domingo, 4 de fevereiro de 2018

Vamos vestir a carapuça? - MARCOS LISBOA, FSP


Demora para iniciar o ajuste das contas pública pode elevar o custo social


O ano começa com boas notícias em meio a velhos problemas. A taxa de desemprego cai, assim como a inflação, e a renda pode crescer cerca de 3% neste ano. Frente à deterioração da economia desde 2011, trata-se de uma notável reversão. A última boa nova foi que o deficit das contas públicas em 2017 ficou em R$ 118 bilhões, menor do que os esperados R$ 159 bilhões.

Entretanto, como enfatizou a secretária do Tesouro, Ana Paula Vescovi, não há o que celebrar. A receita do governo é menor do que os gastos que devem ser realizados por força de lei, como o pagamento da remuneração dos servidores públicos e da Previdência. O resultado é a redução dos gastos em serviços essenciais, como a manutenção de estradas.

Neste ano, o governo conta com receitas extraordinárias para manter, ainda que precariamente, alguns desses serviços, como a devolução dos empréstimos concedidos ao BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Em 2019, porém, a falta de recursos poderá levar à paralisia de serviços públicos.

A incapacidade do governo em chegar a um acordo com o Congresso sobre como fazer o ajuste das contas públicas reflete resistências da própria sociedade. Lideranças empresariais rejeitam aumentos de impostos ou a redução dos subsídios. Alguns reclamam dos cortes em Ciência e Tecnologia ao mesmo tempo que rejeitam a reforma da Previdência. Servidores públicos defendem reajustes salariais acima da inflação e benefícios como o auxílio-moradia. O resultado é a degradação das demais políticas públicas. No país da meia-entrada, todos se consideram merecedores de tratamento preferencial.

Muitos argumentam corretamente que um novo governo terá mais legitimidade para negociar o ajuste de modo que os benefícios concedidos pelo Estado caibam no seu orçamento. Esse ajuste será inevitavelmente traumático, pois implicará rever direitos que se acreditam adquiridos, afinal o dinheiro acabou. Contudo, quanto mais demorado for iniciar o ajuste, maior será o custo social, com a degradação de serviços essenciais, como em saúde e em segurança. Muitos eleitos em 2018 talvez não tenham recursos nem mesmo para pagar a conta de luz.

O Rio de Janeiro está na esquina. A natureza concedeu a sua beleza exuberante enquanto a elite deitava em berço esplêndido, ainda que insustentável. A janela de oportunidade de recuperação da economia para o país vai se fechar a menos que aceitemos os sacrifícios inevitáveis, a começar por nós da elite do setor privado e dos servidores públicos. Detalhe: no Brasil, em que a renda por habitante é de R$ 3.000 por mês, quem ganha mais de R$ 20 mil está no grupo dos 2% adultos mais ricos, e acima de R$ 28 mil, no grupo dos 1%.

Marcos de Barros Lisboa, 52, é doutor em economia pela Universidade da Pensilvânia. Foi secretário de Política Econômica no Ministério da Fazenda entre 2003 e 2005 e é Presidente do Insper.

O Brasil não é isso aí - LUIZ WERNECK VIANNA, OESP




ESTADÃO - 04/02

Uma mutação toma corpo no sentido de submeter a sociedade a um governo de juízes


O que nos está faltando para adotarmos, ao som de fanfarras cívicas, a pena de morte como remédio heroico para o combate contra a corrupção e os demais males que nos afligem? Já contamos com a condução sob ferros dos nossos prisioneiros, assim expostos publicamente nesse arremedo do pelourinho dos tempos da escravidão, resta dar o passo seguinte, a que parece faltar apenas a iniciativa de um dos nossos justiceiros.

Por onde paira o espírito de um Sobral Pinto, que na defesa do líder comunista Luís Carlos Prestes, encarcerado em condições cruéis pelo regime fascista do Estado Novo, de 1937, invocou em defesa do seu cliente a lei protetora dos animais, embora discordasse de tudo o que ele então professava. Sobral Pinto não pode ser reduzido a um retrato na parede, pois sua advocacia deixou o legado da intransigência na luta pelos direitos humanos, que não pode ser abandonado. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), até então em silêncio, fora personagens isolados, com o tratamento cruel dado a Sérgio Cabral, não se vai pronunciar institucionalmente a respeito da violação da dignidade humana de que ele foi vítima?

