acidentes (Cipa) ou sindicato, não ganha um extra, mas estabilidade de um ano após o fim do mandato. Ao cobrir férias de um chefe, o trabalhador tem direito a receber salário igual ao do superior. Um magistrado que atuou em conselho superior disse que a regra para os procuradores com mandato classista é uma forma de incluí-los na “festa”.

“Isso não tem correspondência legal com os trabalhadores da iniciativa privada. Se não houver previsão legal em legislação específica, a meu ver tal resolução, neste ponto, é ilegal”, disse o professor de Direito do Trabalho da FMU Ricardo Calcini, sobre os critérios para procuradores que representam a carreira em associações. “Indenizar acaba por criar uma verba indenizatória que, na prática, afronta o Fisco, por não ter recolhimento de Contribuição Previdenciária e de Imposto de Renda”, afirmou.

Lei

O aumento das remunerações sem o aval do Legislativo é criticado pelos especialistas em direito. “A matéria versada na resolução recém-promulgada deveria, por sua importância e reflexos, ser editada expressamente em lei”, afirmou Manoel Gonçalves Ferreira Filho, professor emérito de Direito Constitucional da USP. “Quanto ao aspecto jurídico, sem dúvida, o ato é questionável”, disse. Segundo ele, o Congresso pode suspender a medida.

Já para Conrado Hübner Mendes, também professor de Direito Constitucional da USP, as carreiras jurídicas usam de mecanismos para romper o teto. “Esses artifícios todos costumam partir de uma operação marota de embutir na remuneração benefícios indenizatórios. Indenização não conta no teto nem paga tributo. O problema é que a maioria das coisas que se coloca na categoria de indenização simplesmente não poderia estar”, afirmou.

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O teto do funcionalismo subirá em breve, o que leva ao chamado efeito cascata. Em dezembro, o Congresso aprovou o reajuste escalonado dos salários dos ministros do STF. A partir de abril, integrantes da Corte ganharão R$ 41,6 mil. O vencimento chegará a R$ 46,4 mil, em 2025. Procurados, CNMP, ANPR, ANPT e ANMP não responderam até a publicação desta reportagem.

Vitória de Lira será veneno para reconstrução da normalidade institucional, Cristina Serra, FSP

 

É dada como certa a reeleição de Arthur Lira (PP-AL) para mais dois anos na presidência da Câmara dos Deputados, contando com o apoio declarado de 20 partidos, num arco tão amplo quanto bizarro, que reúne do PT à extrema direita.

A vitória de Lira será um veneno para a reconstrução da normalidade institucional. Não se pode avaliar o estrago que Bolsonaro deixou no Brasil sem considerar a cumplicidade do chefe da gangue parlamentar vulgarmente conhecida como centrão. Lira jogou no lixo mais de 140 pedidos de impeachment de Bolsonaro e adotou como norma o silêncio conivente diante da pregação golpista do fugitivo, ora na Flórida. Por meio do orçamento secreto, operou engrenagem de corrupção jamais vista na Câmara e, com atraso, extinta pelo STF.

Ainda retém, contudo, poderes hipertrofiados e os exerce com despudor. Com DNA enraizado no mais reles fisiologismo, nem se preocupou em disfarçar a compra de votos de parlamentares. Foi o que se viu com o injustificado aumento de salário, benesses e mordomias para os deputados, generosidade com chapéu alheio (o nosso, no caso) que saberão retribuir na urna.

Bolsonaro e Arthur Lira no Conselho Nacional de Justiça, em Brasília - Adriano Machado - 30.ago.22/Reuters


Ao sabor das barganhas e tocaias que sabe armar como poucos, Lira almeja ser um copresidente, mandando e desmandando na agenda de Lula. Atuará em terreno favorável: uma Câmara de baixa qualificação, com a banda podre da rapinagem anabolizada, a direita reacionária fortalecida e um campo governista instável e sujeito a uma boa dose de volatilidade.

Um Legislativo crítico e independente é saudável e necessário para uma democracia minimamente funcional. Mas não é isso o que Lira pode oferecer. Dele, o que se pode esperar é indigência institucional e degradação na relação entre os Poderes. Em boa hora, está de volta o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), que lançou sua candidatura ao comando da Casa. Alencar não tem a menor chance. Mas não deixa de ser um alento saber que existe uma reserva de dignidade na Câmara.


João Pereira Coutinho Sim, o poeta tinha razão: ou amamos ou morremos, FSP

 

Baltazar Lemos, 60, natural de Curitiba, decidiu morrer. Explico melhor. Ele, um cerimonialista de luto com certa experiência em preparar e testemunhar o funeral dos outros, decidiu organizar um funeral só para ele.

