domingo, 28 de janeiro de 2018

Os números impõem a reforma - EDITORIAL O ESTADÃO




ESTADÃO - 28/01

Em apenas um ano, o déficit do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e do regime dos servidores públicos da União cresceu R$ 42 bilhões


O aumento de 18,5% do déficit da Previdência Social entre 2016 e 2017, período em que a inflação ficou em apenas 2,95%, acentua a tendência de crescimento do rombo observada desde o início do século e mostra de maneira inequívoca que o regime atual de aposentadorias e pensões é insustentável. Os que ainda resistem à ideia de que esse regime precisa ser reformado com urgência – pois, mantidas as regras atuais, os futuros beneficiários serão duramente castigados, visto que dentro de algum tempo não será mais possível pagar os benefícios previstos – deveriam examinar com atenção os números que acabam de ser divulgados pela Secretaria de Previdência do Ministério da Fazenda. Papel essencial, neste momento, é dos congressistas, que têm a responsabilidade de decidir se mantêm o sistema previdenciário atual, com os danos que imporá aos futuros beneficiários, ou se aprovam a reforma que tramita no Legislativo. A expectativa dos cidadãos responsáveis é que a reforma previdenciária seja aprovada no próximo dia 19 de fevereiro, como está programado.

Os números mostram a urgência das mudanças. Em apenas um ano, o déficit do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e do regime dos servidores públicos da União cresceu R$ 42 bilhões, tendo passado de R$ 226,8 bilhões para R$ 268,8 bilhões. Até mesmo o regime previdenciário dos trabalhadores urbanos, que nos anos de intenso crescimento da economia (entre 2009 e 2014) chegou a apresentar saldo positivo, voltou à sua tendência histórica e registra déficits crescentes.

O Regime Geral de Previdência Social (RGPS), administrado pelo INSS, teve déficit de R$ 182,5 bilhões em 2017, o maior de toda a série, com aumento de 21,8% em relação a 2016. Parte do aumento se deveu ao menor crescimento da arrecadação, em razão do aumento do desemprego durante boa parte do ano passado, enquanto o número de beneficiários continuou a crescer e o valor dos benefícios continuou sendo corrigido.

Mas o que os dados da Secretaria da Previdência mostram é o problema estrutural, pois, pelo menos desde 2003, com raras exceções, o déficit do RGPS tem crescido a cada ano. Em valores reais – corrigidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor, utilizado nos acordos salariais entre empregados e empregadores – mais do que triplicou. O aumento foi de 213% em 14 anos.

O RGPS é formado pelas previdências dos trabalhadores urbanos e dos trabalhadores rurais. O regime dos trabalhadores rurais é estruturalmente deficitário, pois deles podem se beneficiar mesmo os que não recolheram contribuições ao INSS. O rombo da previdência rural foi de R$ 110,7 bilhões, valor 7,1% maior do que o de 2016.

O déficit da previdência urbana foi bem menor, de R$ 71,7 bilhões, mas é mais preocupante, pois esse valor é 54,7% maior do que o rombo de 2016. É um crescimento muito rápido, em parte explicado pela redução de empregos formais, mas que reflete um problema bem mais grave e que continuará a pressionar os resultados mesmo com o aumento das taxas de ocupação. Trata-se do aumento de números de beneficiários do sistema em ritmo maior do que o de contribuintes. “Há estruturalmente tendência de a previdência urbana apresentar déficit, por conta do processo de envelhecimento populacional, que acontece em ritmo acelerado”, como descreveu o secretário da Previdência, Marcelo Caetano, ao comentar os dados de 2017.

O regime previdenciário dos servidores da União teve déficit de R$ 86,3 bilhões, mas, como o sistema atende a um número muito menor de pessoas, o valor por beneficiário do setor público é muito maior do que o do RGPS.

Se a reforma for aprovada na data prevista, o déficit do INSS poderá ser reduzido em até R$ 6 bilhões neste ano. Resultados mais expressivos surgirão com o tempo. Em dez anos espera-se uma economia de R$ 500 bilhões no RGPS e de R$ 88 bilhões no regime dos servidores da União. Sem reforma, não se terá nada disso.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Para onde vai o 'mito'?,Milton Hatoum OESP


O tempo dele já passou. O Brasil é muito maior e mais promissor do que esse embuste