Verdade que do Judiciário já se levantaram algumas vozes de protesto, como a do ex-ministro Ayres Britto, mas, como se diz, uma andorinha não faz verão, e é a corporação que tem de falar. O Brasil não é isso que está aí. Nascemos sob o compromisso de fidelidade aos ideais da civilização, nas palavras de Euclides da Cunha, e mal ou bem somos hoje parte relevante do Ocidente político. Passar a limpo a nossa História, como pontificam os pretensos salvadores da pátria que estão aí, não pode ter como ponto de partida a recusa acrítica à obra das gerações que nos antecederam, mas a missão de interpretá-la a fim de imprimir continuidade a seus resultados felizes e expurgar o que de negativo ainda persiste, como a desigualdade social reinante entre grupos e classes sociais, obstáculo maior ao adensamento entre nós da coesão social.

Na cultura política que forjamos ao longo do tempo contamos com a herança inspiradora do humanismo de um José Bonifácio, sempre reverenciado como um dos fundadores do nosso Estado-nação, artefato político cuja unidade soube ser conservada em meio às turbulências naturais a uma sociedade ainda em construção, obra singular no cenário balcanizado sul-americano, processo bem estudado por José Murilo de Carvalho em obra clássica.

Se a nossa cultura material foi construída ao sabor das circunstâncias, sempre em resposta do agente colonizador às oportunidades abertas pelo emergente capitalismo na economia-mundo, para usar categorias caras a Immanuel Wallerstein, no plano dos valores, ao contrário, pode-se falar na existência de uma linha de continuidade desde o processo da independência até os dias de hoje, de vigência da Carta de 88. Florestan Fernandes, em páginas vigorosas do seu A Revolução Burguesa, argumentou no sentido de que a independência, animada pelo liberalismo, importou numa revolução encapuzada, que teria deixado raízes na nossa formação. 

Decerto que a modalidade fraca de liberalismo que praticamos coexistiu desde o Império com um Estado que se sobrepunha à sociedade civil, considerada como refratária aos valores da civilização e, como tal, devendo ser exposta a uma longa e pertinaz ação pedagógica da parte do Estado, na forma da argumentação do visconde de Uruguai em seus textos sobre Direito Administrativo, cuja influência persistiu por gerações, como no caso de Oliveira Vianna, ideólogo que desempenhou papel central no processo de modernização desencadeado pela Revolução de 1930. 

O tema-chave dessa política consistia no diagnóstico de que o Estado tinha braços curtos, que não lhe permitiriam agir de modo eficaz sobre uma população dispersa num território imenso e, em boa parte, ainda sujeita a costumes bárbaros. Se A Democracia na América, de Alexis de Tocqueville, era reverenciada por boa parte dos estadistas da época, suas lições seriam consideradas intempestivas aqui, por falta de uma sociedade ainda incapaz de assimilá-las. 

O remédio institucional concebido para avizinhar o Estado do hinterland foi criar uma magistratura selecionada politicamente a fim de exercer sobre ele uma ação civilizatória. Na República, já no contexto de uma sociedade que se industrializava e conhecia conflitos no mundo do trabalho e sindicatos expressivos, adotou-se, por inspiração de Oliveira Vianna, a fórmula da ordenação corporativa, então em voga no mundo do trabalho europeu, que instalava o Judiciário como forte personagem no mercado de trabalho a fim de exercer controle sobre seus conflitos. Essa modelagem persistiu ao longo do tempo, reforçada pela criação, em 1932, da Justiça Eleitoral. 

Seguiu-se à montagem desses novos instrumentos institucionais a construção de uma rede corporativa que, com o tempo, vai firmar uma identidade em torno dos interesses desses profissionais, cuja ação de início obedecia aos comandos e diretivas dos seus vértices institucionais. A Carta de 88, redigida por constituintes descrentes no poder reformador do Legislativo, confiou a novos institutos judiciais papéis quase legislativos, como no mandado de injunção, entre outros, e ampliou o número de agentes com papel ativo no controle de constitucionalidade das leis. Como a experiência vai demonstrar, essas inovações irão afetar o poder soberano, rebaixando sua capacidade discricionária e de governar o País.

