domingo, 10 de maio de 2020

Por que não limitar potência de motores de carros a 80 km/h e legalizar todas as drogas?, FSP (definitivo)

O Inserm, instituto de pesquisa médica francês, tem grande prestígio internacional. Trouxe dois prêmios Nobel para a França. Teve em seus quadros um geneticista de projeção, o dr. Alex Kahn.
Há quatro semanas, o dr. Kahn deu uma entrevista para a rádio France Culture. Perguntado sobre como via a humanidade depois da epidemia do coronavírus, concluiu assim:
“A apreciação do sucesso das nações vai ser modificada de modo muito profundo. Há apenas dois ou três meses, dizia-se com frequência: a América de Trump é um imenso sucesso econômico. O cataclismo e o balanço da pandemia do coronavírus será pior nos Estados Unidos da América que na maioria dos outros países do mundo porque houve um total desabamento do sistema de saúde, agravado pela política de Trump quando ele suprimiu o Obamacare. Ora, quando se pergunta às pessoas, elas não têm preocupação mais importante que conservar a saúde, porque a saúde permite todo o resto: a alegria, a festa, o amor, ser educado e viver em melhores condições. Saúde antes de tudo. Portanto, as nações não serão julgadas unicamente pelo seu PIB ou mesmo pela sua taxa de desemprego. As nações serão apreciadas pela capacidade de proteger da melhor maneira possível seus concidadãos, e essa visão de que a saúde é unicamente um peso, um setor de gastos, um risco é uma visão que, durante alguns anos, vai desaparecer. E isso é bom, porque a saúde é o valor de base que permite essencialmente todos os outros valores.”
As análises do dr. Kahn são mais do que convincentes. Sua conclusão, no entanto, repousa sobre um otimismo que me parece excessivo. Exige a confiança na humanidade que me faz falta.
No entanto, contagiado pelo otimismo do dr. Kahn, tenho propostas pós-confinamento. Elas são perfeitamente utópicas, implausíveis. Mas vá lá, arrisco.
Uma das consequências positivas da epidemia foi a diminuição dos acidentes no trânsito. Em tempos normais, os números de mortos e feridos, sobretudo no Brasil, em desastres de automóvel, são avassaladoresAtingem, de modo particular, a população jovem. Situam-se entre 40 e 50 mil as indenizações das seguradoras por morte; o que pressupõe cifras reais mais altas.
Pois bem. Neste país, as estradas em más condições e saturadas, a sinalização ruim, os controles insuficientes, sem contar a barbárie espontânea que parece brotar em algumas pessoas ao dirigir, nos projeta entre os países com trânsito mais letal.
Por que não limitar a potência dos motores a 80 km por hora? Não estou me referindo à limitação determinada por imposição nas estradas, às placas e radares. Proponho que os motores sejam travados.
O Insurance Institute for Highway Safety norte-americano constatou que, para cada aumento de 8 km/h no limite de velocidade de uma rodovia, as mortes crescem 8,5%. Ninguém precisa ir a mais de 80 km/h, a não ser ambulância, carro de bombeiro e de polícia.
Levaríamos um pouco mais de tempo, não muito, nas viagens. Uma ou duas horas a mais para irmos de São Paulo ao Rio: o que isso significa diante das vidas salvas, dos inválidos evitados?
Ridículo. Imagino a revolta furiosa se o Brasil, ou qualquer país, determinasse tal medida. Para muita gente, o automóvel é sacrossanto, é um sonho de realizações na vida, é suprema vaidade. A potência do motor como que aumenta a potência da alma humana. Imagino os defensores das liberdades liberais berrando contra a indevida interferência do governo na autonomia pessoal.
No entanto, seria simples e eficaz.
O confinamento baixou também o índice de criminalidade. Pode ficar ainda melhor se houver legalização de todas as drogas, como se faz hoje para o álcool. Não digo apenas para a maconha, o que já vem sendo feito em vários países com sucesso, e que não é impossível um dia chegar ao Brasil. Falo de todas as drogas, duras ou moles.
É evidente. Enquanto houver pessoas que as quiserem, haverá consumo de drogas. Não há repressão que impeça. Ela, a repressão, só amplia a criminalidade em números astronômicos.
Gente que não usa drogas, como eu, deixaria de ser vítima da violência. Aqueles que consomem de modo equilibrado, como alguns consomem álcool, viveriam suas vidas. Os dependentes, como os alcoólatras, teriam assistência e apoio. E as prisões se esvaziariam.
Ok: é o confinamento que me faz delirar.
Podemos esperar o quê, então, depois da epidemia? O pior. Porque, nesse sentido, a humanidade nunca decepciona. E porque, se vier melhora, mesmo que pequenina, estaremos no lucro.
Jorge Coli
Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

