sexta-feira, 30 de abril de 2021

Atentado do Riocentro golpeou autoridade de Figueiredo e completa 40 anos sem culpados, FSP

 Bernardo Pasqualette

Advogado e autor do livro “Me Esqueçam – Figueiredo: A Biografia de uma Presidência​"

Folha, 16 de outubro de 1978. A principal manchete daquela segunda-feira repercutia uma das primeiras declarações de João Baptista Figueiredo, já na condição de presidente do Brasil: “Prendo quem for contra a abertura”.

Nas páginas do jornal, ficou registrada toda a audácia do general que acabara de ser alçado ao cargo político mais importante do país: “É para abrir mesmo. E quem quiser que não abra, eu prendo, arrebento”.

O recado estava dado. Se era uma promessa, soou como ameaça. Em pouco tempo, aqueles que se opunham ao processo de abertura política testariam a sinceridade de Figueiredo.

Veículo com porta arrebentada e um corpo de um homem recostado no banco do passageiro
Corpo do sargento Guilherme do Rosário, que morreu após uma bomba explodir no veículo em que ele estava, no estacionamento do Riocentro, em 1981 - Anibal Philot - 30.abr.1981/Agência O Globo

Iniciou-se uma série de atentados realizados pelo grupo contrário à flexibilização do regime. Gradativamente, a violência subia de tom. Se no início do governo Figueiredo os atentados eram cometidos na calada da noite e sem vítimas, em agosto de 1980 o surto terrorista mudaria de patamar.

Uma bomba endereçada à OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) vitimou fatalmente uma secretária da instituição. A senhora Lyda Monteiro, uma das funcionárias mais antigas da entidade, desafortunadamente abriu o envelope-bomba.

Sua morte foi dolorosa: esperou a chegada da ambulância por cerca de 20 minutos, consciente e com parte do braço arrancado de seu corpo. Morreria pouco depois em decorrência do trauma torácico, quando ainda se tentava uma transfusão de sangue no Hospital Souza Aguiar, no Rio de Janeiro.

Figueiredo reagia com fingida teatralidade, exibindo arroubos de bravura que não condiziam com a postura de seu governo diante do desafio publicamente lançado.

Na prática, havia mais imobilismo que ação. A complacência das autoridades dirigida às investigações dos primeiros atentados foi interpretada como uma espécie de leniência em relação às ações propriamente ditas. Agora, quem dera o recado fora o outro lado.

A aposta havia sido dobrada.

Travava-se uma guerra particular nos subterrâneos do regime. Seus detalhes eram conhecidos por poucos, mas sua essência tinha como face visível a série de atentados que colocavam em xeque a própria autoridade presidencial. A abertura política lenta, gradual e segura, iniciada no governo Ernesto Geisel, estava sob ameaça.

Diante desse panorama sombrio, chega-se à noite de 30 de abril de 1981. Àquela altura sem adversários a confrontar o regime, o radicalismo de direita fabricava inimigos para justificar a existência extemporânea do aparato repressivo.

Naquela noite, véspera de feriado nacional, seria realizado um show no Riocentro. As 9.892 pessoas que passaram pelas catracas do centro de convenções não imaginavam o risco representado pelo Puma no estacionamento.

Dentro do veículo, dois oficiais do Exército e artefatos explosivos. Para mal dos pecados daqueles que se contrapunham à abertura, uma bomba explodiu antes do previsto, matando um sargento e estripando um capitão.

A deflagração precipitada do artefato trouxe à tona a faceta mais obscura do grupo que se insurgia diante da marcha rumo à democracia.

As investigações jamais chegaram aos culpados. Permanecem inconclusivas até hoje, 40 anos após o sinistro episódio. Comunistas e organizações de esquerda foram apontados como potenciais responsáveis. Forma sem conteúdo. O inquérito aberto para apurar o caso, sob responsabilidade do Exército, acabou arquivado naquele mesmo ano.

Apoplético nos dias subsequentes ao atentado, Figueiredo manteve a valentia em público, mas, na prática, sua postura pretensamente destemida contrastou com a maneira tímida e pouco incisiva com que agiu ante o episódio.

Na primeira entrevista após assumir a Presidência, Figueiredo afirmou que “prenderia e arrebentaria” quem se opusesse à abertura. Pura bravata. Não fez uma coisa nem outra, e o Riocentro restou impune.

O presidente nunca mais conseguiria reaver a autoridade moral que o cargo lhe conferia, e jamais voltaria a exercê-la em sua plenitude após o episódio.

A fatura veio em dose dupla. Golbery do Couto e Silva, então ministro-chefe do Gabinete Civil e idealizador do processo de abertura política, pediu exoneração cerca de três meses após o atentado.

Defensor de uma apuração rigorosa, percebeu que o governo caminhava em direção oposta. Artífice da candidatura de Figueiredo à Presidência, deixou o Planalto batendo a porta e nunca mais avistaria o presidente pessoalmente. Saía de cena o maior estrategista do processo gradual de retorno à democracia.

O coração de Figueiredo também cobraria parte da conta. Sob intensa pressão, o general-presidente acabou por sofrer um infarto que o afastaria temporariamente da Presidência. Rumou a Cleveland, nos Estados Unidos, para tratar de sua saúde, e deixou o comando do país interinamente nas mãos de seu vice, o civil Aureliano Chaves.

