quarta-feira, 5 de maio de 2021

Estratégia de vacinação do Brasil apostou no nacionalismo - e não deu certo, Fernando Reinach, OESP

O Brasil se mostrou incapaz de executar um distanciamento social rígido e longo o suficiente para controlar o espalhamento do coronavírus. Temos relaxado as medidas assim que as mortes se estabilizam. 

Nessas condições, a única medida que pode controlar a pandemia, antes que todos sejam infectados, é a vacinação. O consenso nos países que estão controlando a pandemia é de que 70% a 85% da população precisa estar imunizada, pela vacina ou pela infecção, para conter a pandemia. Esses números podem mudar, dependendo das novas variantes. 

Em meados de 2020, o governo definiu sua estratégia inicial. Recusou-se a comprar doses prontas de vacina e apostou na produção local pela Fiocruz e pelo Instituto Butantan. Como não estavam desenvolvendo as próprias vacinas, estes dois fizeram parcerias com produtores estrangeiros: o Butantan com a Sinovac, chinesa, e a Fiocruz com a AstraZeneca. 

Esses contratos de transferência de tecnologia preveem duas etapas. Nos primeiros seis meses de 2021, os institutos receberiam a vacina praticamente pronta em grandes lotes e fariam o envase no Brasil. 

Durante esse período, os dois institutos construiriam fábricas para produzir localmente a vacina (o chamado IFA), de modo que, a partir do segundo semestre, a produção fosse totalmente nacional. Para isso ambas receberam financiamento do governo e doações para construir as fábricas. Se desse certo, o Brasil teria 400 milhões de doses até o fim de 2021, suficientes para vacinar toda a população.

Infelizmente o plano desandou. Estamos no início de maio e apenas 64,5 milhões de doses foram entregues – 32,3% do previsto para o primeiro semestre. Já a importação de IFA tem sofrido atrasos e cortes – as fabricantes não têm cumprido os prazos. 

Muito provavelmente a entrega do IFA correspondente aos primeiros 200 milhões de doses só chegará no segundo semestre. É isso que explica nossa vacinação a conta gotas. Além disso, as fábricas para produção nacional estão atrasadas: a Fiocruz promete agora que a sua estará em operação em setembro, mas sequer conseguiu fechar o contrato de transferência de tecnologia. O Butantan já anunciou que a sua só ficará pronta no início de 2022. 

Para piorar a situação, as duas vacinas em que o Brasil apostou são provavelmente as de menor eficácia. Hoje os cientistas acreditam que as melhores vacinas são as baseadas em mRNA (Pfizer e Moderna). A da AstraZeneca, apesar de aprovada na Europa e no Brasil, ainda não foi aprovada nos EUA. E a Coronavac ainda é pouco conhecida e não se sabe se ela será aprovada pela Organização Mundial da Saúde. 

Para amenizar o problema, o Instituto Butantan resolveu desenvolver em parceria com os americanos a Butanvac, cujos testes em humanos (Fases 1, 2 e 3) sequer foram aprovados pela Anvisa. E, portanto, nada se sabe sobre sua eficácia.

Agora, com a chegada do primeiro milhão de doses da vacina da Pfizer, o Brasil está diversificando suas apostas, o que deveria ter feito um ano atrás. Se a Pfizer entregar de fato 100 milhões de doses até setembro, ela pode vir a ser vacina com mais doses aplicadas no País – já que é pouco provável que o Butantan e a Fiocruz entreguem esse número de doses até lá. 

A partir de agora, a estratégia mais lógica aqui é garantir que Butantan e Fiocruz consigam produzir o IFA o mais rápido possível, e combinar as doses desses programas com as vacinas importadas, de preferência as de tecnologia do mRNA (Pfizer e Moderna) e as que necessitam de somente uma dose (Jansen). Essas vacinas provavelmente vão ser aprovadas para crianças nos próximos meses, o que dificilmente ocorrerá com a Coronavax. Se o governo tiver sucesso nessas negociações, pode ser que consiga aplicar as 400 milhões de doses até o fim do ano. 

Mas uma coisa é certa, chegaremos no fim do ano com mais de 600 mil mortos ao evitarmos o distanciamento social rigoroso. Quantos dessas mortes poderiam ter sido evitadas se a estratégia de vacinação tivesse rejeitado o nacionalismo exacerbado é difícil de saber, mas serão centenas de milhares.

* É BIÓLOGO, PHD EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA CORNELL UNIVERSITY E AUTOR DE A CHEGADA DO NOVO CORONAVÍRUS NO BRASIL; FOLHA DE LÓTUS; E A LONGA MARCHA DOS GRILOS CANIBAIS

 

Hélio Schwartsman - Suborno vacinal, FSP

 Enquanto a maior parte dos países ainda se esforça para conseguir doses de vacinas contra a Covid-19 para cidadãos ávidos por tomá-las, os EUA já começam a ter de lidar com o problema das pessoas que resistem a imunizar-se. Não é uma questão trivial.

