É raro ver uma medida única, simples e republicana produzir efeitos virtuosos quase instantaneamente numa área tão complexa como a segurança pública. Mas foi exatamente isso que ainstalação de câmeras automáticas(que não podem ser desligadas) nos uniformes de policiais militares fez. Nos batalhões em que a prática foi adotada, a letalidade policial caiu acentuadamente –80% após um ano de uso.
A diminuição das mortes é o efeito mais vistoso, mas não o único. É difícil contabilizar, mas se presume que outras formas de abuso policial que não as fatais também tenham sofrido redução, já que as interações entre agentes da lei e público ficam todas registradas. As câmeras protegem ainda o policial que age corretamente. Ele passa a ter como defender-se de denúncias infundadas e pode provar materialmente a legítima defesa nos casos em que ela de fato ocorreu.
Candidato ao governo do Estado em São Paulo, Tarcísio de Freitas, chega ao Campo de Bagatelle para participar de motociata com o presidente Jair Bolsonoro - Eduardo Knapp - 1º.out.22/Folhapress
Ainda que devamos ser cautelosos para não superestimar os efeitos das câmeras, eles parecem entrar todos na coluna dos positivos. Causa espécie, portanto, a declaração do candidato ao governo de São Paulo Tarcísio de Freitas de que vai mandar retirá-las se eleito. Para o aliado de Jair Bolsonaro, as câmeras limitam a ação do policial e o deixam em desvantagem em relação ao bandido. Aí o candidato praticamente confessa que é favorável a ações ilegais da polícia. As limitações que a câmera impõe aos agentes são justamente aquelas que constam da legislação, sem tirar nem pôr.
A posição de Freitas não é nem sequer compatível com as ideias conservadoras. O bom conservador é acima de tudo um legalista. Sua atitude contrasta até com a religião. Como já apontei aqui, muito antes de a tecnologia das câmeras surgir, religiões monoteístas já haviam criado a figura de um Deus punitivo que tudo vê. Essa divindade onividente nada mais é que uma câmera imaginária instalada nas cabeças dos fiéis. E, ao que tudo indica, funciona.
o desejo de um acerto de contas com o Supremo Tribunal Federal não é um exclusivo de Jair Bolsonaro. Sua última ameaça à Corte, dizendo que definirá o que fazer em relação a ela após ser reeleito, é a retomada de uma ideia expressa pela primeira vez em 2018, portanto, muito antes de seu governo sofrer qualquer derrota no plenário do tribunal em temas que foram desde o controle do combate à pandemia de covid-19 à limitação da autonomia das universidades públicas.
O Presidente da República e candidtao a reeleição, Jair Messias Bolsonaro (PL), Fala com jornalistas no Alvorada
Era 2 de julho de 2018. Então candidato à Presidência pelo PSL, Bolsonaro revelou em uma entrevista em Fortaleza (CE) que pretendia ampliar de 11 para 21 o número de ministros do STF. Seria uma forma de pôr, segundo suas palavras, “juízes isentos lá dentro”. O modelo seguia a fórmula dos argumentos usados na Venezuela pelo tenente-coronel Hugo Chávez, outro militar que encheu de generais seu governo. No País vizinho, a Justiça se tornou fiel ao presidente e não à Constituição.
O general, que já confessou admiração pelo torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, acreditava que a nova Carta poderia ser feita por um grupo de notáveis. Não explicou quem seriam esses “notáveis” e no que se teriam notabilizado. Mourão teve de dizer que não pretendia usurpar a soberania popular ou rasgar a Constituição de 1988. É que a fórmula parecia repetir mais uma vez o que Chávez e Nicolás Maduro fizeram na Venezuela.
Mourão sugeriu a ampliação do número de ministros do STF
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Mourão conheceu de perto a ascensão da ditadura chavista. Foi adido militar naquele país entre 2002 e 2004. Ia a manifestações de rua e conversava com populares antes de escrever relatórios ainda hoje protegidos pelo sigilo. O general e senador eleito prestaria um grande serviço à política nacional se revelasse o conteúdo de seus despachos de Caracas.
A medida foi incluída na Proposta de Emenda à Constituição defendida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, outro que pretendia saber como “lidar com o Supremo”. O artigo não passou despercebido no Congresso. Nada o justificava, pensava o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, até porque o impacto de 11 aposentadorias era irrisório para o caixa da Previdência. Os críticos viram nele uma manobra para abaixar a idade limite dos ministros, aposentando compulsoriamente mais de metade da Corte, parte de um processo que foi chamado pelo professor e ex-chanceler Celso Lafer de “cupinização da democracia”.
Sem conseguir controlar o STF com magistrados dóceis, Bolsonaro viveu às turras com o tribunal, ameaçando não cumprir suas ordens e esbravejando contra as investigações e inquéritos conduzidos pelo ministro Alexandre de Moraes. Protegido pelo Centrão no Congresso contra toda possibilidade de impeachment, o presidente viu-se frustrado em cerca de três dezenas de julgamentos, muitos dos quais derrubaram decretos e medidas provisórias considerados inconstitucionais.
Em 2020, quando o então ministro Celso de Mello decidiu convocar para depor até “debaixo de vara” os generais Walter Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos e Augusto Heleno no inquérito sobre interferência política na Polícia Federal, o general Luiz Eduardo Rocha Paiva, um dos ideólogos do bolsonarismo, compartilhou um texto com colegas que representa até hoje a visão de muitos dos generais do governo.