Ao retornar ao Brasil, muitos afirmavam que Figueiredo havia se tornado outra pessoa, muito menos paciente e interessado nas questões relativas ao dia a dia da Presidência. Seja como for, o fato é que, após o atentado, nem o governo nem o presidente foram os mesmos.

Ao longo dos anos, a investigação foi reaberta um par de vezes, mas ainda não há julgamento definitivo, tampouco punição aos culpados.

Em 2014, o Ministério Público Federal chegou a denunciar seis pessoas por crimes graves, como tentativa de homicídio e associação criminosa armada. Contudo o processo foi novamente paralisado pela Justiça. Atualmente, há um recurso pendente nas instâncias superiores.

Com o passar do tempo, torna-se cada vez mais remota a possibilidade de punição aos responsáveis.

Mais do que a sensação de impunidade, a falta de respostas lega à história recente do Brasil uma percepção generalizada de que partiram do próprio Estado os esforços para blindar os culpados, eximindo-os de arcar com suas responsabilidades perante a Justiça.

Em um momento em que a ameaça autoritária surge como um perigo real, descobrir o que realmente ocorreu naquela fatídica noite de 30 de abril não satisfaz apenas o imperativo da justiça.

A necessidade de revelar a verdade dos fatos é fundamental para que algo semelhante nunca mais volte a ocorrer. A ausência do resgate de uma memória efetiva sobre o caso não compromete apenas o passado. Faz falta, principalmente, ao futuro do país.

Estão gostando do palhaço?, Ruy Castro, FSP

 Paulo Guedes, ministro-bufo de Jair Bolsonaro encarregado dos esquetes sobre economia, disse que "livro é coisa de rico". E, como sempre, desafinou. Bolsonaro, por exemplo, é rico e não gosta de livros. O último que teve em mãos foi no dia de sua posse —um exemplar da Constituição, que ele jurou defender, mas nunca abriu e na qual cospe com regularidade.

Bolsonaro tem razão em não ligar para livros. Não só porque lê com dificuldade, acompanhando as linhas com a cabeça e tropeçando nas palavras quebradas, mas porque construiu seu patrimônio sem precisar deles, valendo-se apenas do salário de deputado e, dizem, do de seus servidores. A estante ao fundo em seus pronunciamentos no Planalto é cenográfica, com livros comprados a metro. Às vezes variam a cor das lombadas para combinar com sua gravata. Um brincalhão poderia rechear as prateleiras com as obras completas de Karl Marx e Bolsonaro não perceberia.

Esse brincalhão poderia ser Paulo Guedes. Numa trupe de momos como Abraham Weintraub, Ernesto Araújo e Eduardo Pazuello, era difícil notá-lo no picadeiro. À medida que eles foram sendo defenestrados, Guedes saltou para o centro da lona e nunca mais perdeu uma oportunidade de dizer besteira. Exprobou as domésticas por irem à Disney, tachou os servidores públicos de parasitas, acusou os pobres de destruir o meio ambiente e ainda os condenou por não saberem poupar e só pensarem em consumir.

Como o show não pode parar, Guedes há pouco criticou o brasileiro por "querer viver 100, 120, 130 anos" e sobrecarregar a Previdência. Deu mais uma cotovelada na China, acusando-a de ter inventado o vírus e vender uma vacina de segunda. E avisou o IBGE que não lhe mandaria dinheiro para fazer o Censo porque "quem muito pergunta ouve o que não quer".

Está certo. Imagine se, em meio ao espetáculo, alguém perguntar ao público se estão gostando do palhaço.

Hélio Schwartsman- Viés de imunidade, FSP

Contra os vieses lutam os próprios deuses em vão. Uma das ilusões cognitivas mais danosas e esquisitas de que se tem notícia é a falácia do planejamento, que pode ser definida como a tendência de pessoas e instituições de subestimar o tempo e os recursos necessários para a realização de um projeto.

Ela é danosa porque leva governos, empresas e indivíduos a comprometer-se com orçamentos e cronogramas que não conseguirão cumprir, incorrendo em custos adicionais. E é esquisita porque, mesmo sabendo que o viés existe —qual governo ignora que orçamentos estouram e obras atrasam?—, temos enorme dificuldade para compensá-lo —e é por isso que orçamentos continuam estourando e obras atrasando.

Algo parecido ocorre em relação à Covid-19. Ao menos desde outubro, quando países europeus começaram a apresentar expressivos aumentos de casos, sabíamos que segundas ondas eram possíveis. Aqui no Brasil, mesmo cientes desse perigo, escolhemos ignorá-lo e relaxamos os cuidados assim que os números da primeira onda trouxeram um alívio.

Não somos só nós. Os indianos, mesmo tendo assistido ao que aconteceu na Europa, nos EUA e no Brasil, julgaram-se imunes ao problema e decretaram a volta à normalidade antes da hora. O resultado é a tragédia numa escala que ainda não havíamos visto.

A falácia do planejamento foi identificada pela dupla de psicólogos Daniel Kahneman e Amos Tversky e é uma das modalidades do viés de otimismo que afeta nossa espécie quando julgamos nossas próprias capacidades. Mesmo sabendo que não há razões objetivas para tal, nos comportamos como se operássemos sempre acima da média e não precisássemos nos preocupar com os cenários mais negativos.

O melhor modo de escapar ao excesso de otimismo é incorporar o princípio da mediocridade. Não temos nada de especial. Se em algum lugar do mundo houve terceira onda, temos de estar prontos para ela.