Milton Hatoum, O Estado de S.Paulo
26 Janeiro 2018 | 02h00
Na tarde do último domingo, conversei com uma amiga francesa numa padaria paulistana, uma conversa em que o riso prevaleceu sobre a tristeza. Melhor assim: a tristeza, quando persiste e cresce, ronda a depressão.
“Li vários jornais”, ela disse. “É como se eu estivesse vendo um filme de terror.”
Na França, ela havia assistido pela internet à sessão do impeachment, verdadeira lição da nossa mais franca e desabrida baixeza. Lembrou o discurso de uma deputada de Minas Gerais, um palavrório moralista que exaltava a retidão de seu caráter e do de seu marido. No dia seguinte, o marido íntegro, prefeito probo de uma cidade mineira, foi preso pela polícia federal.
Recordou esse e outros episódios, como o do helicóptero carregado de cocaína, que pertence ou pertencia a um ex-deputado mineiro, muito próximo de um senador também mineiro. Nossa conversa saltou desse incidente sem vítimas (no helicóptero e nos mandatos dos políticos) à filosofia do café vespertino.
O filósofo Paul Ricoeur foi mesmo guru do presidente Emmanuel Mácron? 
“Sem dúvida”, respondeu no ato. “O jovem Emmanuel foi assistente editorial de um dos livros mais importantes de Ricoeur: A Memória, a História, o Esquecimento. Macron teve uma boa formação política e filosófica. Anos depois, foi executivo de um grande banco. Agora, na presidência da França, as ideias do ex-executivo prevalecem sobre as do ex-aluno de Ricoeur. Maquiavel é um fantasma que sempre aparece na política.”
Pediu uma coxinha de frango e soltou uma risada provocadora: Adoro essa “petite cuisse”.
Enquanto ela mordia a petite cuisse, dei uma olhada ao redor: nenhum rosto conhecido na padaria preferida da minha amiga. Lá fora, a claridade diminuía antes do tempo.
“Mas a melhor coisa nas eleições na França foi a derrota da filha do Le Pen e da extrema-direita. O horror ao fascismo e uma boa dose de bom senso saíram vitoriosos.”
Limpou os dedos gordurosos com um guardanapo e olhou o osso da coxinha no prato de plástico. Ia comer outra, mas preferiu pedir um pão de queijo.
“Será que os brasileiros vão usar o bom senso nas próximas eleições?” 
Descartes ainda é lido na França, eu disse. Mas aqui o bom senso ainda não vingou. Os discursos da maioria dos nossos políticos não têm método. Ou usam a demagogia e a mentira como método, e isso tem dado certo.
“O discurso desse senhor…”, ela disse, fazendo uma careta azeda. “O que alguns chamam de mito. Que ridículo, chamar esse tipo de mito! Li as notícias sobre o auxílio-moradia e o rápido enriquecimento desse político. O mito disse que usou dinheiro público para comer gente. Antes de ler a reportagem da Folha, eu pensava que era uma blague, uma alusão à antropofagia do Oswald de Andrade.
Mas o cara falava de sexo. Um candidato à Presidência pode ser tão vil, tão baixo...?”
Bom, você ouviu o discurso dele na sessão do impeachment, o elogio que fez a um torturador. E o que ele falou para uma deputada e anda dizendo em palestras é de arrepiar. O apologista do estupro, da tortura, do ódio aos quilombolas e aos indígenas. Esse é o mito…
“Mitos negativos sempre voltam”, disse minha amiga. “E às vezes voltam com o que há de mais desumano e hediondo. Mas a máscara desse tipo está caindo, não acha?”
Tomara que você esteja certa, Marie-Christine. 
“Pois eu acho que o tempo desse mito já passou. O Brasil é muito maior e mais promissor do que esse embuste. Esse tipinho vai para as calendas gregas. Conhece essa expressão?” 
É do tempo da minha avó, respondi, recordando o rosto e a voz da matriarca. Outros rostos surgiram no quintal da infância: rostos portugueses, italianos, indígenas. Rostos mestiços.
“Calendas gregas”, ela repetiu, em francês. “Mas para derrotar o fascismo é preciso argumentar com palavras duras, com o coração sereno e o riso de Demócrito.”
Um estrondo assustou garçons e clientes: a chuva desabou com força, o vento forte e rajadas de granizo rugiam lá fora. Pobre São Paulo, mais uma vez inundada! Os garçons fechavam portas e janelas, minha amiga olhava o lixo arrastado pela água suja que cobria a calçada. A padaria escureceu, a chama de uma vela emitiu um brilho mortiço no balcão, o barulho do temporal contrastava com um silêncio solene, e o pão de queijo esfriava ao lado do osso da coxinha.

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Por que turistas brasileiros que adoram caminhar em Nova York, Paris ou Londres não vão a pé nem até a padaria da esquina, quando estão em São Paulo?













Mauro Calliari
21 Janeiro 2018 | 18h33

Oxford Street, Londres. Foto: M.Calliari
Hoje foi publicada na Folha uma interessante entrevista com Washington Olivetto, um dos maiores publicitários brasileiros. Ele está morando em Londres e conta que está adorando andar a pé e de metrô pela cidade: “Não tenho nenhuma vontade de comprar carro aqui. E olha que gosto de carros velozes. Tenho andado muito de metrô, ônibus e a pé. Volto da agência todos os dias a pé, uma hora de caminhada”.

