A primeira cena deu-se em Suzano, no interior de São Paulo: Katia Sastre levou a filha de 7 anos para uma festa da escola, estava na calçada, junto com outras mães e crianças, quando um assaltante começou a revistar o segurança. Katia é cabo da Polícia Militar. Num átimo, tirou sua pistola da bolsa e deu-lhe três tiros, quase à queima-roupa. Matou-o.
No dia seguinte, em Guarujá, numa farmácia, um assaltante armado com um revólver perseguiu durante 16 segundos um cidadão que estava na loja. Era um PM em dia de folga. Com um tiro matou o bandido.
Os vídeos dos dois episódios estão na rede e não deixam dúvida. Não se está numa daquelas parolagens em que a polícia fala em confrontos que em São Paulo giram em torno de 20 por mês. No Rio, são cinco por dia. (Um terceiro caso de PM sem farda matando assaltante, ocorrido também em São Paulo, infelizmente não tem vídeo.)
O governador Márcio França fez uma justa homenagem a Katia Sastre, mas, tendo gostado do espetáculo, deu-se a um momento de comédia: "As pessoas têm que entender que a farda deles [PM] é sagrada, é a extensão da bandeira do estado de São Paulo. Se você ofender a farda, ofender a integralidade do policial, você está correndo risco de vida. É assim que tem que ser".
Quer dizer que se uma pessoa ofender um PM, caso de desacato previsto no Código Penal, "está correndo risco de vida".
Deixando-se de lado a irresponsabilidade de França, o comportamento da PM de Suzano e de seu colega de Guarujá foi adequado. Casos clássicos de legítima defesa não podem ser vistos como estímulo à letalidade.
O professor Mário Henrique Simonsen ensinava que o problema mais difícil do mundo, caso seja bem formulado, um dia poderá ser resolvido. Já os problemas mal formulados, ainda que fáceis, são todos insolúveis. Discutir e letalidade das forças da segurança pública junto com a atitude dos dois PMs dos vídeos é uma forma de embaralhar a questão, tornando-a insolúvel.
Pior: trata-se de aproveitar os holofotes para pontificar sobre o inexistente, em nome do politicamente correto. Casos existentes, politicamente inconvenientes, ficam na penumbra.
Na noite de 11 de novembro de 2017 sete pessoas foram mortas no Complexo do Salgueiro, no Rio. Moradores viram pessoas vestidas de preto, mascaradas, e com capacetes. Blindados do Exército passaram pela cena, e uma mulher que socorreu um ferido diz que encontrou soldados na cena.
O inquérito está na jurisdição do Ministério Público Militar. Foram ouvidos soldados, sargentos e oficiais, mas não foram tomados depoimentos de testemunhas civis. Outra investigação, da polícia do Rio, ouviu civis, mas não entrevistou militares. Passaram-se seis meses e não se sabe o que aconteceu no Salgueiro naquela noite. Nadinha.
O escritório brasileiro da Human Rights Watch vem chamando a atenção para esse episódio, sem muito sucesso. A Human Rights Watch é uma organização internacional, e em 1997 compartilhou o Prêmio Nobel da Paz. Sua sede fica em Nova York.
Elio Gaspari
Jornalista, autor de 5 volumes sobre a história do regime militar, entre eles 'A Ditadura Encurralada'
Compreender fenômeno nas bactérias pode sugerir maneiras de evitar nossa extinção
Fernando Reinach *, O Estado de S.Paulo
05 Maio 2018 | 03h00
Faz três bilhões de anos que existe vida na Terra. Ao longo desse tempo, milhões de espécies surgiram. Destas, menos de 1% ainda existem, 99% estão extintas. Entre seres vivos, a extinção é regra e a sobrevivência, exceção.
Entre as causas da extinção, uma tem merecido atenção redobrada nos últimos anos: as alterações no ambiente provocadas pela própria espécie. O exemplo mais simples é o uso indiscriminado dos recursos naturais necessários para a sobrevivência. Imagine um grande número de cabritos colocados em uma ilha semidesértica. Eles devoram todos os vegetais e acabam morrendo de fome após pelar a ilha (isso ocorreu em algumas pequenas ilhas do Pacífico). Outra possibilidade é a espécie produzir algo tóxico que a leve à morte. É o caso da poluição da água por produtos letais liberados pela própria espécie, como os peixes em um aquário. O interesse é consequência de muitos imaginarem que as alterações que provocamos no ambiente podem nos levar à extinção.
Quando uma espécie causa a própria extinção, o fenômeno é chamado de suicídio ecológico. A novidade é que agora esse fenômeno foi estudado em detalhe usando uma bactéria de solo com grande propensão ao suicídio ecológico, o Paenibacillus.
