terça-feira, 24 de março de 2020

Holding que controla JBS recusa antecipar R$ 7,5 bi da leniência contra coronavírus, FSP

J&F alegou questões financeiras para negar proposta do Ministério Público Federal

BRASÍLIA
Holding que controla a JBS, dos irmãos Joesley e Wesley Batista, a J&F recusou proposta de antecipar R$ 11,4 bilhões em pagamentos acertados no seu acordo de leniência.
A sugestão foi feita pelo MPF (Ministério Público Federal) na última sexta (20), com o propósito de que a maior parte dos recursos (R$ 7,5 bilhões) seja destinada ao enfrentamento ao novo coronavírus.
Segundo a Procuradoria da República no Distrito Federal, em reunião por videoconferência, representantes do grupo empresarial não concordaram com a antecipação, alegando questões financeiras.
O MPF em Brasília propôs em petição enviada à Justiça que os valores não pagos pela JBS sejam desembolsados ainda neste semestre.
Nos termos originalmente pactuados na leniência, espécie de delação premiada para pessoas jurídicas, o pagamento tem de ser feito em parcelas, até 2041.
Por ora, foram quitadas cinco prestações de R$ 50 milhões cada. Os R$ 11,4 bilhões são o saldo remanescente.
Por se tratar de um acordo, a J&F, os fundos, a Caixa e o BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social) têm de concordar com a antecipação.
No entanto, o grupo empresarial não aderiu à proposta.
O acordo foi firmado em 2017 com a força-tarefa Greenfield, grupo de procuradores que investigou danos à administração pública e aos fundos de pensão decorrentes de crimes praticados pelos executivos da J&F —originalmente, o valor acertado era de R$ 10,3 bilhões, mas ele vem sendo corrigido.
No âmbito criminal, os executivos do grupo firmaram acordo de delação premiada e confessaram ilícitos.
Para a Greenfield, o adiantamento das prestações mostra-se “adequado diante da completa alteração do cenário antes existente quando o acordo de leniência foi assinado”.
Os procuradores sustentam que a J&F tem condições de levantar quantia até maior que os R$ 11,4 bilhões para antecipação.
“Esse valor se encontra hoje depositado em conta de garantia vinculada ao processo de arbitragem em curso entre a J&F e CA Investiment (Brazil) S.A., que trata da alienação de participação e controle acionário da Eldorado S.A”, afirmam.
Os investigadores ressaltam ainda que “o grupo de empresas da holding J&F apresenta alta capacidade financeira, podendo obter rapidamente recursos no mercado financeiro e nos caixas de suas empresas para o cumprimento de seus deveres contratuais e cívicos”.
A J&F, em nota enviada à Folha, afirmou que “todos os esforços” de suas empresas, “de Joesley e Wesley Batista estão direcionados para o combate ao coronavírus e à manutenção dos empregos gerados pela holding”.
“No Brasil, o grupo emprega mais de 130 mil pessoas diretamente e 500 mil indiretamente. Na maior crise de saúde pública e, possivelmente, o maior desafio econômico e financeiro mundial dos últimos tempos todas as decisões precisam de racionalidade e principalmente responsabilidade tanto da empresa quanto da força-tarefa Greenfield”, acrescentou.
Como noticiou a Folha nesta sexta (20), movimento semelhante ao do MPF em Brasília está sendo preparado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras. Ele pretende destinar recursos de multas pagas por meio de acordos de delação premiada para o Ministério da Saúde. O objetivo também é que o dinheiro seja prioritariamente gasto com o enfrentamento ao novo coronavírus.
Segundo pessoas que participam de tratativas da PGR (Procuradoria-Geral da República) com colaboradores, a previsão de carimbar esses valores deve valer para a repactuação do acordo de executivos da JBS.
Uma das colaborarações em estágio avançado é a do empresário Eike Batista.
No caso da JBS, Aras propôs o pagamento de R$ 2 bilhões por conta dos crimes cometidos pelos irmãos Joesley e Wesley Batista, além do ex-diretor de Relações Institucionais do grupo empresarial, Ricardo Saud.
Esse montante não se confunde com o pactuado na leniência.
A ideia é que, do total, R$ 500 milhões sejam pagos à vista e componham um fundo da Saúde para ser prioritariamente gastos em ações contra a pandemia.
O restante, segundo os termos propostos, terá de ser dividido em dez parcelas mensais de R$ 150 milhões. Essa fatia dos recursos também seria prioritariamente carreada à saúde —podendo, no entanto, ser investida em outras áreas, caso não haja mais necessidade no futuro.
A assinatura da reepactuação estava prevista para a sexta (20), mas emperrou porque a defesa dos irmãos Batista questionou a cifra de R$ 2 bilhões, apresentando uma contraproposta de R$ 200 milhões.
Segundo pessoas com acesso às discussões, a expectativa, no entanto, é de que os dois lados cheguem a um denominador comum até junho, quando o STF (Supremo Tribunal Federal) decide se homologa a rescisão do acordo original dos executivos da JBS.​