Nessa época de férias, é comum encontrarmos pessoas que dizem ter adorado andar em cidades fora do Brasil, apesar de nunca fazerem isso por aqui. Seja em Nova York, Paris, Londres ou Buenos Aires, os brasileiros que viajam se encantam com o prazer de andar a pé: as calçadas lisas, a limpeza, a segurança, as pessoas, as lojas e as surpresas que as grandes cidades escondem.
Os relatos das viagens no Facebook, no Instagram são eloquentes: “andamos trinta quarteirões a 10 graus negativos em Nova York” ou “delícia passear por essa cidade tão limpinha e parar num café na calçada”.

Sinalização de rua em Londres. Foto: M.Calliari
Essa é uma questão intrigante: as pessoas adoram andar a pé. Mas não em São Paulo.
O fato é que nós já vivemos numa cidade onde a maior parte das pessoas faz suas coisas a pé e não nos damos conta disso. Sim, o percentual de pessoas que andam a pé em  São Paulo é maior do que em Londres, ou Nova York ou Paris.
Em São Paulo, não custa lembrar, mais de um terço dos deslocamentos diários são feitos a pé – são crianças que andam até a escola, adultos que fazem compras, gente que vai trabalhar a pé. Outro terço dos deslocamentos envolve algum tipo de caminhada, até o ponto de ônibus ou o trem, por exemplo. No mínimo dois terços de todos os deslocamentos cotidianos da cidade são feitos a pé, muito mais do que nessas outras cidades.
Ou seja, nós já moramos numa cidade em que as pessoas andam a pé. Somos milhões de pedestres e não valorizamos isso.
Comparadas a outras grandes cidades globais, São Paulo não é, de fato, uma cidade fácil: as ruas muitas vezes não são nada atraentes, as calçadas têm buracos, e as travessias são perigosas, mas, principalmente nas áreas centrais (de onde saem grande parte de nossos turistas que viajam para fora), é possível encontrar lugares agradáveis, em que o deslocamento entre o ponto A e B pode ser feito com prazer.
Há ruas com árvores que dão boa sombra, há ruas seguras, há lojinhas simpáticas em qualquer lugar e há sempre alguma coisa acontecendo que pode nos interessar. Há, mais que tudo, milhões de pessoas andando para cá e para lá.
Mas há uma assimetria: o tempo médio de deslocamento a pé é de 15 minutos para quem ganha mais de 15 salários mínimos e 32 minutos para os que ganhame um e dois salários, como mostra estudo da estatística Glaucia Guimarães Pereira, feito para esse blog, a partir da pesquisa OD.
O que isso quer dizer? Que os mais ricos andam a metade do que os mais pobres.
Parece normal e até razoável. Mas talvez não seja. Afinal, as pessoas mais ricas tendem a morar em áreas mais centrais, mais bem servidas por metrô, mais confortáveis de andar a pé, muitas vezes razoavelmente perto de seus empregos. Afinal, em uma hora de caminhada, conseguimos fazer uns quatro quilômetros sem muito esforço.
Então, por que os mais ricos não andam mais que as mais pobres e não menos?
Acho que a primeira razão é o preconceito contra o transporte público. Muitas pessoas dizem que o transporte é ruim e às vezes é mesmo, mas uma pesquisa do Nossa São Paulo mostrou que a avaliação sobre os ônibus piora entre os que nunca andaram de ônibus.  Você já deve ter ouvido isso: “quando o transporte melhorar, eu ando de ônibus”, mas o que muita gente está dizendo é: “eu não vou andar de ônibus nunca, e não vou nem testar”.
O prefeito de Bogotá, Enrique Peñalosa, famoso por promover uma pequena revolução nos hábitos de deslocamento de sua cidade, disse uma vez uma frase: “a boa cidade não é aquela onde todos têm um carro, mas aquela onde quem tem um carro prefere andar de ônibus”.
Ora, em São Paulo, já existem ônibus com ar condicionado e que fazem pouco barulho interno (aqueles bi-articulados que andam nos corredores) e grande parte dos vagões do metrô já tem ar condicionado e são confortáveis fora do horário de pico. Ainda é pouco e tudo isso precisa ser estendido à frota toda e às estações, que ainda são muito desconfortáveis.
A questão é que quem não usa, não reclama, e sem reclamação e participação, a maior licitação de ônibus no mundo, que está em curso em São Paulo, corre o risco de dar pouco peso à satisfação dos usuários, apesar disso constar do texto legal. Quem está acostumado a serviços de primeiro mundo poderia e deveria dar palpites no nosso transporte para ajudá-lo a mirar na qualidade de primeiro mundo.
Outra razão para andarmos menos: “no Brasil, falta segurança”. Sim, é verdade, falta mesmo. Mas andar de carro talvez não seja muito mais seguro do que andar a pé ou de transporte publico e a segurança aumenta quando há mais pessoas nas ruas.
A questão, portanto, parece ser cultural. Quem tem dinheiro, vai de carro.
Andar a pé sempre foi visto como algo relegado a quem não conseguia comprar seu carro, daí até o sentido da palavra “pedestre” – rasteiro, desimportante. Nós nos acostumamos a ver pessoas chegando de carro num restaurante e sendo recebidas por um valet na porta, como se fosse um insulto ter que andar alguns quarteirões para parar o carro em algum lugar, ou, pior ainda, chegar a pé.
Mas isso está mudando, no mundo todo. Gente com muito dinheiro escolhe ir a pé ou de bicicleta. Em Wall Street, em NY, ou na City, de Londres, pessoas que ganham milhões (de dólares ou libras) por ano saem para almoçar a pé e no caminho de volta, passam numa farmácia, sentam num banco, pegam um sanduíche e aproveitam a cidade.
No Brasil, há alguns segmentos que parecem mais refratários à mudança.
Um deles é o dos políticos e pessoas com funções públicas – os juízes, os prefeitos, os vereadores, os secretários, os funcionários graduados da administração municipal e estadual, que ainda têm no carro com motorista um sinal de seu status. Ou seja, quem faz as leis, quem administra as calçadas, quem fiscaliza o cumprimento da boa educação no trânsito de um modo geral não se coloca na posição de quem anda. E isso faz com que a cidade fique de fora dessa visão mundial. Há exceções, claro.  Em São Paulo, o vereador Police Neto, por exemplo, abriu mão do carro oficial e faz seus deslocamentos em bicicleta ou transporte público. O secretário de Mobilidade da Prefeitura, Sergio Avelleda, também se desloca prioritariamente em bicicleta. São exceções bem-vindas, que deveriam em tese aumentar a empatia em relação a quem está na fila de um ponto de ônibus lotado ou quem tenta atravessar a rua numa faixa de pedestre.
Outro segmento é o dos que usam o carro como uma maneira de fugir da cidade,  do barulho, do calor e das pessoas. Hoje de manhã eu vi um carro de luxo, talvez fosse um Porsche, ou algo assim, passando a pelo menos 100km/hora numa rua de um bairro residencial. Sentado num banco confortável, ouvindo música alta, com o ar condicionado regulado para 21 graus, o sujeito atrás dos vidros escuros provavelmente viu a rua vazia e acelerou, sem ligar para as pessoas nas calçadas, passeando num domingo de manhã, com cachorros na coleira e um pai com duas crianças que se assustaram com o barulho do motor.
Mas, há mudanças acontecendo, há pessoas envolvidas com a melhoria da cidade e dos espaços públicos. Há empresários que investem recursos pessoais para plantar árvores em praças. Há comerciantes que cuidam das calçadas. Há uma nova geração de arquitetos e urbanistas e gestores públicos que se preocupam com a qualidade de vida na cidade, com a possibilidade de andar a pé e aproveitar a rua.

