sexta-feira, 21 de agosto de 2020

ROBERTO LIVIANU Quarentenas seletivas?, FSP

 Roberto Livianu

Procurador de Justiça e doutor em direito pela USP, é idealizador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção

Desde março, quarentena é uma das palavras que mais ouvimos no contexto da privação de liberdade imposta à humanidade em virtude da Covid-19. A frieza materialista com que se pratica corrupção é a mesma, na pandemia ou fora dela, mercadejando-se respiradores falsificados ou grandemente superfaturados, evidenciando-se que, diante da oportunidade para a prática ilícita —o decreto de calamidade—, as fraudes são praticadas.

Há conflitos de interesses permanentes no Brasil, e poucos se preocupam com os limites éticos inibidores que deveriam ser observados. A quarentena não médica, mas ética, é uma das mais interessantes ferramentas preventivas, porém de pouca utilização entre nós. Ela foi muito debatida nas últimas semanas após proposição feita pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, em meio a um julgamento no CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

O procurador de Justiça Roberto Livianu
O procurador de Justiça Roberto Livianu - Zanone Fraissat - 4.dez.18/Folhapress

Ele sugere que juízes e membros do Ministério Público —e apenas eles— observem quarentenas de oito anos para poderem se candidatar a cargos eletivos, depois de aposentados ou exonerados. Não revelou como chegou a esse número, superior à pena aplicada para muitos homicídios cometidos no Brasil. Registre-se que em país nenhum do mundo existe período de quarentena com tamanho tempo de duração. E, na ativa, nenhum juiz hoje pode ser candidato; no MP, só quem ingressou antes de outubro de 1988.

Tudo nos leva a crer que a lógica de Toffoli partiu do raciocínio de que o poder de influência de magistrados e membros do MP, derivado de suas funções, deveria obrigá-los a cumprir quarentenas para que as competições pelo poder ficassem niveladas a outros concorrentes.

Concordo plenamente com o conceito de tais salvaguardas republicanas, desde que aplicadas de forma isonômica. Sem qualquer espécie de seletividade, pois a seletividade estraçalha a proposição. A meu ver, portanto, todas as atividades cujos agentes possam ter poder de influência relevante devem observar quarentena equivalente para que se assegure competitividade.

Refiro-me a quem atua nas polícias, por exemplo. É óbvio que, pela natureza de suas funções, policiais lidam com o público, adquirem influência, e o serviço que prestam pode gerar potencial político —da mesma forma que os defensores públicos. Hoje, no Congresso Nacional, temos dezenas de policiais e defensores públicos que não cumpriram quarentena para suas candidaturas. A regra deverá valer também para os oficiais das Forças Armadas e para a advocacia pública, qualquer que seja o nível —federal, estadual ou municipal.

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Agora vamos alterar o plano da análise para outra esfera, na qual penso que a lógica não deveria ser diferente. Vamos a um líder associativo, que tenha amealhado poder de influência em virtude dessa militância: deve-se observar quarentena. A competição ficaria desequilibrada com os demais se ele não a respeita.

E o líder religioso? É equilibrada uma disputa em que ele se desligue da atividade e imediatamente se lance candidato a cargo eletivo? Isso é respeitoso aos demais postulantes ao poder que não tiveram a mesma oportunidade? E os comunicadores, influenciadores digitais e apresentadores de televisão, que constroem elos profundos com os eleitores, que tocam suas almas, capturando-as pedaço por pedaço, dia após dia. Seria justo, ético e razoável que todos eles também observassem a quarentena.

E as quarentenas para evitar aventuras políticas de indivíduos que se elegem prefeitos apenas para usar o mandato como trampolim para, dois anos depois, elegerem-se governadores? E as quarentenas para evitar que indivíduos se elejam vereadores ou deputados e, cuspindo nos votos dos eleitores, assumam outros cargos politicamente mais interessantes em secretarias ou ministérios, deixando o mandato eletivo nas mãos de alguém literalmente desconhecido?

E a Procuradoria-Geral da República, que lidera uma instituição defensora constitucional da ordem jurídica e do regime democrático —não seria o caso de haver uma quarentena em relação à nomeação aos cargos de ministro do STJ, do TCU ou do STF? Quarentenas jamais poderão ser pensadas seletivamente. Devem respeitar o princípio da igualdade de todos perante a lei.

