Marcelo Godoy, O Estado de S.Paulo
12 de outubro de 2020 | 05h00
Pesquisadores criaram um guia prático para partidos e candidatos pautarem seus planos de governo pela ciência. Ele conta com 193 itens sobre as principais necessidades das cidades brasileiras e foi desenvolvido pelo Centro de Síntese- Cidades Globais e pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), com base nos objetivos do desenvolvimento sustentável das Nações Unidas para 2030, articulando-se com uma retomada verde da economia brasileira após a pandemia de covid-19.
“Nossa ideia é que essa agenda seja absolutamente suprapartidária e seja usada tanto por candidatos como pela população. Construímos itens gerais, que dão orientação para onde ir”, afirmou o professor Marcos Buckeridge, um dos coordenadores do trabalho. Cerca de 45% dos itens da agenda abordam temas das áreas de Educação (34 itens), Saneamento (30 itens) e Saúde (25 itens). As metas sobre mudanças climáticas são 18 dos itens e outras 17 são relacionadas diretamente com o meio ambiente. Todas as áreas estão inter-relacionadas com as demais, privilegiando a transversalidade dos temas.
A agenda elaborada por USP Cidades Globais se junta a duas outras publicadas neste ano por entidades da sociedade civil que também defendem que a retomada no pós-pandemia seja feita em bases sustentáveis: a da Rede Nossa São Paulo/Fundação Tide Setúbal e a do grupo C40, uma articulação internacional de grandes cidades – liderada pelo ex-prefeito de Nova York Michael Bloomberg – para promover políticas de combate às mudanças climáticas. Em comum, todas as propostas aliam o desenvolvimento sustentável ao combate à desigualdade no pós-pandemia.
Os autores do novo guia acreditam que unir o combate às mudanças climáticas com a redução das desigualdades na cidade é uma forma de se obter uma cidade mais saudável. “Todos têm a ganhar com uma cidade mais saudável. O ar poluído se respira nos Jardins e na periferia”, disse Buckeridge. Os pesquisadores agora vão trabalhar para relacionar ao guia os textos de 1,45 mil teses acadêmicas que tratam de políticas urbanas. “Nosso objetivo é que o gestor tenha à sua disposição os itens relacionados ao desenvolvimento sustentável e a indicação do que foi produzido como ciência a esse respeito.”
Muitas das ações do guia envolvem sugestões para o direcionamento de compras governamentais, como privilegiar as pequenas e médias empresas e a agricultura familiar. “Pensamos em um modelo de desenvolvimento como o alemão, de um capitalismo sustentável, que tem uma quantidade enorme de pequenas empresas.”
O guia traz ainda, como pontos principais, a criação de oportunidades para mulheres, negros e LGBTs e de hortas comunitárias para populações vulneráveis a fim de combater a desigualdade nas cidades bem como indica a substituição da frota de ônibus e de caminhões movidos a combustível fóssil das prefeituras por veículos que usem energia limpa e até o uso da telemedicina para ampliar o acesso da população à saúde.
Negacionismo
Ao relacionar as políticas públicas aos critérios de ciência, além da equidade, o guia da USP reforça uma tendência observada por cientistas políticos nesta eleição que é o surgimento de uma nova polarização na política: a divisão entre os que se sujeitam à ciência e seus conhecimentos e os que tem uma atitude negacionista em relação ao conhecimento, algo acentuado com a pandemia de covid-19.
“A pandemia é o primeiro evento que recupera a política como forma de resolver os problemas da comunidade”, disse o cientista político José Álvaro Moisés. Para ele, essa recuperação mostrou a importância da saúde pública e do combate à desigualdade. Moisés ainda julga ser notável o fato de que esse debate venha da sociedade civil e não dos partidos. “Uma multiplicidade de organizações que está operando temas como o desenvolvimento sustentável.”
Abandono
O papel dos partidos no debate é criticado pelo vereador paulistano Gilberto Natalini (sem partido). “Ninguém está falando da agenda verde como devia.” Após cinco mandatos consecutivos, ele decidiu não concorrer neste ano e romper com seu partido, o PV. “Aprovamos em 2009 a Lei de Mudanças do Clima, mas quase nada saiu do papel. Há um abandono da agenda sustentável.” Em um dos seus últimos atos na Câmara, Natalini vai fazer uma audiência pública para discutir o guia da USP. “É necessário ter uma cidade sobretudo mais viável.”
Máfia em manancial e frota de veículos são desafios
A devastação da Mata Atlântica em área de mananciais e o desafio de se criar uma frota de ônibus ecológica são alguns dos desafios que o futuro prefeito deve enfrentar. A 2.ª edição do Dossiê sobre a devastação da Mata Atlântica em São Paulo mostra que de 2019 para 2020 a área passou de 3 milhões de m² para 7,6 milhões de m² (1,2 milhão de árvores derrubadas). Tudo em nome da criação de loteamentos clandestinos que renderam R$ 2 bilhões a criminosos, a maioria ligada ao Primeiro Comando da Capital (PCC).
“Não é só o crime. Há ainda redução das árvores plantadas pela Prefeitura, de 200 mil por ano para 18 mil em 2019”, diz o vereador Gilberto Natalini (sem partido). Ele criticou ainda a falta de inspeção veicular e a pequena frota ecológica de ônibus. Há 17 ônibus elétricos a bateria e 210 trólebus na cidade.
A Secretaria do Verde e do Meio Ambiente (SVMA) informou que em 2019 foram plantadas 38.741 mudas e até agosto de 2020, 23.189 mudas. A SVMA informou que não há previsão para retomada da inspeção veicular. Segundo a Prefeitura, desde 2017, “5.882 ônibus novos mais sustentáveis e menos poluentes foram incluídos no sistema (41,94% da frota)”. O novo contrato do transporte público obriga as empresas a zerar em 20 anos as emissões de dióxido de carbono, óxido de nitrogênio e material particulado.
Para entender: Nações Unidas têm ‘objetivos’
Pouco conhecidos no Brasil, os chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) são uma iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU) em sua agenda socioambiental. Ao todo, o plano estabelece 17 objetivos, como o combate à pobreza e à desigualdade econômica, a promoção de uma sociedade mais saudável e a gestão adequada de recursos naturais.
Os objetivos foram traçados em 2015 por chefes e representantes de 193 Estados membros da ONU reunidos em Nova York a fim de criar um plano de ação global para os próximos 15 anos, definindo prioridades para políticas públicas dos países até 2030. A criação do ODS é parte de um debate que envolveu reuniões desde as conferências de Estocolmo (1972), Rio de Janeiro (1992), Johannesburgo (2002) e Rio+20 (2012).