Compartilhamento de bicicletas em Londres. Foto: M.Calliari
Em algum momento na sua longa história, Londres já teve lama nas ruas, e os pedestres morriam de medo dos carros, o cheiro do Tâmisa era insuportável e a poluição matou mais de 4 mil pessoas no grande smog de 1952. Ou seja, tudo mudou por lá, graças à vontade muitos, desde os que andam nas ruas por falta de opção, mas principalmente graças à vontade dos que acreditam que andar de metrô e ônibus e a pé é o único jeito de uma cidade funcionar – quando todos podem se locomover juntos.
Torço para que o Washington Olivetto também ande muito em São Paulo e tenha uma boa experiência em nossas ruas. Torço também para que o prefeito João Doria caminhe por São Paulo. Só quem adota o ponto de vista do pedestre vai conseguir liderar a transição para uma cidade caminhável, com bom transporte público, alinhada com o que está acontecendo fora daqui.
Quem sabe não haverá um dia em que políticos, juízes, secretários, empresários, advogados, costureiras, engenheiros da CET, pedreiros, profissionais liberais, professores, estudantes, publicitários, empregadas domésticas, vendedores e porteiros se encontrem na mesma calçada, no mesmo vagão do metrô?
E que todos possam chegar com segurança e algum prazer aos seus destinos, exatamente como se estivessem em Nova York, Londres ou Paris?
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