Sem querer, silenciosamente uma mutação toma corpo na sociedade e na política no sentido de submetê-la a um governo de juízes. As eleições que se avizinham são o momento oportuno para que a sociedade retome seu destino em suas mãos e avive os partidos e a política, cortando pela raiz esse experimento nefasto a que estamos sendo submetidos.

* Sociólogo da PUC-Rio

sábado, 3 de fevereiro de 2018

Péssimos exemplos, Eliane Cantanhêde, O Estado de S.Paulo


O Judiciário, que combate a corrupção alheia, não pode brigar por privilégio ilegítimo


02 Fevereiro 2018 | 03h00
A abertura do Ano Judiciário de 2018, ontem, no Supremo, virou um ato de desagravo à Justiça, que está na berlinda com a Lava Jato e é atacada sem cerimônia pelo PT e pelo próprio ex-presidente Lula desde que ele foi condenado pelo juiz Sérgio Moro e depois pelo TRF-4 . 
Em discurso, a presidente do Supremo, Cármen Lúcia, declarou que é “inadmissível e inaceitável desacatar a Justiça”. Em seguida, a procuradora-geral Raquel Dodge lembrou singelamente o óbvio, que as decisões judiciais “devem ser cumpridas”. E o presidente da OAB, Claudio Lamachia, condenou tentativa de “constranger e influenciar” a Justiça.
Tudo isso no dia seguinte a um encontro de entidades de juízes, magistrados e procuradores que criticaram duramente os ataques à Justiça, em referência às vezes indireta, às vezes mesmo direta, à declaração de Lula de que não respeitaria a decisão do TRF-4, à nota do PT classificando essa decisão de “farsa judicial” e às barbaridades que senadores como Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias andam falando.
Houve também uma defesa em cadeia ao entendimento do Supremo de que condenados em segunda instância, caso de Lula, já podem ser presos. Cármen Lúcia abriu a fila, ao anunciar publicamente que não poria em pauta a revisão dessa questão. Na quarta, as entidades do Judiciário foram na mesma linha. Na quinta, Dodge ratificou. Fecha-se o cerco.
A defesa às decisões do Judiciário, uma constante de Cármen Lúcia, está sendo neste momento um recado duro para o PT e para Lula, mas não custa lembrar que não são só eles, muito pelo contrário, os alvos da Lava Jato. Os demais partidos talvez sejam mais discretos, ou tenham mais prurido, ou ajam mais institucionalmente nas críticas, mas eles também não morrem de amores por essa “nova” Justiça que parte para cima, incisivamente, decisivamente, dos poderosos de colarinho branco e dos crimes de corrupção.
Mas... os mesmos juízes, desembargadores e procuradores, que têm não apenas o direito, mas também o dever de defender o Judiciário, não estão sabendo lidar com uma outra face da moeda. Eles têm de reagir à altura aos ataques às decisões de juízes e tribunais, mas não devem permitir que o corporativismo comprometa os méritos, avanços e louros do Judiciário.
Na mesma reunião em que falaram grosso contra os ataques do PT, as entidades de juízes e procuradores bateram o martelo a favor de um manifesto exigindo a manutenção dos privilégios de suas categorias. Colocaram-se contra a reforma da Previdência para, por exemplo, manter os salários e os índices de reajuste salarial mesmo depois de aposentados. 
Pior: insistem no auxílio-moradia indiscriminado, mesmo para quem sempre morou no mesmo lugar e mesmo para juízes como Marcelo Bretas, do Rio, que são casados com juízas e acumulam dois auxílios-moradia para morar numa só casa. Não é nada, não é nada, são R$ 8.400 mensais cobrados do meu, do seu, do nosso e daquele rico dinheirinho da parte da população que mais sofre com crises e déficits.
Daí porque Cármen Lúcia foi dura ao reagir aos ataques do PT e de Lula, mas também mandou um recado claríssimo ao corporativismo do Judiciário no seu discurso de ontem: “A nós, servidores públicos, o acatamento irrestrito à lei impõe-se como dever acima de qualquer outro. Constitui mau exemplo para o cidadão. E o mau exemplo contamina e compromete”.
A Justiça que combate a corrupção alheia deve ter vergonha de dar “mau exemplo”. Estourar o teto constitucional (R$ 33.700) para ganhar o dobro, ou mais, à custa de auxílios-moradia ilegítimos e coisas assim é um péssimo exemplo. Ainda mais numa hora dessas.