O general Rocha Paiva escreveu texto sobre o Supremo
Rocha Paiva enxergava excessos nas ações do Supremo para conter Bolsonaro. “Quem tem certeza da própria autoridade moral não precisa decidir com ameaças provocativas e inúteis. Serenidade e bom senso é o que se espera das autoridades da República, ao invés de egolatria nociva e disruptiva em momento tão delicado.” O general lembrou até a famosa indagação atribuída ao marechal Floriano Peixoto ao saber que o Supremo ia conceder habeas corpus aos envolvidos na Revolta da Armada: “Não sei amanhã quem lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão.”
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O País vivia à beira de um conflito institucional. Ao analisar a crise do estado liberal italiano após a Grande Guerra de 1914-1918, Antonio Gramsci identificou ali uma crise de autoridade. Dizia que ela consistia no fato de que o velho morre e o novo não se desnudou por completo. “Neste interregno, verificam-se fenômenos patológicos os mais variados.”
Uma das mais famosas passagens dos Cadernos do Cárcere (Q 3,34) do pensador italiano – transformado em anticristo no Brasil por uma direita populista e ultramontana –, ela é lembrada por Fernando Henrique Cardoso e muitos dos que analisam a crise que levou à ascensão de forças políticas nacionalistas e extremistas em países tão diversos quanto Rússia, Turquia, Índia, Itália, Hungria e Brasil.
Gramsci comparou essa crise ao interregno, o período entre um reinado e outro na Roma antiga. Ela se caracteriza pelo fato de as velhas camadas dirigentes não conseguirem mais desempenhar sua função. Assistiu-se entre 2018 e 20222 no Brasil o naufrágio da direita social-liberal, personificada no resultado eleitoral colhido pelo PSDB. O impasse que disso resulta não pode ser resolvido pela restauração do velho.
Lula recebeu o apoio de Simone Tebet, que cobrou clareza em suas propostas
Mas a nova ordem é incerta. E traz um perigo: a potencialidade obscura nela existente do surgimento de homens providenciais ou carismáticos. Eles exploram os ressentimentos contra o novo, abrindo um período de extrema insegurança. É aqui que surge Jair Bolsonaro e a versão verde-amarela do chavismo. Ao contrário de seu oponente, Luiz Inácio Lula da Silva que, pressionado por forças do centro, não detalha como deve agir na economia, Bolsonaro e os generais que o apoiam sugerem claramente o que pretendem fazer.
Desta vez, o aumento do número de ministros da Corte foi defendido pelo general Mourão e admitido por Bolsonaro. Só os ingênuos não enxergam o alcance de tal medida. Se fosse proposta pelo PT, seria a prova para os que acusam Lula e os seus de planejar transformar o Brasil em uma Venezuela. Como a medida saiu das bocas de Mourão e de Bolsonaro, muitos silenciam, enquanto os críticos de sempre mais uma vez perguntam: Se têm essa ousadia em plena campanha eleitoral, o que se pode esperar deles vencido o pleito?
E, assim, a campanha eleitoral vai se desenrolando. Diante dela, o País parece anestesiado, pois “entre a ideia e a realidade, entre a ação e o movimento, tomba a sombra”, comoescreveu T.S. EliotemThe Hollow Men. O mundo parece se transformar não por meio da revolução imaginada por Gramsci, mas como concluiu Eliot em seu poema: “This is the way the world ends/ Not with a bang but a whimper” Ou na tradução de Ivan Junqueira: “Assim expira o mundo. Não com uma explosão, mas com um gemido”.
Caminhão é carregado com soja em um dos silos de cooperativa na zona rural de Planaltina, região administrativa do DF - Pedro Ladeira - 15.mai.20/Folhapress
Zel produz, edita e faz figurinos. Começou a trabalhar "As Panteras" no ano passado. Com ele, a atriz Jade Mascarenhas, de 23 anos.
O youtuber Zel Junior, de 24 anos, produtor de "As Panteras de Lula" - Divulgação - 21.mar.22/Lari Marques
Zel conseguiu uma curta participação especial do próprio ex-presidente no seu vídeo. Os vídeos de Zel esbanjam irreverência, talento e bom humor.
O BANQUEIRO COM CABRAL
A editora florentina Olschki acaba de publicar "La Divina Commedia di Antonio Maria Esposito". Um livro esquisito de um autor mais esquisito. Antonio Esposito (1917-2007) foi um sacerdote italiano que fazia miniaturas de presépios e paisagens.
A casa Olschki surgiu em 1863, tem canal na rede, funciona numa propriedade renascentista a poucos minutos de Florença e publica livros sobre tempos passados.
Por exemplo: em 2014, Olschki publicou "Bartolomeo Marchionni — Homem de Grossa Fazenda (1450-1530)", do professor Francesco Guidi Bruscoli.
O mercador Marchionni foi o homem mais rico de Lisboa na virada do século 15 para o 16. Trabalhava para banqueiros florentinos. Traficava escravos tártaros e negros da Guiné, comercializava especiarias da Índia e açúcar da ilha da Madeira.
Entre 1486 e 1493 traficou 3.586 escravizados com um lucro de 30%. Emprestava dinheiro aos reis e teria conhecido tanto a Cristóvão Colombo quanto a Leonardo da Vinci.
Da esq. para dir., a atriz Jade Mascarenhas, o youtuber Zel Junior e a atriz Diana Martins em cena do vídeo 'As Panteras do Lula'Lari Marques/Divulgação
Marchionni financiava navegadores e em 1500 bancou como sócio a empreitada do navio Anunciada, da frota de Pedro Álvares Cabral. Em 1501 ele falava do "novo mundo" que Cabral encontrou.
Pouco depois Marchionni teria intercedido para que Amerigo Vespucci embarcasse na frota que seguiu para a Terra dos Papagaios. Vespucci percorreu a costa brasileira e suas descrições levaram um cartógrafo alemão a chamar o continente de América.