quinta-feira, 27 de setembro de 2018

Diga-me com quem andas, Daniela Lima, FSP

No já célebre “Como as Democracias Morrem”, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt mostram como a intimidação à mídia está conectada à falência do Estado de Direito. O ataque sistemático à imprensa, que passa a ser apresentada como inimiga de políticos e regimes, está fartamente descrito no livro como parte do processo de fragilização das democracias pelo mundo.
O fenômeno não é, portanto, criação do Brasil. Nem novo é por aqui. Ganhou, porém, escala e organização inéditas na disputa eleitoral deste ano, protagonizado —sem exclusividade, é verdade, mas com destaque— por apoiadores de Jair Bolsonaro (PSL).
Qualquer reportagem que incomode o candidato ou seus simpatizantes é descrita como fake. O Judiciário, o Congresso, os partidos e os adversários são alvos de tratamento semelhante. Até a Polícia Federal, exaltada por muitos dos que são “contra tudo o que está aí”, recebeu pedradas. Nenhuma instituição parece merecer voto de confiança.
Mas aqui vou me ater a ofensas contra jornalistas. Ah, não vai falar sobre a esquerda? Vou. Em 2013, fui cobrir pela Folha o ato de dez anos do PT no governo. Houve tumulto na entrada. Fui checar. Militantes viram meu crachá. Tomei um chute pelas costas e fui chamada de coisas como “cadela do PIG” —termo usado por detratores quando a imprensa era chamada de golpista, e não de esquerdista como agora.
A direção do PT emitiu nota lamentando o ataque e afirmando respeito —não expresso no discurso de seus líderes— aos profissionais de comunicação.
Em 2014, fiz reportagem que desagradou eleitores do PSDB. Um blogueiro do partido, já morto, escreveu: “Repórter que levou pontapés da esquerda ataca a direita liberal”. Novamente, pedidos de desculpas de líderes da sigla. 
O episódio mais recente de manifestação de ódio veio neste ano e em grande escala, após o programa Roda Viva com Bolsonaro. Peço desculpas aos leitores que defendem a moral, os bons costumes e os valores da família, mas o que reproduzo abaixo foi expresso por quem diz pregar ideias parecidas. 
“Vagabunda”, “filha da puta”, “piranha”, “mentirosa”, “bandida”, “jumenta”, “você é do tipo que merece receber menos do que os homens”, “você merece morrer”. Foi em julho. Não parou mais.
Neste mês, gravei um programa na internet sobre pesquisas. “Essa repórter é filha do cão. Petralha imunda. Nordeste, sai do Brasil!”. Outro: “Essa boca só serve para mamar mesmo”.
Na terça (25), os repórteres Rubens Valente e Marina Dias, da Folharevelaram documento do Itamaraty que registra que, em 2011, uma ex-mulher de Bolsonaro disse ao órgão que havia fugido do país sob ameaça de morte. Hoje ela nega —a negativa já constava da reportagem antes de ela produzir vídeo contra o que chama de “mídia suja”.
Os dois repórteres foram alvo de um levante. Parte dos bolsonaristas errou a mira e atacou uma homônima de Marina. Um amigo foi às redes dizer que haviam pego a pessoa errada para Cristo. Em vão. “Olhem a cara dessa vagabunda. Putas de rua têm mais decência do que essa cadela.”
Jornalistas da TV Globo, de O Globo, do Estadão, de blogs, sites de checagem... Todos estão com as redes cheias dessas mensagens. O motim é contra a imprensa livre, crítica e profissional. Reportagem com documento oficial, três fontes e outro lado não presta. Vídeo de youtuber com teoria da conspiração sem qualquer prova? Esse vale.
Bolsonaro não representa ameaça à democracia, dizem seus apoiadores. Bolsonaro não é misógino, insistem. Ele e seus aliados, então, deveriam desencorajar oficialmente esse tipo de conduta —o que não foi feito até a conclusão desse texto. Afinal, o que dizer desses eleitores?


Daniela Lima
É editora do Painel.