A bactéria foi cultivada em um meio contendo carboidratos e sais minerais, muito semelhante ao encontrado no solo. Foi observado que a bactéria cresce nas primeiras oito horas. A partir desse momento, os compostos ácidos que ela secreta começam a acumular no meio e o pH diminui de 7 para 3 rapidamente. Nesse momento, as bactérias começam a morrer, apesar de não terem consumido todo o alimento. Essa morte coletiva ocorre rapidamente e todas, absolutamente todas, estão mortas após 24 horas. Quando os cientistas colocaram no meio de cultura um pouco de um composto que absorve o ácido produzido (o que em química chamamos de tampão), as bactérias levam mais tempo para morrer, mas morrem após 48 horas. Aumentando ainda mais a quantidade de tampão é possível impedir a acidificação do meio, e nesse caso as bactérias param de crescer quando acaba o alimento, mas não morrem. Esses resultados demonstram que as bactérias morrem antes de esgotar os alimentos por causa do efeito tóxico dos compostos produzidos por elas mesmas.
Em um passo seguinte, os cientistas estudaram os fatores que podem evitar o suicídio dessas bactérias. Descobriram que, diminuindo a quantidade de alimento, elas param de crescer por falta de alimento antes de produzirem muito ácido. Aí entram em hibernação e não morrem. Essa descoberta é contra intuitiva, pois indica que piorando as condições de vida das bactérias é possível salvá-las do suicídio.
Os cientistas ainda decidiram testar outros compostos que prejudicam o crescimento, como cloreto de sódio e pequenas doses de antibióticos. Nos dois casos, esses “venenos” prejudicam o crescimento das bactérias, evitando o acúmulo de ácido e a morte das bactérias. Novamente o resultado é contra intuitivo, pois compostos que prejudicam o crescimento impedem a morte. Finalmente os cientistas resolveram estudar a frequência do suicídio ecológico em bactérias do solo. Descobriram que esse fenômeno não é raro e ocorre em 25% das 119 espécies testadas.
Bactérias não são seres humanos, mas será que os humanos estão na rota do suicídio ecológico? Nossa população cresceu rapidamente e, apesar de ainda não termos esgotado os recursos naturais do planeta, sem dúvida estamos lançando uma enorme quantidade de resíduos tóxicos e carcinogênicos no meio ambiente. Outro paralelo possível é a descoberta que medidas que dificultam o crescimento das bactérias retardam o suicídio.
Entre os seres humanos, não seria o caso de adotarmos métodos anticoncepcionais, aumento do custo de energia suja e assim por diante? Compreender o suicídio ecológico de bactérias pode sugerir maneiras de evitar nossa extinção.
MAIS INFORMAÇÕES: ECOLOGICAL SUICIDE IN MICROBES. NATURE ECOL. EVOL. VOL. 2, PÁG. 867 (2018)
O economista ecológico Bruno Peregrina Puga propôs-se a compreender como atores e instituições dentro do sistema de governança hídrica lidaram com a crise decorrente de um evento climático extremo (seca) enfrentado pelo Estado de São Paulo de 2013 a 2015, considerando que ocorrências decorrentes de mudanças climáticas extremas são importantes para revelar as falhas institucionais no enfrentamento desses novos desafios.
Em tese desenvolvida na área de economia do meio ambiente do Instituto de Economia (IE) da Unicamp e orientada pelo professor Ademar Ribeiro Romeiro, ele adota uma abordagem institucional focada em três aspectos principais da governança hídrica: a distribuição de poder, a capacidade adaptativa e a capacidade de mudança institucional em decorrência da aprendizagem política.
A abordagem considera que a gestão de recursos hídricos envolve uma grande coordenação de diversos e diferentes atores e níveis institucionais; que os problemas que afetam a provisão e a qualidade dos recursos hídricos são difusos e envolvem distintos interesses e visões sobre melhor forma de alocação das limitadas disponibilidades financeiras; que embora a política ambiental tenha deixado de estar centrada principalmente nos Estados e se estendido para várias escalas institucionais e atores sociais, descentralizando a gestão ao nível das bacias hidrográficas, paradoxalmente, a crise analisada trouxe à baila os problemas da falta de transparência dos organismos oficiais e a centralização das decisões no governo do Estado que, mesmo depois dela, não foram resolvidos.
Para o pesquisador, “o enfrentamento da crise nos diversos níveis institucionais demonstrou sérios problemas de governança hídrica em termos de adaptabilidade, transparência e efetividade de ações. A segurança hídrica em São Paulo, principalmente na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), está longe de ser alcançada e talvez tenhamos perdido a oportunidade de avançarmos na institucionalidade necessária para lidarmos com as incertezas oriundas das mudanças climáticas”.
Um momento perdido
A crise hídrica constituiu um momento fértil para formação de redes de contatos entre pesquisadores, movimentos sociais, políticos e ambientalistas que se encontravam dispersos mesmo tendo um tema comum. Emergiram daí muitas reflexões, diversas análises e recomendações, mas permanecia ao final o mesmo sentimento comum: a impermeabilidade do processo político como impedimento para a internacionalização desses atores fora da burocracia estatal. Ficou clara a continuidade na adoção de um modelo essencialmente técnico centrado na busca de novas fontes de água para a RMSP, como ampliação de interligações entre sistemas de abastecimento e construção de novas represas, sem considerar a importância de obras de saneamento e da gestão da demanda, ainda ínfimas se comparadas às experiências internacionais estudadas pelo pesquisador.
