Em janeiro de 1945, dois soldados da Força Expedicionária Brasileira, em campanha militar na Itália contra tropas de Mussolini e Hitler, estupram uma jovem de 15 anos de idade no vilarejo de Madognana, em Bolonha. E assassinam seu tio, por chegar ao local do crime.
Condenados à morte pela Justiça Militar, instalada em Pistoia, no teatro das operações, os réus não são executados. O Conselho Penitenciário recomendaria, depois, perdão. Parecer do jurista Roberto Lyra sustentava que os "fatos" (estupro e homicídio) só se explicam pela "brutalidade e pela licença da guerra".
Em uma madrugada de 1976 (a ditadura reprimia os oponentes), jovens brasileiros dispensados do serviço militar dirigem-se ao estádio do Pacaembu, em São Paulo, para cumprir uma formalidade legal estúpida, porém burocraticamente imprescindível para o futuro estudantil e profissional: jurar a bandeira.
Soldados encarregados da recepção dos reservistas, evidentemente armados, aproveitam-se do clima de intimidação generalizada e, na entrada do estádio, pilham alguns meninos, obrigados a entregar o que tinham nos bolsos –maço de cigarro, isqueiro, passe de ônibus e dinheiro.
Em abril de 2019, o músico Evaldo Rosa e o catador de material reciclável Luciano Macedo são fuzilados "por engano" por patrulha irregular do Exército, no Rio de Janeiro. Oitenta disparos. A Justiça Militar condenou oito soldados à prisão, mas nada faz contra comandantes e ideólogos de patrulhamentos irregulares.
Os três episódios parecem insignificantes se observados isoladamente, como desvios de conduta de maus soldados, sobretudo diante da ameaça de desastre nuclear provocado pela guerra de Vladimir Putin.
Mas na guerra e na paz, com todo respeito aos bons soldados, os exércitos são a reserva imoral dos povos.
Drenam recursos que poderiam ser aplicados no bem-estar das populações. Alimentam relações corruptas com a indústria de armas. Legitimam a tortura. Apoiam governantes tiranos. Desprezam a democracia. Tratam a própria podridão como segredo de Estado essencial à segurança nacional.
A Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, força (eufemística) da paz criada pela ONU em 2004, sob o comando do general Augusto Heleno (hoje ministro golpista de Bolsonaro), é acusada de violência contra civis e abusos sexuais.
O Exército norte-americano bombardeia em outubro de 2015, no Afeganistão, hospital da organização Médicos sem Fronteiras, provocando a morte de funcionários e pacientes. Porta-voz da Otan assegura que os "danos colaterais" (terminologia militar para designar com doce naturalidade a morte de civis) seriam investigados.
Daniel Hale, analista militar, é condenado pela justiça dos EUA, em 2021, por vazar documentos secretos comprovando a morte de inocentes decorrente de ataques de drones (aviões não tripulados), até então artefatos de destruição precisos e úteis para guerras cirúrgicas.
A Ucrânia tem mais de um milhão de refugiados. Os tanques avançam.
Matar civis, destruir tudo, maltratar, estuprar, saquear fazem parte da anatomia das guerras e da formação de soldados e oficiais. Por isso, Rússia e EUA não se submetem ao Tribunal Penal Internacional, criado para julgar crimes contra a humanidade.
A guerra de Putin mostra que é ingênuo imaginar a Terra sem exércitos. Mostra também que a livre determinação dos povos e o Direito Internacional são obras de ficção.