Genéricos hepáticos, José Serra, OESP

É fundamental manter a elogiável decisão judicial que quebrou a patente do Sofosbuvir

*JOSÉ SERRA, O Estado de S.Paulo
27 Setembro 2018 | 03h00
No final dos anos 1990 fizemos uma grande mudança no mercado de remédios no País, com a regulamentação dos medicamentos genéricos – muito mais baratos do que os produtos patenteados. Os genéricos foram fundamentais para garantir qualidade e preços acessíveis para a população brasileira, cujos gastos com a compra de remédios equivaliam, em média, a cerca de metade do orçamento das famílias com despesas de saúde.
Foram introduzidas também regras mais rigorosas para o pedido de patentes. A criação mesma da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) obedeceu a esse propósito. A Anvisa passou a se manifestar previamente sobre as questões de saúde pública nos pedidos de registros de patentes feitos ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (Inpi). Quando a agência nega um pedido, por entender que há riscos para a saúde dos usuários potenciais, o processo é necessariamente arquivado.
Entendamos bem: o registro da patente de um medicamento confere ao seu proprietário o monopólio da respectiva produção, diretamente ou mediante venda do direito de fabricação a outros produtores. Esse monopólio lhe garante a possibilidade de fixar preços mais elevados.
Um argumento contrário seria o de que a negativa do registro de patente implicaria desestímulo à pesquisa, mas só se aplicado aos países desenvolvidos, onde se concentram cerca de 90% das inovações farmacêuticas e cujos mercados consumidores dispõem de renda média individual bem superior à que prevalece nos países em desenvolvimento. Mesmo assim, não faltam argumentos aos defensores de genéricos nesses países mais avançados: as pesquisas para produzir novos medicamentos são, em boa medida, financiadas por recursos públicos.
Voltando ao Brasil, é importante lembrar que a implantação dos genéricos entre nós – há cerca de 20 anos – esteve ligada à evolução do tratamento da aids, que crescera rapidamente entre as décadas de 80 e 90. A redução do custo dos medicamentos era essencial para manter o atendimento crescente. O número de pessoas atendidas já era de 55 mil em 1998, mais que dobrando entre aquele ano e 2002 e chegando ao triplo em 2005.
No Brasil, foi graças aos genéricos que o custo dos medicamentos por indivíduo portador de aids caiu 75% entre o final dos anos 90 e meados da década seguinte, tornando viável aquela que viria a ser considerada a melhor campanha do mundo contra essa doença, entre os países em desenvolvimento.
De fato, o novo março legal para introduzir os genéricos – Lei n.º 9.787, de 10 de fevereiro de 1999 – não só transformou positivamente o cenário farmacêutico nacional, como trouxe literalmente mais saúde ao País. Indo além dos retrovirais do tratamento da aids, os genéricos consolidaram-se como um vigoroso instrumento de acesso a medicamentos.
Estima-se que ao redor de um terço de todos os medicamentos consumidos via farmácias sejam genéricos, com preços de varejo em média 60% menores que os de marca. Milhões de brasileiros puderam assim seguir com regularidade seus tratamentos, especialmente os voltados para as doenças crônicas.
Desde que chegaram ao mercado em 1999, os genéricos já proporcionaram uma economia de mais de R$ 88 bilhões em gastos dos consumidores com medicamentos. O valor é potencialmente maior, já que o dado não captura o benefício adicional que os genéricos exercem como reguladores de mercado, ao forçarem a adequação de preços dos medicamentos de referência que lhes deram origem.
Os números são incontestáveis. Em 1999 o consumo de anti-hipertensivos não ultrapassava a marca de 67 milhões de unidades por ano no Brasil. Passados 18 anos da chegada dos genéricos ao mercado, o número de unidades saltou para 431,4 milhões, consolidando crescimento de 543% no período.
Entre os antilipêmicos, usados para diminuir o colesterol, o salto foi ainda maior. Em 1999 o mercado total para essa classe de medicamentos era de 3,4 milhões de unidades. Em 2016 o número saltou para 67,3 milhões de unidades, um avanço de 1.880%.
Diante dessa bem-sucedida história dos genéricos, causou grande surpresa, na semana passada, a reportagem de Patrícia Campos Mello, na Folha de S.Paulo, informando sobre a decisão do Inpi de conceder à empresa farmacêutica americana Gilead a patente sobre o medicamento Sofosbuvir, que cura a hepatite C em 95% dos casos. A concessão impede que o laboratório estatal da Farmanguinhos produza o Sofosbuvir genérico – que já havia sido registrado pela Anvisa e causaria uma economia superior a R$ 1 bilhão s para os cofres públicos em 2019, quando o Ministério da Saúde prevê tratar 50 mil pessoas. Neste ano estão sendo atendidos 19 mil pacientes.
O custo do genérico fabricado para o Ministério da Saúde seria equivalente a um quarto do mesmo produto fabricado pela Gilead. Note-se que, no Brasil, se estima que o número total de pessoas portadoras do vírus da hepatite C se eleva a 700 mil e a cada ano cerca de 3 mil pessoas perdem a vida por essa doença.
A mesma reportagem informou, ainda, que países como Egito, Argentina e China não concederam a patente a Gilead e produzem seus genéricos. A citação da Argentina soou para mim como uma ironia: quando ministro da Saúde do governo FHC, época em que implantamos os genéricos, visitei o então presidente Fernando de La Rúa para incentivá-lo a introduzir os medicamentos genéricos no seu país, seguindo nossa bem-sucedida experiência...
Quando este artigo já estava escrito, deparei com a notícia de que liminar deferida pela Justiça Federal em Brasília, solicitada por Marina Silva, quebrou a patente do Sofosbuvir, o que permitirá sua produção pela Farmanguinhos a preços menores. Mas essa liminar não esgota o assunto, pois haverá recursos dos perdedores. Ou seja, devemos continuar a tratar do tema, mostrando a importância de se manter a elogiável decisão judicial.
*SENADOR (PSDB-SP)