Mesmo com ELA em estágio avançado, Nirlando Beirão foi capaz de escrever livro, Drauzio Varella, FSP


O nome é forte, inesquecível. O dono dele, ainda mais.
Eu o conheci no início dos anos 1980, quando começou a namorar a também jornalista Marta Góes, amiga inseparável da Regina, minha mulher.
Ilustração de pessoa com sobrancelhas, bigode e barba brancos com as mãos levantadas para frente. Há figuras rosas de formatos variados que partem da pessoa e se espalham pela imagem toda
Líbero/Folhapress
Naquele dia, não imaginei que a amizade das duas nos aproximaria pelo resto da vida.
Fomos amigos íntimos por quase quatro décadas, período em que acompanhei sua passagem pelos jornais e revistas mais importantes da nossa imprensa. Entre os pares, seus textos eram reconhecidos como dos mais brilhantes do jornalismo brasileiro. Só ouvi elogios dos que trabalharam com ele.
Quatro anos atrás, num jantar em casa de amigos, ele falou de problemas nos joelhos e no quadril resistentes às infiltrações que o ortopedista aplicava. No fim, Regina e eu demos carona para ele e Marta. Ele desceu do carro apoiado no ombro dela, com passos trôpegos. Não gostei. Já vira aquela marcha em afecções neurológicas.
No dia seguinte, pedi que consultasse um neurologista.
O diagnóstico foi o de uma doença degenerativa conhecida como ELA (esclerose lateral amiotrófica), caracterizada por perda progressiva da atividade motora, alterações de sensibilidade, fraqueza muscular e restrição dos movimentos.
Os tratamentos são paliativos. O curso é variável. Vai do caso do marido de uma de minhas pacientes que, entre cair antes de chegar na bola para bater um pênalti e o dia da morte, passaram-se dez meses, ao do físico Stephen Hawking que conviveu com as limitações físicas durante décadas.
Nos meses seguintes, a marcha se tornou mais desequilibrada, com tropeços que o fizeram ir ao chão algumas vezes. Para ter mais firmeza, passou a andar de bengala, costume que acrescentava certo charme à figura do homem bonito que era.
O perigo das quedas o levou a comprar uma cadeira de rodas para sair à rua, que logo seria necessária para os deslocamentos em casa.
Nos quatro anos seguintes, a motricidade foi debilitada de forma gradual até comprometer a capacidade de se manter em pé, movimentar braços e pernas do lado esquerdo ou virar o corpo na cama. Mesmo afetados, os membros do lado direito resistiram mais. Passava os dias na cadeira de rodas elétrica, dirigida com o que lhe restava de movimento na mão direita.
Impiedosa, a degeneração chegou aos músculos da fala. Articulava as palavras como se estivesse bêbado, a única que ainda o compreendia era Marta, companheira atenta e amorosa. Alguns meses mais, nem ela.
A paralisia da musculatura da deglutição o obrigou a aceitar a sonda gástrica. Perdeu o prazer dos vinhos de que mais gostava.
Em contraste com a devastação motora, na ELA a cognição permanece intacta.
O paciente assiste à paralisação dos músculos, à incapacidade de articular as palavras, de engolir sem engasgar e de realizar as tarefas mais insignificantes sem o auxílio de cuidadores, com o entendimento claro de tudo o que se passa com ele e os que o cercam.
Enquanto a doença apertava o cerco, Nirlando manteve a racionalidade e a consciência de que era preciso viver sem levar em conta as amarguras que a sorte lhe reservara. Por capricho do destino, os últimos movimentos perdidos foram os do polegar, do indicador e do dedo médio da mão direita que, apesar de combalidos, permitiram que escrevesse o livro “Meus Começos e meu Fim” e as colunas da Carta Capital, revista em que ocupava o cargo de redator-chefe.
Nunca ouvi um lamento, queixa ou comentário negativo a respeito da condição em que se encontrava.
Para falarmos das limitações que a doença impunha, eu precisava insistir, jamais partia dele a iniciativa.
Com os três dedos da mão direita que teimavam desobedecer ao comando cerebral, conseguiu escrever até minutos antes da crise definitiva de falta de ar.
Quanta coragem, querido amigo, quanto discernimento e sabedoria para extrair do mistério de estar vivo o último fiapo de prazer intelectual.
Drauzio Varella
Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.