Fingiu doença, fingiu morte, fingiu velório –tudo publicitado pelas redes sociais, claro– e esperou para ver quem aparecia.

Vieram amigos. Vieram familiares. E até veio o próprio Baltazar, para agradecer aos presentes. Não sei se saltou do caixão para causar maior impacto, mas quero muito acreditar que sim.

Os presentes não gostaram da brincadeira. Consta até que houve insultos e agressões físicas dentro da capela. Creio que a família cortou relações com ele.

Li tudo isso na imprensa. É bom demais para ser verdade. Mas, acreditando na história, posso enviar um abraço fraterno ao nosso Baltazar?

Também eu, pobre homem, tenho essa curiosidade mórbida desde a mais tenra idade. Quantos serão, afinal, prestando suas homenagens?

E quantos vão contar piadas, soltar risinhos cínicos, fazer comentários impróprios sobre minha aparência amarelada?

Ilustração de um caixão de cuja tampa se projeta um grupo de 4 periscópios, indicando que alguém dentro dele observa o mundo externo. No caso, os periscópios são idênticos aos do Submarino Amarelo, dos Beatles, ressaltando a psicodelia da situação.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de30.jan.23 - Angelo Abu

Os epicuristas, para aliviar nosso medo da morte, tinham uma máxima conhecida: onde eu estou, a morte não está; onde a morte está, eu não estou.

Faz sentido. Mas para personalidades narcísicas –estou falando de nós, Baltazar– isso não consola; perturba. Se eu não estou lá, como saber quem está?

Infelizmente, essa dúvida não revela nada sobre os outros, muito menos sobre a bondade deles. Velórios são acontecimentos sociais, como casamentos e batizados.

Vamos porque temos de ir. Vamos porque os outros, os vivos, os sobreviventes, esperam isso de nós. Vamos porque existem mil interesses em jogo –reputações, heranças, boa gastronomia, uma súbita viúva– que convidam ao supremo sacrifício.

Se Baltazar queria realmente testar a lealdade da sua tribo, teria sido mais útil simular um internamento no hospital. Quantos familiares e amigos caminhariam até sua cama enferma sem esperar nada em troca?

A pergunta é válida para qualquer um de nós. E é talvez a pergunta mais importante para medir a nossa hipótese de felicidade terrena: quão fortes são as nossas amizades?

Recentemente, o "Wall Street Journal" divulgou o mais longo estudo alguma vez feito sobre o assunto. Começou em Harvard, em 1938, com centenas de participantes, todos rapazes, respondendo a questionários sobre o grau de satisfação com a vida.

Nos anos seguintes, o estudo continuou a medir a felicidade dos rapazes, mas incluiu também as mulheres; com o tempo, alargou-se para os mais de 1.300 descendentes do grupo original.

As conclusões estão no livro "The Good Life: Lessons from the World’s Longest Scientific Study of Happiness" (Simon & Schuster), de Robert Waldinger e Marc Schulz.

Aqui vai um aperitivo: esqueça o jogging, a comida vegana, a meditação oriental. Esqueça também a riqueza, a fama e outras ilusões mundanas.

Nesses quase 90 anos de acompanhamento constante, a principal conclusão é que a saúde e a longevidade são fortalecidas de forma dramática pelos amigos que somos capazes de manter.

Se tivermos boas relações, o corpo e a mente agradecem.

Inversamente, os mais solitários tiveram existências mais pobres e curtas, em média, porque a solidão é corrosiva para nossas pobres carcaças.

Explicam Robert Waldinger e Marc Schulz que há razões evolutivas para isso: quando nossos antepassados ficavam sozinhos no mundo, o estado de alerta era ativado. A sobrevivência dependia disso: como dormir tranquilo quando um predador poderia aparecer a qualquer momento?

Hoje, pode não haver uma fera para nos devorar; mas quando estamos por nossa conta, o corpo e a mente continuam lá atrás, libertando seus hormônios estressores, em dolorosa vigília.

Segundo os autores, uma existência despojada de gente pode ser mais perigosa do que a obesidade, sobretudo para os mais velhos. Se essa solidão é crônica, o risco de morte aumenta 26%.

Sim, o poeta tinha razão: ou amamos ou morremos.

É por essa razão que o nosso amigo Baltazar faria bem em pedir desculpas, de joelhos, aos crédulos que foram chorar sobre o seu caixão. A falta que eles fazem é agora, não depois.