Exemplos de outros países têm mostrado a impossibilidade da continuidade da adoção desse modelo tecnicista, principalmente em decorrência da inclusão cada vez maior de territórios adjacentes à bacia, e que as soluções que buscam a eficiência hídrica são muito mais bem-sucedidas e de custo-benefício maior. Mas tais soluções foram menos priorizadas sem que se avaliassem os reais custos de grandes obras de engenharia em termos ecológicos e sociais. Em suma, a tese procura mostrar que não houve mudanças fundamentais na gestão dos recursos hídricos em São Paulo, mesmo diante dos anseios da sociedade civil, devido à assimetria de poder e centralismo das decisões no Estado.
Puga mostra que a nova legislação sobre recursos hídricos, promulgada em 1997, ainda não foi capaz de resolver problemas de coordenação e incentivos em várias escalas, a começar dos municípios, responsáveis pelo uso do solo, e que deveriam ser levados a uma atuação mais efetiva sobre a contaminação das águas por esgoto, atividades agrícolas e pecuárias e na recuperação e preservação das matas, fundamentais para a manutenção das bacias hidrográficas. O pesquisador aponta também a pouca autonomia dos comitês de bacia para atuação nos municípios que abrangem. Por fim, destaca a pequena cooperação entre os sistemas de bacias vizinhas que mantêm uma ligação fundamental para as transposições que garantem água para as regiões mais populosas, o que acaba gerando conflitos municipais e até estaduais, amplamente divulgados pela imprensa por ocasião da última grande crise.
Em suma, diz o autor, “temos uma governança pendular que funciona com alguma estabilidade quando não há grandes conflitos, mas que se demonstrou extremamente frágil em tempos de crise, com tendência ao centralismo do poder nas mãos da burocracia estatal”.
Diversidades de interesses e de visões
Para o autor da pesquisa, a crise hídrica que a RMSP enfrentou entre 2013 a 2015 pode ser vista sob vários prismas. Os meteorologistas a investigam como evento climático extremamente raro e imprevisível. Economistas geralmente a analisam em termos de alterações de eficiência, regulação, investimento em capital e infraestrutura e da perspectiva da privatização ou reestatização das empresas de água, a depender do viés ideológico. Cientistas sociais a observam preferencialmente através do processo político e relações de poder. Pesquisadores ligados às ciências naturais e ecologia destacam a deterioração de características biofísicas e ecológicas dos sistemas na provisão da água. Urbanistas consideram os movimentos de ocupação desenfreado do solo e processos descontrolados de urbanização e concentração territorial.
Outros, exemplifica o pesquisador, destacam os processos de descentralização e mudanças no modelo de gestão dos recursos hídricos, caso das privatizações de empresas do setor de saneamento, como fatores que explicam a insegurança hídrica e o descaso com questões relacionadas ao saneamento. Há os que sustentam a tese de que as crises de abastecimento causadas por eventos extremos decorrem do próprio modo de governança dos recursos hídricos, em que se mesclam ideologia, gestão de água, produção natural e regulação ambiental. Portanto, como definir o escopo da análise configura um desafio dado a complexidade da questão, o pesquisador esclarece sua opção: “Ao adotar uma abordagem holística e baseada em um pluralismo metodológico, busquei analisar a complexidade da governança dos recursos hídricos de forma distinta da adotada na teoria econômica tradicional”.
A questão geral, que a tese buscou responder, é se a atual governança brasileira é capaz de garantir a segurança hídrica frente aos eventos extremos, partindo da hipótese de que somente uma governança policêntrica, em que há múltiplos centros de decisão em um mesmo território e nível institucional, pode levar à capacidade adaptativa do sistema e à garantia da segurança hídrica.
Igualmente, diz Bruno, “deve-se procurar compreender se os processos de descentralização e arranjos institucionais vigentes são realmente efetivos na gestão dos recursos hídricos em uma época em que se vislumbram incertezas climáticas”. Ele considera que a análise em um momento pós-crise de abastecimento urbano em algumas das bacias selecionadas para estudo, particularmente as do Alto Tietê e do sistema Piraciaba/Capivari/Jundiaí, permitiu revelar conflitos e gargalos que estavam escondidos ou eram desconhecidos de seus gestores.
Para o pesquisador, ficou claro que a crise hídrica enfrentada por São Paulo resultou de um conjunto de falhas de governança em que os processos de descentralização da gestão não foram capazes de ampliar a capacidade adaptativa do sistema e contribuíram de forma sistemática para um processo de produção de escassez.
Puga acredita que, ao analisar como as diferentes formas de poder estão configuradas, emergem a descentralização e a governança hídricas, que devem ser consideradas não apenas um evento isolado, mas como um problema de abastecimento urbano resultante do conflito entre usos distintos da água, que teve como gatilho um período de escassez de chuvas, mas que revela uma situação permanente.
“Busquei identificar, do ponto de vista institucional e político, se houve mudanças significativas depois da crise na forma de gerir os recursos hídricos e quais atores as bloquearam ou facilitaram. A forma como esses atores se organizaram e que tipos de estratégias, recursos e narrativas utilizaram, ajudam a entender como foi montada a agenda de enfrentamento do problema”, concluiu Puga.