Ruy Castro A primeira garrafa do dia, FSP

 

Amigos me ligam para dizer que temem estar bebendo além da conta na pandemia. Quando um bebedor admite isso é porque já está bebendo além da conta. Uma constante nessa admissão é que, ao descrever uma jornada alcoólica mais animada, não o fazem mais com a antiga memória eufórica, mas com culpa —principalmente porque, no confinamento, os cadáveres, digo, as garrafas vazias, se acumulam à vista da família, que pode enfim contá-las.

É verdade que, na situação atual, não faltam explicações para esse súbito além da conta: solidão, ansiedade, perda financeira, estresse, medo da morte. Mas os estudos sobre as alterações no consumo de álcool em crises de massa no passado —atentados terroristas, guerras, desastres naturais, depressão econômica— provaram que o abuso do álcool era predominante em pessoas que já tinham problema com bebida.

Essa conclusão também confirma várias pesquisas nos últimos 50 anos, segundo as quais pessoas sem graves problemas emocionais tendem a beber tanto quanto as que têm os mesmos problemas. Daí a tese de que as pessoas nem sempre bebem porque têm problemas, embora sempre tenham problemas porque bebem, e aquelas cujo organismo não é predisposto à bebida não beberão. Donde não são assim tão críveis os motivos que alegam para justificar por que estão bebendo tanto. Não são motivos, são pretextos.

Pode acontecer também que, por se ter mais tempo para beber pela permanência em casa, o abuso esteja levando à dependência pessoas que, até então, tinham só uma tolerância ao álcool acima do normal. Na dependência, como se sabe, já não se bebe pelo prazer, mas para não se sentir mal —porque o organismo não passa mais sem o produto.

Qualquer família pode certificar-se se um de seus membros está correndo esse risco. É só observar se, a cada dia, a primeira garrafa é aberta mais cedo.

Idosa pede mais cerveja e ganha lote em casa nos EUA
Idosa nos EUA brinca pedindo mais cerveja - Reprodução
Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

O QUE A FOLHA PENSA - Invasão da intimidade, FSP

 Num mundo em que se esfumaçam as fronteiras entre esfera pública e vida privada, a violação da intimidade converte-se em prática corrente tanto no âmbito das redes sociais quanto na vida cotidiana.

A invasão persecutória da privacidade alheia e a organização informal de tribunais moralistas para vigiar costumes e condenar indivíduos são males que sobrevivem, em novos moldes, nos tempos atuais. Dois episódios deploráveis, embora em graus diferentes, exemplificaram esse estado de coisas nos últimos dias.

O primeiro deles foi a divulgação hedionda, por parte de uma ativista de extrema direita, do nome de uma menina de 10 anos de idade vítima de estupro e submetida a um aborto legal. Trata-se de exemplo acabado da barbárie a que pode chegar a chamada guerra cultural, insuflada no Brasil e em outros países por grupelhos radicais.

O segundo caso é o da professora que foi ameaçada, em São Paulo, por circular despida no interior de sua residência. Em distanciamento social, circunscrita ao apartamento em que vive, viu-se vítima de bisbilhotice insidiosa de moradores de prédio próximo, ávidos por imiscuir-se em sua vida íntima e expô-la a constrangimento.

Sem que a mulher suspeitasse, imagens dela em trajes íntimos ou desnuda estavam sendo registradas por pessoas que se dedicavam à tarefa patológica e ilegal de policiar o comportamento privado de outrem com intuitos pérfidos.

A professora tomou conhecimento das imagens quando o zelador do condomínio vizinho procurou funcionários de seu edifício e afirmou estar ali em nome de moradores que cobravam a aplicação de medidas disciplinares.

Ao consultar uma advogada criminalista, a vítima conheceu com mais detalhes o tipo de amparo oferecido, nessas circunstâncias, pelo Código Penal —que veda a produção de imagens de nudez sem autorização do indivíduo e também a divulgação para terceiros.

Além das providências legais, a professora encontrou um modo criativo e eficaz de responder ao patrulhamento. Com a ajuda de uma amiga artista, confeccionou um cartaz com os diversos artigos do Código em que se enquadram os atos dos vizinhos e o afixou na parte externa de sua janela.

A imagem, desta vez legal, dessa imaginosa reação civilizatória circulou nos veículos de comunicação como um oportuno testemunho do exercício da cidadania.

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