Sempre tive uma relação íntima com a memória. Refugio-me nela com frequência. Agora mais do que antes, pois há tanta coisa boa armazenada. Tempos difíceis nos fazem nostálgicos. Eu já era saudosista antes da pandemia. Agora sou mais ainda. Não consigo pensar como o Dalai Lama, se é que é dele a frase: “Nunca estrague o seu presente por um passado que não tem futuro”. Extraio do passado lições que me servem hoje e me servirão amanhã. Gosto de citar Cecília Meireles: do “jardim das memórias”, só eu tenho a chave! Percorro-o quando quiser. E me delicio com as coisas maravilhosas que vivenciei e que me foram propiciadas.
Aprendi a trabalhar com a memória no ofício judicial. O juiz, principalmente no crime, fica adstrito aos testemunhos. Compenetrei-me que têm razão os antigos, quando chamam o relato humano de “a prostituta das provas”, enquanto que a confissão seria “a rainha das provas”. A palavra é flexível, plástica, pode ser ambígua.
Além disso, memorizar e depor se condiciona a uma série de fatores. A capacidade de percepção, a concatenação das ideias, a atenção aos detalhes, o compartimento onde se guardam as impressões, a qualidade da fala, desde o vernáculo, dispor de vocabulário, a sinonímia, etc. Além do fator emotivo. Cada qual enxerga a cena de acordo com suas singularidades.
Mas de onde vêm os “sete pecados da memória”?
É o nome do livro do psicólogo de Harvard Daniel Schaeter: “Os sete pecados da memória: como a mente esquece e lembra”. Para ele, a tecnologia pode ser útil para a memória, como as agendas digitais que nos notificam sobre compromissos.
Hoje, a internet profissionalizou todas as pessoas, que além de suas ocupações, são também fotógrafas. Tudo é registrado nos celulares. Aquilo que era característica do turista japonês na Europa, com suas máquinas sofisticadas fotografando tudo, hoje é praticado até por crianças. Tudo é registrado e vira mensagem para redes como Instagram, por exemplo.
Quando se fotografa, tem-se a impressão de que a imagem ficou intacta e eternizada. Tem-se à disposição relembrar a viagem. Será que isso não faz esquecer a impressão visual autêntica? Parece que a foto nos dispensa de registrar na lembrança a cena congelada.
De igual forma, o GPS nos dispensa de lembrar o melhor caminho. E as agendas telefônicas nos fazem negligenciar a capacidade de decorar números de familiares e de amigos. Isso acontece até com nossas senhas (e elas não deixam de crescer…). Se elas estão gravadas no celular, qual o sentido de eu ocupar um espaço no meu cérebro para guardá-las?
Tenho sustentado que a educação convencional, quando faz o educando decorar informações que podem ser localizadas com um clique, é irracional. Deixa de lado as competências emocionais, muito mais importantes do que a capacidade mnemônica. Mantenho essa posição, embora não resista a mudar de opinião, quando convencido por argumento mais persuasivo.
O que me preocupa e encontro eco em Schaeter, é a proliferação de inverdades que invadiu o mundo web. A veiculação intensiva de notícias falsas é um perigo para a nossa memória. De tão reiteradas, as mentiras podem se fantasiar de verdades. E há muita meia-verdade bombardeada, com insistente teimosia, nas redes que nos dominam e nos manipulam.
Some-se àquela tendência tão humana de acreditar no mal e desconfiar do bem. Notícias que detonam reputações ganham celeridade e força. Elogios morrem assim que proferidos. A polarização do Brasil, com a criação do espectro “nós versus eles”, é um fator que agrava esse quadro. O professor de psicologia de Harvard apurou que é mais fácil guardar falsidades afinadas com a nossa ideologia do que inverdades que não nos afetam emocionalmente.
É impensável dispensar a tecnologia. Ela nos domina. Quem dá aulas sabe que o alunado está mais atento ao seu mobile do que ao discurso do professor. Por sinal, a mensagem digital é sempre mais interessante, colorida e musicalmente sedutora. Tudo vai piorar com o metaverso. Surgirá o risco de se confundir realidade física e realidade virtual. E vice-versa.
Tem-se de estar atento. E quem está curioso para saber quais são os sete pecados da memória, tem de ler o livro. Não me sinto bem ao me utilizar do spoiler, a divulgação antecipada do final de um livro, filme ou qualquer outra mensagem.
*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras – 2021-2022