O desemprego e a reforma trabalhista, José Pastore, OESP

José Pastore*, O Estado de S.Paulo
27 Setembro 2018 | 04h00

Na campanha eleitoral, muitos candidatos argumentam que o desemprego e os poucos empregos gerados nos últimos 12 meses – na maioria, informais, intermitentes ou em tempo parcial – são frutos da reforma trabalhista (Lei n.º 13.467/2017).
Ah! Que bom seria se esses problemas pudessem ser resolvidos por lei. Se isso fosse possível, não existiriam desemprego e trabalho precário em nenhum país do mundo.
É desnecessário teorizar sobre o óbvio. A geração de emprego depende basicamente do crescimento econômico e dos investimentos públicos e privados. É exatamente o contrário do que ocorreu no Brasil no período de 2015-2018. O grave desequilíbrio das contas públicas esterilizou a capacidade do governo de investir em vários setores, em especial em infraestrutura, que, como se sabe, é fonte de muitos empregos diretos e indiretos.
Calcula-se que, para atingir níveis internacionais de qualidade, o Brasil deveria investir no mínimo 5% do PIB em novas obras por várias décadas. Não temos fôlego para isso. Com dificuldade, o investimento nesse setor tem ficado ao redor de 1,5%. Estradas, ferrovias, portos, redes de comunicação, etc., se deterioram a olhos vistos. O atraso é impressionante. Basta citar que em pleno século 21 somente 12% das rodovias brasileiras são pavimentadas. Isso tem graves reflexos. Infraestrutura precária compromete a produtividade do setor privado, reduz o lucro das empresas e inibe brutalmente a geração de empregos.
A crise econômica não se limita à infraestrutura, é claro. Há claros sinais de estagnação nos serviços e no comércio de atacado e varejo – que sempre responderam por uma boa parte dos novos postos de trabalho. Os números são igualmente preocupantes. Exemplo: o volume de serviços em agosto deste ano caiu 11% quando comparado a 2015. Na indústria a produção está na mesma situação e a construção civil se manteve parada nos últimos três anos.
A lucratividade das empresas não financeiras que ainda se mantiveram ativas caiu de forma surpreendente. A margem de lucro líquido das indústrias (exceto Petrobrás e Vale) recuou de 2,9%, no primeiro semestre de 2017, para apenas 1,7% em 2018 (dados do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial) e o endividamento aumentou 6% só neste ano.
Fala-se muito na força das firmas pequenas e médias para gerar empregos. Elas contam muito, é verdade. Mas as grandes empresas, com mais de 250 empregados, contam muito mais, pois respondem por 43% do emprego formal e de melhor qualidade. Entre 2015-2016 essas empresas não só deixaram de contratar, como demitiram cerca de 6% dos seus empregados, agravando o quadro do desemprego (dados da Relação Anual de Informações Sociais – Rais).
Em suma, a recessão devastou o Brasil e derrubou todos os indicadores sociais. E não há sinais de retomada no curto prazo. As expectativas para o aumento do PIB em 2018 caíram de 3% em janeiro para 1,3% atualmente. A economia brasileira perdeu sua vitalidade, com exceção do setor agropecuário, que continua dinâmico, mas que gera poucos novos empregos.
Tudo isso se refletiu no mercado de trabalho. A reforma trabalhista não tem nada que ver com o desemprego e a informalidade reinantes. Para os presidenciáveis que atribuem a causa desse desastre à referida reforma e prometem revogá-la, pergunto: feito isso, o desemprego e a informalidade acabarão? Os empregos voltarão?
Os eleitores merecem respeito. O Brasil precisa voltar a crescer e, nessa retomada e ao longo dos anos, a reforma ajudará a melhorar a produtividade e a capacidade de geração de empregos das empresas brasileiras.
*PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, É PRESIDENTE DO CONSELHO DE EMPREGO E RELAÇÕES DO TRABALHO DA FECOMERCIO-SP E MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS