Leandro Karnal, O Estado de S.Paulo
22 de maio de 2022 | 03h00
A palavra é difícil de escrever. Um solene “sc” no meio e conteúdo desconhecido da maioria. Quantas vezes, nos últimos anos, sua fala incluiu o termo imarcescível?
Vamos nos aproximar um pouco da antiga seção “enriqueça seu vocabulário” da revista Seleções. Sua orquídea resiste na sala há 21 dias sem murchar? Talvez ela seja imarcescível. Algo que não fenece, jamais perde o viço, mantém o vigor original é parte da definição do vocábulo título da minha crônica. Com sentido figurado, aplica-se ao que nunca pode ser corrompido pelo tempo. Pode até ser elogio a sua colega de Ensino Médio que você reencontrou em um restaurante: Márcia, você tem um rosto imarcescível! Se ela for uma pessoa de vocabulário rico, baixará o rosto, corada. Ficar vermelho diante de um elogio é uma forma sofisticada de dizer: concordo, mas a humildade social impede que eu grite sim nesse instante.
Aproveito a palavra menos comum para tocar em um ponto delicado. Qual o sentido de aprender algo novo como a palavra que usei? Amplio: e o currículo escolar em si? O influencer Felipe Neto causou impacto nas redes ao declarar que ainda não tinha encontrado utilidade prática para o Teorema de Pitágoras.
O conhecimento tem sido, com frequência, um distintivo social. Gramática não serviria, de fato, para afinar a comunicação, todavia para dizer quem é quem. Quem estudou muito sabe distinguir entre aposto explicativo, enumerativo, comparativo, circunstancial etc. Ao identificar que está utilizando um deles com acerto e consciência, causa em outros que estudaram a boa sensação de que se trata de alguém que pertence ao mesmo grupo. Resolve-se a identidade pela regra da língua. “Você ouviu? Ele pronuncia aerosol e não aerossol. Não vamos nos misturar com esse tipo de gente.” Parece cômico, porém toca no ponto real. Gramática é usada como exclusão.
Volto ao ponto: quando fará falta imarcescível? Quando você, se não for da área de exatas, utilizou o Teorema de Pitágoras? Eu, como nerd confesso na juventude, admirava a beleza da hipotenusa e dos catetos. Sei identificar oração reduzida de gerúndio e ainda respondo, com rapidez, se alguém me pergunta qual grande rio da África atravessa a linha do Equador duas vezes.
Sempre imagino em qual jantar poderei elogiar a beleza imarcescível da dona da casa e acrescentar um detalhe interessante sobre a hipotenusa grega ou o rio Congo. Claro: o conhecimento não possui apenas esse item bizarro de enciclopédia antiga ou manual de curiosidades. Quais outras funções?
Prestar atenção em uma palavra nova pode ampliar a maneira de perceber o mundo. A velha história (lendária) de que os esquimós teriam mais de cem palavras para descrever branco. A palavra aguça o olhar e aperfeiçoa a mente. Observar que um termo é escrito com “sc” é uma maneira de prestar atenção à escrita e pode, no extremo, tornar meu olhar mais atento ao conteúdo do texto. Se eu passar para a banda do “tanto faz”, é provável que, além da ortografia, eu me descuide do significado de tudo. Um olhar atento a textos e mensagens estimula a cidadania, diminui nossa chance de sermos enganados pela propaganda comercial e política. Tradicionalmente, os grandes ladrões do erário público brasileiro eram sólidos bacharéis, formados em boas universidades e muito atentos ao vernáculo. Ladrões ágrafos são personagens mais recentes. Como Nelson Mandela, ao lutar contra os racistas da África do Sul, achou fundamental entender o africâner, dominar a língua portuguesa pode ter, em algum setor, destaque na consciência política. Conhecimento liberta e torna, no fim, sua capacidade imarcescível, mesmo navegando no rio Congo sobre uma graciosa linha de hipotenusa pitagórica.
O saber não melhora eticamente uma pessoa. Canalhas podem ser cultos e até refinados musicalmente. Ortografia não garante criatividade ou estratégia. Opulência vocabular pode vir acompanhada de fraqueza de ânimo. O conhecimento sempre foi a chave do mundo. Na chamada sociedade 5.0 de smartphones e Google, ele é ainda mais fundamental. Os trilionários do planeta vendem ideias, algoritmos e soluções produtivas muito mais que constroem ferrovias ou extraem plutônio. Gado e soja ainda embasam fortunas. Acima dos empreendedores do agro, grandes especialistas em química, biologia e botânica concentram os verdadeiros ganhos. O fazendeiro rico, na prática, é o proletário dos grandes laboratórios ou dos sistemas logísticos de carga do mundo.
Muita coisa pode ser discutida sobre currículo escolar, caráter prático do conhecimento ou utilidade de tudo. Volto à África do Sul de Mandela: escolas para negros ensinavam trabalhos manuais práticos porque aqueles alunos seriam trabalhadores braçais na cabeça dos organizadores do sistema escolar. Os brancos? Estudavam Filosofia e Literatura: estavam sendo preparados para o controle. Conhecimento é poder. Ensinar só coisas muito práticas é uma excelente estratégia de controle da futura mão de obra. Saber é semear uma esperança imarcescível.
* Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Coragem da Esperança, entre outros