O homem do século 21 entra em colapso por ter de responder a emails e mudar as fraldas dos filhos, FSP

Pandemia terá como mérito mostrar a eles como é a vida normal das mulheres

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A cabeça está em crise, dizem os jornais. Com o corona à solta e o pessoal em quarentena, há sinais de loucura aqui e ali.
Leio, por exemplo, que os homens da classe média ou média alta são os mais afetados. Um deles confessa: não é fácil continuar trabalhando (em casa), cuidar dos filhos (em casa) e manter a relação conjugal nos mínimos olímpicos (em casa).
Ilustração dos 4 cavaleiros do apocalipse
Angelo Abu/Folhapress
Pois é. Parece que a pandemia terá como principal mérito mostrar aos homens —o sexo forte, certo?— como é a vida normal das mulheres, obrigadas a fazer tudo isso sem reclamar.
Pessoalmente, relatos desse tipo provocam-me uma certa náusea. O problema é ter lido história, sobretudo as cartas que os rapazes escreviam nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial (1914– 1918) com as balas do inimigo voando sobre a cabeça.
O homem do século 21 entra em colapso porque tem de responder a emails e mudar as fraldas dos filhos. É impossível não verter uma lágrima pelos infelizes.
Mas o problema não é apenas pessoal. É civilizacional. O sociólogo Frank Furedi, que tem escrito na virtual Spiked os melhores textos sobre a pandemia em curso, há vários anos que se debruça sobre a forma como a cultura do medo passou a dominar os espíritos ocidentais.
Em “How Fear Works: Culture of Fear in the 21st Century”, um trabalho de 2018 que merece ser lido para entendermos melhor a desgraça humana em que nos tornamos, Furedi não se ocupa apenas dos grandes medos —guerras, pandemias, terrorismos etc.
Essa cultura de temor e tremor começa nas pequenas coisas: na dieta (tudo é cancerígeno), nos estilos de vida (não fazer jogging é fatal), na educação das crianças (há pedófilos em todas as esquinas), na relação entre os sexos (todos os homens são predadores).
Por outras palavras: nos últimos 40 anos, o Ocidente foi alargando cada vez mais os objetos que nos provocam pavor. Até chegarmos, sem surpresas, a alunos universitários que temem certas matérias “desconfortáveis”, exigem “safe spaces” e batalham contra “microagressões”.
Os nossos antepassados temiam os Quatro Cavaleiros do Apocalipse— a guerra, a peste, a fome e a morte.
Hoje, existem milhares de cavaleiros do apocalipse, sempre prontos para nos atacarem.
Isso tem um preço, avisa Frank Furedi: uma mudança no próprio estatuto de pessoa. Deixamos de ser agentes de resiliência, prontos a enfrentar os desafios como parte da experiência humana, e nos perspetivamos como seres desprotegidos, em risco, emocionalmente frágeis —vítimas eternas de um mundo que conspira para nos destruir.
Se a cultura do medo fosse apenas um problema psicológico, isso já seria lamentável. Mas o que começa por ser um problema psicológico acaba por se metastizar em problema político crucial: quem acredita viver no estado da natureza, onde a vida é “solitária, pobre, sórdida, brutal e curta” (Thomas Hobbes dixit), anseia sempre por um novo Leviatã.
E não faltam tiranos, ou candidatos a tiranos, dispostos a embalar o nosso medo com doses cada vez mais crescentes de segurança e vigilância.
Na Hungria, por exemplo, o governo de Viktor Orbán prepara-se para aprovar um “estado de emergência” na luta contra o vírus por prazo ilimitado —uma aberração constitucional e antidemocrática.
Não será caso único: o patrimônio moral que permitiu a emergência do liberalismo político —autonomia, liberdade, antiautoritarismo, limitação do poder— já estava em erosão. A crise do novo coronavírus pode ser apenas o golpe de misericórdia que faltava.
E quem lutará contra isso? O homem aterrorizado do século 21?
Não me matem de riso. Se, por hipótese fantasiosa, alguém dissesse que tinha a cura milagrosa para a Covid-19, exigindo apenas em troca algumas liberdades “menores” (como a liberdade de expressão ou de associação), não faltariam candidatos para o negócio.
Sim, a pandemia é séria. E, na ausência de uma vacina, o distanciamento social é a única solução empiricamente comprovada para evitar o colapso dos sistemas de saúde. E as mortes, é claro.
De igual forma, “estados de emergência” podem ser necessários para evitar males maiores. As democracias liberais, às vezes, são obrigadas a esses regimes de exceção, desde que limitados no tempo e enquadrados pela lei.
Mas o trabalho de Frank Furedi é precioso ao mostrar-nos como o medo de agora foi alimentado durante anos pelo culto sadomasoquista da nossa própria fraqueza.
Alguém se espanta que, na hora da verdade, o homem do século 21 entre em depressão porque tem simplesmente de ficar em casa?
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.