Pelo que leio na imprensa americana, especialistas agora estão dizendo que, diante da resistência vacinal, das variantes, das reinfecções e da porosidade das fronteiras, o mais provável é que jamais antinjamos a famosa imunidade de rebanho —o limiar de indivíduos vacinados ou recuperados a partir do qual o vírus já não conseguiria circular numa dada população.

Posto de vacinação em Los Angeles, na Califórnia - Frederic J. Brown/AFP

Isso significa que a doença deve continuar entre nós, causando hospitalizações e mortes —mais ou menos como ocorre com a gripe. O que se espera é que, com a vacinação e revacinações periódicas, consigamos diminuir drasticamente a ocorrência de quadros mais graves, de modo que possamos retomar a normalidade (ainda que com modificações).

Nesse contexto, é importante tentar reduzir tanto quanto possível a resistência à imunização. Pragmáticos, os americanos estão testando ideias para isso. Uma delas, pagar as pessoas para serem vacinadas, pode funcionar. Uma pesquisa da UCLA com americanos ainda não vacinados mostrou que um incentivo de US$ 100 deixaria 34% deles mais propensos a dar o braço à seringa. Se o prêmio for de US$ 50, a proporção cai para 31% e, se for de US$ 25, para 28%.

Será que é ético pagar um indivíduo para fazer o que é melhor para si, como tomar vacinas, parar de fumar, perder peso, tirar boas notas? Muita gente torce o nariz para isso. Vê aí um tipo de corrupção, não apenas dos agentes mas também da própria atividade. Se eu "suborno" alguém para ler um livro, desvirtuo o sentido da educação. Penso exatamente o contrário. Se existe um atalho, ele funciona bem e produz resultados que têm relevância pública, é tolice não utilizá-lo.

Cartada de Mandetta, editorial FSP

 

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta,, da Saúde, em depoimento à CPI da Covid - Jefferson Rudy/Agência Senado/AFP

A estreia da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado sobre o enfrentamento da Covid-19 demonstra que até para se defender de investigação o presidente Jair Bolsonaro, amador e despreparado, só conhece estratagemas truculentos e manobras evasivas.

Foi um passeio o testemunho do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, médico derrubado por Bolsonaro após três meses de tentativas de imprimir alguma racionalidade à ação do Planalto.

O ponto alto da sessão, em que não faltaram senadores a se pavonear retoricamente, foi a carta que Mandetta sacou para comprometer o chefe do Executivo.

A correspondência enviada em 28 de março de 2020 —um mês após o primeiro caso brasileiro, 11 dias depois da primeira morte registrada e 19 dias antes da demissão do ministro— lista informações de gravidade crescente sobre a pandemia e as providências da pasta.

Só o último parágrafo crava o espinho no coração da imputabilidade presidencial: “Recomendamos, expressamente, que a Presidência da República reveja o posicionamento adotado, acompanhando as recomendações do Ministério da Saúde, uma vez que a adoção de medidas em sentido contrário poderá gerar colapso do sistema de saúde e gravíssimas consequências à saúde da população”.

O documento oferece prova material de que Bolsonaro recebeu clara orientação do ministro para interromper arroubos negacionistas e liderar o esforço de guerra contra a epidemia. Naquela altura, os óbitos estavam em 2.000; um ano de incúria e três ministros depois, são mais de 410 mil. Não se vê defesa possível para a conduta mortífera do presidente.

Restam-lhe, ao que parece, manobras fadadas ao fracasso. Seus asseclas no Senado fizeram tentativas canhestras de obstrução e aceitaram o papel de recitar sem convicção arrazoados fraudulentos redigidos em palácio —até uma defesa extemporânea do “tratamento precoce” ensaiaram.

Ainda pior figura fez o general e ex-ministro Eduardo Pazuello, quando já não se esperava tal proeza do militar que obedeceu passivamente ao mando de um admirador da imunidade de rebanho, legando centenas de milhares de cadáveres em tempos de paz.

O homem que foi ao centro de compras sem máscara num dia no outro alega risco de contágio para esquivar-se de responder na CPI pelos próprios atos.

Manobra tão desastrada, diga-se, quanto ensaiar mudar a bula de um medicamento por decreto, como revelou Mandetta aos senadores, apenas para sustentar as manias do chefe. Com defensores desse naipe, Bolsonaro não precisa de inimigos para se complicar na CPI.

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